Maria Madalena na visão do pintor italiano do século 19 Francesco Hayez
A maioria dos que estudam as origens do cristianismo tem
poucas dúvidas: Maria Madalena cumpriu um papel importante entre os primeiros
seguidores de Jesus, era uma das companheiras mais devotadas de Cristo e foi
uma das primeiras a testemunhar sua fé na ressurreição do mestre. Mas, ao que
tudo indica, a idéia de que os dois foram casados e tiveram filhos não passa de
uma mistura de imaginação hiperativa moderna com brigas políticas de antigas
seitas cristãs.
Explica-se: todos os textos que insinuam uma proximidade
mais carnal entre Maria Madalena e Jesus são pelo menos cem anos mais recentes
que os Evangelhos oficiais, tendo sido escritos por pessoas que queriam
justamente desafiar as visões mais ortodoxas do cristianismo, as quais
começavam a se firmar. Se a pesquisa mais sóbria enterra, por um lado, o
romantismo à la "Código da Vinci", também demonstra, por outro, um
dos aspectos mais radicais da missão religiosa de Jesus: o tratamento
aparentemente igualitário dado às mulheres.
De fato, ao contrário de todos os líderes religiosos judeus
antes e depois dele (antes da época moderna, claro), Cristo não via problema
algum em ter seguidores dos dois sexos. "Duas das qualidades
extraordinárias de Jesus são o fato de que ele recrutava seguidores e era itinerante.
Mas o que é ainda mais incomum é o fato de ele recrutar seguidores do sexo
feminino e masculino e viajar com ambos", escreve Ben Witherington III,
especialista em Novo Testamento do Seminário Teológico Asbury (Estados Unidos).
Ambos os fatos seriam considerados escandalosos para os
judeus do século I, para quem as mulheres deveriam ficar em casa com seus
maridos e, quando viajassem, teriam de ser acompanhadas por parentes do sexo
masculino. Segundo o padre John P. Meier, professor da Universidade de Notre
Dame em Indiana (EUA) e autor dos livros da série "Um Judeu
Marginal", sobre a figura histórica de Jesus, o escândalo é um ótimo
motivo para acreditar que esse grupo de seguidoras, incluindo Maria Madalena,
realmente existiu.
Constrangedora
Essa visão advém do chamado critério do constrangimento, que
é uma das principais ferramentas usadas pelos historiadores para decidir se um
fato narrado nos Evangelhos realmente aconteceu com Jesus. A idéia é que os
evangelistas não teriam motivos para criar uma narrativa que pudesse causar
problemas para sua pregação por ser potencialmente constrangedora. Ao mesmo
tempo, sentiriam a necessidade de relatar a situação embaraçosa nos casos em
que ela era de conhecimento geral e, portanto, não poderia ser simplesmente
omitida.
Meier acredita que o critério do constrangimento pode ser
aplicado a vários acontecimentos-chave da vida de Maria Madalena relatados no
Novo Testamento. Um deles é a expulsão de sete demônios do corpo da mulher,
graças ao poder de Jesus. Outra é a presença da ex-possessa durante a
crucificação e sepultamento de Cristo. Finalmente, há o relato de que ela teria
falado com o próprio Jesus ressuscitado, talvez até antes dos apóstolos.
"É improvável que os primeiros cristãos tenham se dado
ao trabalho de lançar dúvidas sobre a confiabilidade de uma testemunha tão
importante [da ressurreição de Jesus] transformando-a numa antiga
endemoninhada", escreve Meier. O historiador acredita, portanto, que Maria
Madalena realmente foi exorcizada por Jesus num momento crucial de sua vida, e
especula que isso levou a mulher a se tornar discípula de Cristo.
