Usar o (próprio) corpo feminino como manifesto político. Subverter a obsessão voyeurista pelo corpo feminino que caminha de mãos dadas com a marginalização das mulheres como cidadãs e como seres pensantes, em benefício não dos seus próprios interesses individuais, mas sim dos objetivos de denúncia política.
Nem as Femen nem as Pussy Riot são artistas sofisticadas como as da vanguarda feminista. Parece, porém, que herdaram a lição comunicativa: tornar-se sujeitos também na comunicação do e com o corpo.
Nem as Femen nem as Pussy Riot são artistas sofisticadas como as da vanguarda feminista. Parece, porém, que herdaram a lição comunicativa: tornar-se sujeitos também na comunicação do e com o corpo.
A análise é da socióloga italiana Chiara Saraceno,
professora de pesquisa do Wissenschaftszentrum für Sozialforschung, de Berlim.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 14-08-2012. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Usar o (próprio) corpo feminino como manifesto político.
Subverter a obsessão voyeurista pelo corpo feminino que caminha de mãos dadas
com a marginalização das mulheres como cidadãs e como seres pensantes, em
benefício não dos seus próprios interesses individuais, mas sim dos objetivos
de denúncia política.
É isso que fazem grupos de mulheres feministas, sobretudo do
Leste Europeu. Usando as técnicas do flash mob, as Femen ucranianas
literalmente usam os seus próprios seios nus para tornar descaradamente
visíveis as próprias denúncias contra o governo, contra a transformação do seu
país em uma espécie de bordel para consumidores internacionais por ocasião dos
jogos europeus de futebol, contra a sharia, até mesmo contra Berlusconi em novembro
de 2011.
As jovens mulheres russas da banda punk Pussy Riot, quando
irrompem com as suas canções de denúncia em contextos "sagrados ao
poder" – o Kremlin, a catedral ortodoxa – se limitam a exibir minissaias.
Mas as máscaras que escondem o rosto aludem ironicamente à despersonalização
das mulheres por parte de quem as representa, justamente, somente como corpos
fungíveis, por serem atraentes para quem os olha e os consome.
A última dessas ações – uma "oração" anti-Putin na
Catedral Ortodoxa de Moscou durante uma cerimônia religiosa – custou-lhes muito
caro, com uma denúncia do patriarca moscovita e, consequentemente, a prisão.
Elas podem ser condenadas a anos de prisão. Infelizmente para elas, elas não
poderiam ter sido mais eficazes ao demonstrar o estreito fio que liga na Rússia
de hoje o poder político à Igreja Ortodoxa.
O uso do próprio corpo pelas mulheres feministas, como
instrumento e ao mesmo tempo como ato comunicativo para fins de revelação e
denúncia, não é um fenômeno novo, nem limitado ao Leste Europeu. Mais do que o
episódio das estudantes alemãs que rodearam com seios nus o filósofo Adorno
durante um episódio de contestação estudantil em 1969, para humilhá-lo aludindo
em público às suas nem sempre reprimidas tentações de "passar as
mãos", é no setor artístico que se pode encontrar um amplo testemunho
disso.
As artistas daquela que foi chamada a vanguarda feminista
dos anos 1970, de um modo ou de outro, usaram, todas, fotografia, filme, vídeo
e performance para afirmar que "o pessoal é político" e contra
"a obrigação do ser bonita". Ao invés de se limitarem a documentar,
certamente de forma meritória, o abuso e a instrumentalização do corpo feminino
na comunicação pública, ou também a denunciar como desrespeitosa e denigratória
esta ou aquela publicidade ou espetáculo, essas artistas viraram a mesa,
colocando-se elas mesmas do mesmo lado do sujeito que comunica com o corpo.
Encheram com uma intencionalidade ao mesmo tempo crítica e autônoma a encenação
do corpo feminino, a partir do seu próprio. Os "corpos planos" e
evanescentes de Francesca Woodman, as bonecas de papel no armário dos vestidos
de Cindy Sherman, as performances de Valie Export, que, naquelas que hoje
chamaríamos de flash mobs, provocava transeuntes e o público mostrando-se de
vez em quando como um teatro ambulante do qual surgiam apenas os seios ou o
sexo, que convidava ironicamente a tocar – estas e outras ainda eram formas de
expressão que recusavam a mera documentação e iam além da denúncia, para abrir
a um olhar e a uma comunicação diferentes.
Nem as Femen nem as Pussy Riot são artistas sofisticadas
como as da vanguarda feminista. Parece, porém, que herdaram a lição
comunicativa: tornar-se sujeitos também na comunicação do e com o corpo.
Certamente, não é a única forma, nem necessariamente a mais eficaz para
combater o poder (as irmãs norte-americanas, por exemplo, estão colocando em
ação outras formas para combater os ditames do Vaticano).
Mas ver mulheres que usam alegremente, embora
arriscadamente, o próprio corpo para ridicularizar o poder tem um quê de
libertador, especialmente a partir do observatório italiano. Onde parecemos
pressionadas entre o dever de tomar posição sobre o direito de ser acompanhante
e o conformismo moral e hipócrita que gostaria que as mulheres "de
bem" e competentes fossem todas sérias, com golas altas e mangas
compridas, possivelmente idosas, e melhor ainda se avós, mas de qualquer modo
dessexualizadas.
Fonte: Ihu
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