Esta fala é da novela "Avenida Brasil" que, na contramão do ufanismo
consumista do Brasil que chegou ao futuro, se aventura no comentário
politicamente incorreto sobre os temores que a ascensão social engendra. Como a classe média urbana que há décadas
impera no espaço da novela está vendo a vingança da empregadinha?
Eis o texto.
Essa fala-manifesto precede a rendição da vilã e marca a
inversão de papéis entre as antagonistas de Avenida Brasil, novela das 21 horas
atualmente no ar na Rede Globo. No plano visual, o discurso é ilustrado por um
tour perverso, em que Nina-Rita (Débora Falabella), ainda em seu uniforme,
apresenta à patroa, a já antológica vilã Carminha (Adriana Esteves), as
dependências de empregada de sua mansão no Divino, subúrbio fictício da cidade
do Rio de Janeiro. A contundência da vingança é tal que Carminha, ainda que
temporariamente, se submete à inversão de papéis: "Eu estou rendida. Nas
suas mãos. Vou obedecer a todas as suas loucuras."
O texto foi ao ar no capítulo de quarta-feira. É um raro
"bife" de 1 minuto e 40 segundos, longo para novelas. Mas o assunto é
provocativo. Afinal põe o dedo na ferida de uma instituição estrutural na
sociedade brasileira: a relação patroa-empregada. Tão provocativo que
interrompeu o ritmo acelerado. Avenida Brasil não nega o gênero: depois da
grande virada, a narrativa ralentou.
Em um país em que empregadas têm empregadas, o que não passa
batido na novela, a carapuça sugerida no discurso de Nina provavelmente serve à
maioria dos leitores deste artigo, que contam, ou contaram, com empregados
domésticos. A novela trata de outros temas em diálogos igualmente afiados.
Muitas vezes em tom irônico, na chave da comédia, ou da performance carregada,
não naturalista, excessiva e melodramática, Avenida Brasil se aventura em
assuntos tabu.
A novela de João Emanuel Carneiro, escrita com a colaboração
de Marcia Prates, Alessandro Marson, Antonio Prata, Luciana Pessanha e Thereza
Falcão, vem conquistando índices que há muito não se via. A novela se tornou
assunto nas mais diversas rodas. Extrapolou o público preconceituosamente
classificado como C e DE, atraindo o segmento classificado como AB, cada vez
mais raro na TV aberta.
Qual é o segredo que traz o gênero de novo à atenção
nacional, de uma audiência policlassista, composta de espectadores de várias
gerações, moradores de diversas regiões do país e do exterior (onde é possível
assinar um canal Globosat)?
Não há uma resposta única para a pergunta. Se houvesse, ela
valeria ouro. Mas a fala no início deste texto é emblemática de uma
característica marcante de Avenida Brasil: os diálogos afiados captam e
explicitam de maneira curta e grossa conflitos em um país em geral avesso ao
confronto aberto.
Com Avenida Brasil, a novela retoma, ao menos
circunstancialmente, a capacidade de sintonizar temas candentes. A ausência do
merchandising social que amorteceu a dramaturgia do folhetim eletrônico nos
últimos anos contribui para adensar a trama, liberando os personagens para
tecer comentários e desenvolver ações inusitadas.
O sucesso da novela consagra também uma nova geração de
diretores. Amora Mautner e José Luiz Villamarim trabalham com colaboradores. As
equipes de roteiro e direção se embaralham e se recompõem a cada nova produção,
misto de realização e aprendizagem. Vários trabalharam juntos em novelas que se
destacaram nos últimos tempos. Antonio Prata esteve na equipe de Bang Bang,
coescrita por seu pai, Mário Prata. Amora Mautner dirigiu Cordel Encantado,
novela de Thelma Guedes e Duca Rachid, que contou com diversos atores do elenco
de Avenida Brasil.
