terça-feira, 24 de julho de 2012

Após denunciar rede de exploração sexual, ela pode ser condenada por suposta calúnia : Mineira vira advogada para provar que está no banco dos réus injustamente


“Quando os processos caminham, a impunidade provoca em muitas vítimas o arrependimento por ter denunciado"
Quando denunciou, há oito anos, a rede de exploração sexual de crianças e adolescentes em Pompéu, cidade mineira de 29 mil habitantes, Beth Campos integrava o Conselho Municipal dos Direitos da Criança na cidade e sabia que estava comprando uma briga com gente grande, cujo fim não poderia prever. O prefeito, o presidente da Câmara dos Vereadores, comerciantes e policiais da cidade eram protagonistas das histórias contadas por três meninas entre13 e14 anos, que diziam ter recebido dinheiro e presentes para manter relações sexuais com eles e não contar a ninguém.

O caso chocou o país, virou tema de audiência pública da Assembleia Legislativa de Minas e da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional (CPMI) criada para apurar casos de exploração sexual no Brasil. Em risco, as meninas e um rapaz de 17 anos — que admitiu trabalhar como agenciador — entraram para o programa de proteção a ameaçados de morte. O Ministério Público denunciou pelo menos sete pessoas, cujos julgamentos estão previstos para este ano.
 Tudo o que Beth queria era que essa história terminasse aí. Mas, em vez de reconhecida como corajosa, ela passou a ser considerada traidora da cidade, por causa da forma como Pompéu foi inserida no noticiário nacional. Beth foi agredida pelo menos duas vezes em bares. E agora está no banco dos réus em processo por denunciação caluniosa, com risco de ser condenada a até oito anos de reclusão.
 Ela passou de denunciante a investigada após ser procurada por um adolescente que dizia também ter sido vítima de exploração sexual, em outubro de 2004, meses depois das audiência sobre os casos. Beth encaminhou o garoto para o Conselho Tutelar e fez com que fosse ouvido pelo Ministério Público. Mas depois ele disse ter recebido de Beth R$ 50 para fazer a denúncia.
 — Era uma armação para que pudessem questionar o que havíamos denunciado. Era o que precisavam para se virar contra mim — diz Beth, que, depois disso, mudou-se para Belo Horizonte.
 Com medo de não saber bem o que enfrentava, entrou na faculdade e se preparou para o que estava por vir. Formou-se em Direito, no fim de 2010, aos 54 anos. A primeira peça jurídica que redigiu foi a sua defesa prévia no caso. No documento, arrola como testemunha de defesa dois deputados estaduais, um promotor e até a ministra Especial dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que era relatora da CPMI da Exploração Sexual à época dos fatos.
 Beth não voltou mais a Pompéu, mas abraçou a causa da infância com ainda mais força. Hoje é militante do tema na Associação Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Belo Horizonte e representa Minas Gerais no Comitê Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
 — Optei por virar uma pessoa pública nessa luta, para eles não me matarem. Não tenho mais liberdade de ir até a minha cidade, vou dar a minha vida para eles? — diz ela.
 Por meio da assessoria, a ministra Maria do Rosário informou que ainda não foi notificada como testemunha, por isso não se manifestaria sobre o caso. Mas mandou dizer que reconhece Beth como uma “grande militante dos direitos humanos”.
 Réu no processo em que é acusado de manter relações sexuais com uma adolescente, o perito da Polícia Civil, vereador e pré-candidato a prefeito de Pompéu, Experidião Isidoro Porto, foi denunciado por Beth, apesar de ser seu primo. Ele nega ter havido rede de exploração sexual na cidade e chama a parente de “desajustada”.
 — Tinha umas moças que já faziam programa. Mas esse menino que fez a denúncia contra ela mostrou que era briga política — afirma Porto, que atribui o ato de Beth à mágoa por ter sido demitida da Secretaria de Assistência Social a pedido da mulher do prefeito.
 O vereador alega que a vítima citada no processo tinha “17 anos e seis meses” e teria negado, em depoimento, ter tido relações sexuais com ele. O processo será julgado.
 
— É sempre muito complicado quando nem as próprias vítimas conseguem se ver no lugar de vítimas. Me dá muita tristeza, porque se transforma em uma luta solitária — lembra Beth, referindose à ascensão social às avessas e ao poder de compra obtido pelas meninas submetidas à exploração.
 Ela critica o resultado de julgamento recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que causou polêmica por inocentar um acusado de estupro contra três meninas de 12 anos e decidir que nem sempre sexo com menor de 14 anos pode ser considerado estupro.
 — Se o STJ se comportou assim, imagine o que pode fazer um juiz de primeira instância? Quando os processos caminham, a impunidade provoca em muitas vítimas o arrependimento por ter denunciado. Não me arrependo, mas me sinto um boi de piranha.
 

Fonte: O Globo

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