De
Magdala para Jerusalém
O nome "Madalena" indica que Maria nasceu em
Magdala, um vilarejo de pescadores na costa noroeste do mar da Galiléia -- a
mesma região onde Jesus cresceu, portanto. Ela, porém, não era a única
seguidora do mestre galileu -- os Evangelhos citam pelo nome uma série de
outras mulheres, como Joana, mulher de um administrador do tetrarca
(governador) da Galiléia, Herodes Antipas. Além de acompanhar as pregações de
Jesus, essas mulheres parecem ter ajudado a financiar as andaças de Cristo pela
Palestina, colocando seus próprios bens à disposição dele.
Existe algum indício de uma relação mais próxima entre Jesus
e a mulher de Magdala durante esse período? Zero, parece ser a resposta. Na
verdade, nenhum dos textos do Novo Testamento dá qualquer indicação de que
Jesus tenha, em algum momento, tido filhos ou se casado. Alguns estudiosos
afirmam que, para um judeu do século I, o casamento era quase considerado uma
obrigação religiosa, ligado ao mandamento de "crescer e multiplicar-se"
presente no livro bíblico do Gênesis.
Acontece, porém, que Jesus não era um judeu comum, e
tampouco vivia em uma época comum. Com efeito, algumas seitas e grupos mais
radicais da época, como os chamados essênios, defendiam o celibato e chegavam a
viver como "monges". Além disso, enquanto os textos bíblicos
mencionam várias vezes a família de Jesus, não há menção alguma a mulher e
filhos. Para John P. Meier, o mais provável é que eles nunca tenham mesmo
existido, e que Jesus tenha sido celibatário como sinal do compromisso exigido
por sua missão religiosa.
O certo é que Maria
de Magdala, ou Madalena, aparentemente acompanhou Jesus até seu confronto final
com as autoridades judaicas em Jerusalém, testemunhando sua morte e não saindo
do lado dele mesmo quando muitos dos apóstolos fugiram. No relato da visão que
ela teve do Ressuscitado, no Evangelho de João, ela exclama
"Rabouni!" (algo como "meu professor", "meu
mestre" em aramaico) ao reconhecê-lo.
"Jesus então diz
a ela uma frase que normalmente é traduzida como 'não me toque', mas na verdade
quer dizer 'não se segure em mim' ou algo do tipo", diz Ben Witherington
III. "A idéia do evangelista é que ela não deve ficar presa ao Jesus do
passado, mas sim sair dali e anunciar o Jesus ressuscitado", afirma o
teólogo. Essa é a última vez em que Maria Madalena aparece no Novo Testamento.
Não há detalhes confiáveis sobre o resto de sua vida.
Beijos polêmicos
De onde surge, então, a lenda do caso de amor entre mestre e
aluna? De uma série de textos, a maioria deles encontrados no Egito e escritos
em copta, como é conhecida a língua egípcia durante a época romana.
(Acredita-se que muitos desses textos foram originalmente compostos em grego, e
alguns desses originais foram achados.) O mais famoso deles é o Evangelho de
Filipe, no qual Maria Madalena é descrita como a "companheira" de
Jesus e diz-se que Cristo "costumava beijá-la com freqüência".
Acontece que todos esses textos parecem ter sido compostos
no ano 200 da nossa era, ou até mais tarde, e compartilham uma mesma teologia,
a do gnosticismo. Os gnósticos acreditavam numa espécie de revelação secreta e
esotérica que lhes dava o verdadeiro conhecimento para a salvação, ao contrário
da massa "ignara" dos demais cristãos. Essa opinião era combatida por
outros grupos do cristianismo, que se consideravam os sucessores de apóstolos
como Pedro e Paulo.
Com isso, Maria Madalena passou a ser usada pelos gnósticos
como um símbolo do "conhecimento verdadeiro" que tinham de Jesus, e
como a verdadeira predileta de Cristo, da qual eles seriam seguidores. Esse
aspecto polêmico e tardio de tais textos torna bastante improvável que eles se
baseiem em alguma memória histórica envolvendo a Maria Madalena real.
Fonte: globo
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