A performance do elenco, a coerência dos figurinos, a
eficiência da decupagem, que usa linguagem de cinema, câmera na mão, iluminação
variada, valorizam o texto, contribuindo para problematizar o maniqueísmo. Na
primeira fase, Nina é dark e descolada, quase inverossímil. Não anda de ônibus,
trem ou metrô. Se desloca na metrópole de motoca, veículo da moda nas cidades
europeias, adequado aos traçados centenários, sinuosos e estreitos. Cabelos
curtos completam o figurino da personagem masculinizada que, apesar de
descuidada, seduz e manipula os homens que deseja.
Já Carminha, a madrasta má, é luminosa. Suas roupas, em
geral justas e com babados são brancas ou de cor clara. Às vezes uma jaqueta
prateada ou uma bolsa de alça dourada bem brilhante completam o figurino da
loura de cabelos compridos e escorridos. O carrão importado que ela mesma
dirige também é branco, quase uma carruagem. Carminha conduziu a narrativa até
aqui.
Carminha teve a oportunidade, mas não acabou com Nina.
Ameaçou enterrá-la viva. A manobra da vilã cita, em versão mais branda, o
recurso usado por Tarantino no cinema em Kill Bill (2003) e na TV no episódio
final da quinta temporada do seriado CSI, Grave Danger (2005). Nina agora
tripudia. Até quando? A graça não está na aniquilação da outra, mas na tensão
permanente.
Destronada, de uniforme de empregada, cabelos cortados e
tingidos de castanho, a personagem perde a força. Sem o comando dela a família
de Tufão também fica sem graça. Substituindo a patroa, Nina adota o figurino
branco e sensual da inimiga. É mais classuda, mas não possui o mesmo
magnetismo. Sua atuação é estridente.
Como em outros casos clássicos, a vilã é personagem
construída de maneira mais interessante. Em Vale Tudo (Gilberto Braga, 1988)
Odete Roitman (Beatriz Segall) e Maria de Fátima (Glória Pires) polarizaram as
atenções. Eram elas que moviam a trama, restando a personagens do bem reagir
aos golpes planejados com minúcia.
A novela lança mão dos estereótipos convencionais que a
ideia de novo-rico carrega, desde os tempos de Molière e O Burguês Fidalgo. Mas
em se tratando do folhetim eletrônico no Brasil do século XXI, a primazia é de
personagens femininas.
A Verônica de Débora Bloch tripudia sobre os emergentes, que
subiram tanto que chegaram à cobertura dela. Monalisa (Heloísa Périssé), a
cabeleireira em ascensão, ironiza os hábitos alimentares sadios, mas sem graça,
o gosto despojado e sem cor, as mulheres magras e sem carne, a festa chocha sem
música da zona sul. Os moradores do Divino encarnam estereótipos do pobre,
suburbano, tosco, ignorante, sem domínio das boas maneiras. Eles falam alto,
gostam de cores, flores, correntes douradas, alegria, sensualidade, música ao
vivo, arroz e feijão, gordura, cerveja no gargalo e chegaram para ficar.
Durante os anos 1970 e 1980, uma longa sequência de novelas
se aventurou a problematizar o Brasil de maneira explícita nos títulos e/ou no
uso das cores nacionais. Roque Santeiro (1985, Dias Gomes); Vale Tudo (1988,
Gilberto Braga); Roda de Fogo, (1986, Lauro César Muniz e Marcílio Moraes);
Pantanal (1990, Benedito Ruy Barbosa); Deus nos Acuda (1992, Sílvio de Abreu);
Pátria Minha (1994, Gilberto Braga), entre outras. Avenida Brasil retoma esse
registro, mas de maneira específica. A via de passagem a que o título se refere
alude à nação, mas está situada no Rio de Janeiro e liga a cidade ao subúrbio.
A novela satiriza o estranhamento da elite da zona sul com o atual processo de
incorporação social.
Na contramão do ufanismo consumista do Brasil que chegou ao
futuro, a novela se aventura no comentário politicamente incorreto sobre os
temores que a ascensão social engendra. Como a classe média urbana que há
décadas impera no espaço da novela está vendo a vingança da empregadinha?
Fonte: O Estadão
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