Recém-chegada de Paris, a psicanalista Betty Milan parou
para ver a novela. E flagrou exatamente a alternância de poder entre Carminha e
Nina, quando a audiência de Avenida Brasil bateu todos os recordes em São
Paulo, com 45 pontos de média no Ibope. Com olhar de estrangeira, ficou
impressionada. Registrou ali o que entende de mais negativo na sociedade do
País: a paixão pelo ódio. "É um traço de nossa cultura, provavelmente de
origem mediterrânea", diz, "mas me pergunto se era o caso de colocar
em cena algo que avalize a perversão."
Em ritmo de ensaio para sua peça A
Vida É um Teatro, que reestreia em agosto, a também escritora explicou essa ira
toda do povo brasileiro e por que não considera novela um exemplo de arte.
Eis a entrevista.
O que essa novela espelha da sociedade brasileira?
A começar, o gosto pela violência, que a novela explora para
emplacar. Depois o gosto pela vingança, próprio do machismo, cuja ética é tão
contrária à mulher quanto ao homem, mas que pode estar tão implícito na conduta
feminina quanto na masculina. Nina é tão machista quanto Carminha, as duas se
espelham o tempo todo. As duas, por sinal, são mulheres originárias do lixão,
onde a sobrevida implica força e, portanto, é o padrão masculino que prevalece.
Como eu digo em E o que É o Amor?, o machismo é uma ética infeliz e assassina.
Sua história é a que se lê em Tragédia Brasileira, de Manuel Bandeira. Misael,
funcionário público, conhece Maria Elvira, tira-a da prostituição, instala e
trata. Ela arranja namorado. Ele, para evitar escândalo, muda de bairro, muda 17
vezes, até um dia matá-la a tiros. Misael indubitavelmente fez de tudo para
escapar ao imperativo machista, mas não teve como.
O nome 'Avenida Brasil' remete a uma avenida que corta 27
bairros do Rio e tem intersecções com várias rodovias. Sua temática aludiria ao
País urbano?
Apesar da palavra "avenida", acho que a novela não
diz respeito ao urbano ou ao rural. Veríamos essa mesma cena no campo. Apego-me
mais à palavra Brasil e ao que há de mais negativo na cultura brasileira, que é
a paixão pelo ódio.
O brasileiro gosta de odiar?
É um traço da nossa cultura, provavelmente de origem
mediterrânea. São três as paixões humanas: a do amor, a do ódio e a da
ignorância, que é a paixão do não saber, de negar a realidade. A paixão do
ódio, o machismo cultiva. Como exemplo temos as peças de Nelson Rodrigues e os
romances de Graciliano Ramos. Pense no que diz Jonas em Álbum de Família:
possuir e logo matar a mulher que se ama. Ou pense em Paulo Honório, em São
Bernardo, que considera que matar Madalena é ação justa. Ele então não a supõe
infiel?
O cotidiano dos emergentes é o grande eixo da novela, que
tem atraído de A a Z. As classes já misturaram seus gostos?
Não acho que o cotidiano dos emergentes seja elemento forte
de identificação. A identificação resulta
do gozo sádico do espectador, gozo que a imprensa e a televisão exploram desde sempre - lamentavelmente,
porque esse gozo sustenta o gosto pela vingança. Mãe Lucinda pode dizer que a
vingança só leva à vingança, procurando fazer Nina mudar de ideia, mas é com
esta que o espectador mais se identifica. Porque, de um modo ou de outro, todos
somos injustiçados e o gozo sádico nos tenta.
Por que a vingança lhe parece tema central? Por que não a
traição ou a chantagem?
Colocar em cena uma mulher vingativa não deixa de ser uma
novidade. A vingança aqui no país sempre foi para os homens. Doca Street,
Lindomar Castilho... As mulheres, que são
ultrajadas de diferentes maneiras, consciente ou inconscientemente, se
sentem recompensadas. Pouco antes da novela ouvi no Jornal Nacional que o
aborto consentido continua a ser crime e cabe ao médico decidir se a mulher tem ou não o
direito de abortar. Como se o médico fosse arcar com a responsabilidade de ser
mãe! Chega a ser revoltante.
Os homens da trama parecem facilmente manipuláveis, como se
vê nas obras literárias mencionadas em Avenida Brasil, entre elas Madame Bovary
e O Primo Basílio. Como entender esse predomínio do feminino?
Acho que não se pode comparar Carminha com Madame Bovary, que é um Quixote
francês. Carminha é uma manipuladora altamente realista. A Bovary, como o Quixote, é vítima do seu
imaginário. Paga muito caro pelo adultério e acaba se suicidando. Por outro lado, Carminha e Nina são dois
machões. A Bovary é muito feminina. O
tema dela é o amor, que não é o tema das mulheres de Avenida Brasil.
O horário eleitoral começa daqui a um mês, com figuras reais
que mais parecem personagens de folhetim. Nesse sentido, dá para estabelecer um
paralelo entre o gênero 'propaganda eleitoral' e o gênero 'novela'?
Não sei. O que eu sei é que a novela brasileira se limita a
retratar a sociedade em que vivemos.
E o horário eleitoral não? Você está tomando o horário
eleitoral como se fosse ficção? A senhora acompanha o horário eleitoral
brasileiro?
Jorge Amado, cuja Gabriela está na telinha, já disse que o
samba é denominador comum da nossa cultura. E a novela?
A novela também, mas novela não é arte. Tem um caráter
absolutamente documental. Não chega a se constituir uma grande metáfora da
sociedade brasileira.
A senhora mencionou que o que há de mais negativo na cultura
brasileira é a paixão pelo ódio. O que haveria de mais positivo?
O fato de privilegiarmos a cultura do brincar, uma cultura
da sátira, senão da zombaria. Ela zomba do que é sério, cultua o riso e se
realiza através do gracejo. O impossível para ela não existe porque, dispondo
de várias máscaras, ela o contorna. Assim sendo, não é de briga, é pacífica,
não faz guerra nem mesmo contra a guerra, brinca, e essa é sua maneira de
resistir a tudo o que a contraria. Sua coragem é a do humor, a de quem dribla a
tristeza e só aposta na alegria. Inadvertidamente sacrílega, essa cultura não
reverencia senão irreverentemente as outras culturas que ela, brincando,
dessacraliza.
O Brasil é uma grande avenida de ficções?
Não. A grande avenida de ficções é o carnaval, que não é uma
ficção, é uma realidade por meio da qual o Brasil se reinventa todo ano,
propiciando ao mundo inteiro a alegria de que este precisa.
Fonte: Ihu
Nenhum comentário:
Postar um comentário