É necessário mostrar que, na base da situação dominada da mulher e da sua perpetuação para além das diferenças temporais e espaciais, está o fato de que. nessa economia, a mulher é mais objeto do que sujeito.
A alienação simbólica à qual condenadas, visto que são destinadas a ser percebidas e a se perceber através das categorias dominantes, isto é, masculinas, se retraduz na própria experiência que as mulheres fazem dopróprio corpo e do olhar dos outros.
Inédito na Itália, o texto de Pierre Bourdieu do qual
publicamos um trecho é um dos últimos escritos pelo sociólogo e filósofo
francês, falecido há dez anos. Uma reflexão sobre a percepção feminina do
próprio corpo como "corpo para o outro" em uma sociedade totalmente
mercantilizada.
Ele foi publicado na última edição da revista Lettera
Internazionale, totalmente dedicada à questão feminina. O texto foi publicado
originalmente na revista Cahiers du Genre, 2002/2. O trecho foi republicado no
jornal La Repubblica, 24-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há muitos trabalhos de antropologia comparada sobre a região
mediterrânea que tendem a mostrar que a Cabília [região montanhosa do norte da
Argélia], por razões históricas, funcionou como um lugar em que se preservou
intacta uma espécie de inconsciência mediterrânea, aquele inconsciente
rastreável tanto nos textos da Grécia antiga quanto nos da Grécia atual ou da
Itália do Sul, mas também da Espanha ou, em geral, de todas as costas do Mediterrâneo.
A Cabília conservou esse sistema ainda em funcionamento e, consequentemente,
coloca diante dos nossos olhos o nosso próprio inconsciente cultural em matéria
de masculinidade e de feminilidade. Isso se deve à constância das estruturas
simbólicas sobre as quais se baseia a nossa representação da divisão do
trabalho entre os sexos.
E se essa constância é atestada, coloca-se a questão das
condições sociais que a tornam possível. Em outras palavras, o que deve haver
de específico na lógica do simbólico da qual faz parte a representação da
oposição masculino-feminino para que, além das mudanças econômicas, além das
transformações tecnológicas, se possam captar semelhanças tão profundas entre
estados tão diferentes da sociedade?
Vou me deter por um instante sobre o papel passivo atribuído
à mulher e que me parece se encontrar, ainda hoje, como fundamento da relação
que as mulheres têm com o próprio corpo, uma relação que tem a ver com o fato
de que o seu ser social é um ser-percebido, um “percipi”, um ser para o olhar
e, se assim se pode dizer, um ser através do olhar, suscetível de ser
utilizado, nesse título, como um capital simbólico.
A alienação ligada ao fato de ter um corpo visível e de se
encontrar, portanto, sempre sob o olhar dos outros apresenta diversos graus: é
ainda mais poderoso quanto mais se desce na hierarquia social, porque se tem
mais oportunidades de ter um corpo pouco conforme aos cânones dominantes. E
encontra o seu próprio limite justamente nas mulheres às quais a experiência do
corpo como corpo para o outro se impõe com uma força particular por causa do
papel que lhes é prescrito no mercado dos bens simbólicos, onde elas são
objeto, ser percebido, capital simbólico, que devem gerir – e do qual são, de
alguma maneira, as contabilistas – perante os homens.
A transformação da relação com o corpo através do esporte é
acompanhada por uma transformação profunda das relações com os homens. As
mulheres, nesse caso, deixam de parecer femininas, isto é, disponíveis, ao
menos simbolicamente. A sua relação com o próprio corpo mudou a tal ponto que
já não respondem mais às expectativas socialmente constituídas sobre o que é
uma mulher. Sem dúvida, se poderiam fazer considerações semelhantes no que se refere
à mudança da relação com o corpo relacionada às profissões intelectuais.
Uma última palavra para expressar uma saudade: eu recordei a
existência de uma economia de bens simbólicos relativamente autônoma com
relação às bases econômicas da sociedade – uma autonomia relativa,
evidentemente –, mas eu não analisei sobre que se fundamenta tal autonomia e o
modo pelo qual ela se radica na lógica da reprodução biológica e sobretudo
social. Eu não mostrei como as novas tecnologias da reprodução biológica, por exemplo,
podem contribuir para transformar a dicotomia produção/reprodução que é o
fundamento da economia dos bens simbólicos. Ao longo desse caminho, eu poderia
abordar o problema do nexo entre relações sociais entre os sexos e relações
sociais entre as classes. Mas não posso fazer nada mais do que enunciar os
títulos dos temas que eu gostaria de tratar e me deter.
Fonte: Ihu
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