“Quando os processos caminham, a impunidade provoca em muitas vítimas o arrependimento por ter denunciado"
Quando denunciou, há oito anos, a rede de exploração sexual
de crianças e adolescentes em Pompéu, cidade mineira de 29 mil habitantes, Beth
Campos integrava o Conselho Municipal dos Direitos da Criança na cidade e sabia
que estava comprando uma briga com gente grande, cujo fim não poderia prever. O
prefeito, o presidente da Câmara dos Vereadores, comerciantes e policiais da
cidade eram protagonistas das histórias contadas por três meninas entre13 e14
anos, que diziam ter recebido dinheiro e presentes para manter relações sexuais
com eles e não contar a ninguém.
O caso chocou o país, virou tema de audiência pública da
Assembleia Legislativa de Minas e da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do
Congresso Nacional (CPMI) criada para apurar casos de exploração sexual no
Brasil. Em risco, as meninas e um rapaz de 17 anos — que admitiu trabalhar como
agenciador — entraram para o programa de proteção a ameaçados de morte. O
Ministério Público denunciou pelo menos sete pessoas, cujos julgamentos estão
previstos para este ano.
Tudo o que Beth queria era que essa história terminasse aí.
Mas, em vez de reconhecida como corajosa, ela passou a ser considerada traidora
da cidade, por causa da forma como Pompéu foi inserida no noticiário nacional.
Beth foi agredida pelo menos duas vezes em bares. E agora está no banco dos
réus em processo por denunciação caluniosa, com risco de ser condenada a até
oito anos de reclusão.
Ela passou de denunciante a investigada após ser procurada
por um adolescente que dizia também ter sido vítima de exploração sexual, em
outubro de 2004, meses depois das audiência sobre os casos. Beth encaminhou o
garoto para o Conselho Tutelar e fez com que fosse ouvido pelo Ministério
Público. Mas depois ele disse ter recebido de Beth R$ 50 para fazer a denúncia.
— Era uma armação para que pudessem questionar o que
havíamos denunciado. Era o que precisavam para se virar contra mim — diz Beth,
que, depois disso, mudou-se para Belo Horizonte.
Com medo de não saber bem o que enfrentava, entrou na
faculdade e se preparou para o que estava por vir. Formou-se em Direito, no fim
de 2010, aos 54 anos. A primeira peça jurídica que redigiu foi a sua defesa
prévia no caso. No documento, arrola como testemunha de defesa dois deputados
estaduais, um promotor e até a ministra Especial dos Direitos Humanos, Maria do
Rosário, que era relatora da CPMI da Exploração Sexual à época dos fatos.
Beth não voltou mais a Pompéu, mas abraçou a causa da
infância com ainda mais força. Hoje é militante do tema na Associação Municipal
de Assistência Social da Prefeitura de Belo Horizonte e representa Minas Gerais
no Comitê Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes.
— Optei por virar uma pessoa pública nessa luta, para eles
não me matarem. Não tenho mais liberdade de ir até a minha cidade, vou dar a
minha vida para eles? — diz ela.
Por meio da assessoria, a ministra Maria do Rosário informou
que ainda não foi notificada como testemunha, por isso não se manifestaria
sobre o caso. Mas mandou dizer que reconhece Beth como uma “grande militante
dos direitos humanos”.
Réu no processo em que é acusado de manter relações sexuais
com uma adolescente, o perito da Polícia Civil, vereador e pré-candidato a
prefeito de Pompéu, Experidião Isidoro Porto, foi denunciado por Beth, apesar
de ser seu primo. Ele nega ter havido rede de exploração sexual na cidade e
chama a parente de “desajustada”.
— Tinha umas moças que já faziam programa. Mas esse menino
que fez a denúncia contra ela mostrou que era briga política — afirma Porto,
que atribui o ato de Beth à mágoa por ter sido demitida da Secretaria de
Assistência Social a pedido da mulher do prefeito.
O vereador alega que a vítima citada no processo tinha “17
anos e seis meses” e teria negado, em depoimento, ter tido relações sexuais com
ele. O processo será julgado.
— É sempre muito complicado quando nem as próprias vítimas
conseguem se ver no lugar de vítimas. Me dá muita tristeza, porque se
transforma em uma luta solitária — lembra Beth, referindose à ascensão social
às avessas e ao poder de compra obtido pelas meninas submetidas à exploração.
Ela critica o resultado de julgamento recente do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), que causou polêmica por inocentar um acusado de
estupro contra três meninas de 12 anos e decidir que nem sempre sexo com menor
de 14 anos pode ser considerado estupro.
— Se o STJ se comportou assim, imagine o que pode fazer um
juiz de primeira instância? Quando os processos caminham, a impunidade provoca
em muitas vítimas o arrependimento por ter denunciado. Não me arrependo, mas me
sinto um boi de piranha.
Fonte: O Globo
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