A discriminação mata. Alyne era uma jovem mulher casada, mãe de uma
menina de 5 anos. Morreu grávida e sua morte é adjetivada como
"evitável" pelas estatísticas internacionais. Morreu porque não foi
devidamente cuidada. Morreu após dolorosa peregrinação e sofrimento pelas macas
e corredores de hospitais na periferia do Rio de Janeiro. Alyne morreu porque
queria ser mãe e aos seis meses de gestação adoeceu, mas sua dor não foi
cuidada.
Por Debora Diniz
Um ano depois de ser condenado pela ONU, o Estado brasileiro
ainda não se envergonhou pela morte de Alyne.
A discriminação mata.
O efeito dessa oração intransitiva não é só linguístico, mas visceral para as
mulheres. Em 2002, a discriminação matou Alyne da Silva Pimentel Teixeira. A
oração é agora transitiva e o responsável é conhecido, segundo a decisão do
Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(Cedaw), das Nações Unidas: a discriminação do Estado brasileiro contra as
mulheres. Alyne era uma jovem mulher casada, mãe de uma menina de 5 anos.
Morreu grávida e sua morte é adjetivada como "evitável" pelas
estatísticas internacionais. Morreu porque não foi devidamente cuidada. Morreu
após dolorosa peregrinação e sofrimento pelas macas e corredores de hospitais
na periferia do Rio de Janeiro. Alyne morreu porque queria ser mãe e aos seis
meses de gestação adoeceu, mas sua dor não foi cuidada.
Alyne agonizou,
vomitou sangue, padeceu de um coma sem assistência médica. A mãe de Alyne, d.
Maria de Lourdes da Silva Pimentel, está velha e doente. Não quer mais falar
sobre a saudade da filha e sente que vai morrer sem que o Estado brasileiro
reconheça sua responsabilidade pela morte de Alyne. Cuida da neta órfã, cujo
pai o destino desconhece após a morte de Alyne. D. Maria de Lourdes reclama a
reparação pela morte da filha, por isso transformou seu sofrimento em um caso
para as cortes internacionais: a primeira decisão do Cedaw sobre morte materna,
de agosto de 2011, determinou que o Estado brasileiro reparasse financeiramente
a família de Alyne pelas "graves violações" sofridas". Foi o
primeiro caso internacional em que o sistema das Nações Unidas afirmou que
descuidar das mulheres grávidas é uma violação de direitos humanos. O Estado
brasileiro, esse sujeito da discriminação contra as mulheres, foi considerado
culpado pela morte de Alyne.
A história de Alyne é
agora um caso inesquecível para as cortes internacionais. Mas o Brasil teima em
não reparar sua vergonha. Um ano após a decisão, não houve mudanças na vida de
d. Maria de Lourdes. A responsabilidade pela compensação financeira é disputada
entre o governo federal e o Estado do Rio de Janeiro, em uma negociação de
deveres que ignora que a vida de Alyne foi datada e que mãe e filha padecem com
a espera. Sofrem pela saudade e pela pobreza. Mas a demora em reconhecer a
responsabilidade tem implicações para além da família de d.Maria de Lourdes. É
um sinal de que o Estado brasileiro não se envergonhou verdadeiramente pela
morte de Alyne. A morte evitável de mulheres em idade reprodutiva não é um
destino da maternidade, mas um ato de violência de uma ordem política que não
dá o devido valor à vida das mulheres. Por isso, a melhor forma de descrever a
causa da morte de Alyne não é com um diagnóstico médico de hemorragia
digestiva, mas com um julgamento ético: Alyne morreu por discriminação contra
as mulheres.
Só as mulheres
engravidam - não importa a revolução biomédica, o útero é ainda a metonímia da
criação. Na mesma simplicidade argumentativa, não é demais lembrar que só as
mulheres têm útero, engravidam e dão à luz. A reprodução biológica é o que
anima a vida social, mas para isso é preciso reconhecer que as mulheres têm
direito à saúde reprodutiva. A decisão do Cedaw menciona obrigações do Estado
brasileiro para com as mulheres. E diferencia as obrigações de conduta das
obrigações de resultado. As primeiras são aquelas listadas como recomendações
gerais do Cedaw ao Brasil: garantir que as mulheres tenham acesso ao
atendimento obstétrico adequado; garantir o treinamento dos profissionais de
saúde sobre os direitos à saúde reprodutiva das mulheres; assegurar que os
casos de violação dos direitos das mulheres serão remediados; oferecer
treinamento ao Judiciário; assegurar que o sistema de saúde cumprirá com as
regulamentações internacionais - uma lista de recomendações óbvias em uma ordem
constitucional que reconhece o "direito à saúde" como um direito
fundamental. Mas quais obrigações de conduta e de resultado foram cumpridas
pelo Estado brasileiro neste último ano desde a decisão do Cedaw? D. Maria de
Lourdes ainda espera o cumprimento do primeiro item da decisão de
"garantir reparação apropriada, inclusive compensação financeira, à autora
e à filha de Alyne".
A estratégia política
do Estado brasileiro foi a do silêncio em relação à decisão do Cedaw. Um
silêncio cínico diante do escândalo do caso e da singularidade da dor da
orfandade de uma mãe idosa e de uma filha agora adolescente. Não há ameaça à
soberania política por uma decisão de um comitê legítimo internacional como é o
Cedaw - a verdade é que não existe soberania para atos de discriminação
injustos. Alyne agora é um caso de violação de direitos humanos. Sua mãe e sua
filha são duas mulheres de carne e osso à espera da justiça. Todas nós somos
espectadoras à espera de uma nova ordem que reconheça que proteger a saúde
reprodutiva das mulheres é garantir valor às nossas vidas.
Fonte: O Estado de S. Paulo
Debora Diniz á antropóloga, professora da UnB e pesquisadora
da ANIS - Instituto de Bioética, direitos humanos e gênero
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