Aos poucos, o mundo das drogas modifica o perfil dos espaços
de mendicância e coloca em risco o mais vulnerável dos grupos sociais. Não é
difícil perceber as mudanças que a tribo das drogas trouxe ao cenário. Há quem
se preocupe. “Esse lugar se tornou uma bomba prestes a explodir”, compara Edson
Luiz de Souza, da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua. Ele
teme por um espaço que hoje abriga não mais centenas de homens e mulheres
igualados na pobreza extrema, mas também os espoliados pela violência. É o
encontro de dois mundos.
A reportagem é de José Carlos Fernandes e publicada pelo
jornal Gazeta do Povo, 29-07-2012.
“Oi moço, vamos jantar?”, pergunta a educadora Vilma
Terezinha da Silva, 52 anos, ao homem alcoolizado, caído num gramado do Capão
da Imbuia, em Curitiba. Chove. Ele está em “situação de risco”, como dizem os
servidores da Fundação da Ação Social, a FAS, quando precisam soar o alerta.
Mesmo que o atendido resista em ser levado para a Central de Resgate Social, é
preciso gastar até a última gota de saliva. “Ele pode ter uma hipotermia”,
informa Vilma, oferecendo o braço para levantá-lo. Vinte minutos depois,
consegue.
À luz, vê-se que tem boas roupas, usa óculos de grau e que
ainda não faz parte de fato dos 2.776 curitibanos que vivem na mendicância,
como contabiliza pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social publicada em
2008. O número é motivo de contenda. Para Leonildo José Monteiro Filho,
presidente do Movimento Nacional da População de Rua, seriam 5 mil. Para a
prefeitura, 3 mil, mas apenas 1,4 mil em estado crônico, sendo que 98% destes
já passaram pela assistência alguma vez e estão devidamente cadastrados.
“Conhecemos quase todos pelo nome”, orgulham-se os funcionários da casa. Quase
todos.
“Abrimos três, quatro cadastros novos por dia”, calcula a
assistente social Neli Maria Schneider Pudelco, 55 anos, uma das gestoras do
serviço, apontando o novo perfil da mendicância na capital. Se antes os 250
servidores do abrigo municipal tinham vínculo garantido com a sua clientela,
conquistada anos a fio, agora precisam reaprender a lidar com os rostos que
surgem, com outros problemas. O homem recolhido no Capão é uma amostra da
reviravolta.
Os recém-chegados estão fora do padrão clássico dos pobres
em farrapos. Chegam a provocar incredulidade. São mais jovens, bem trajados,
têm endereço, mas resistem em dá-lo, indicativo de que podem estar protegendo
sua família de algum traficante com ganas de vingança por dívida, como se sabe,
paga com sangue. Eis o ponto – o crime chegou à linha mais frágil da sociedade
e coloca a faca no peito até da ação social.
Crônicos e agudos
Há uma parcela da mendicância que segue o rumo de sempre.
São os chamados “crônicos”. Para eles, as mudanças são lentas. É comum
encontrar nessa fatia quem frequente o albergue da prefeitura há 10, 15 anos ou
até mais. Estima-se que 40% dos 300 leitos do ocupados por essa turma,
apelidada de “bate e volta”. São cordiais – abraçam os educadores, têm mesa
cativa no refeitório e quarto marcado no segundo andar.
Seus problemas? Casos de álcool, rejeição familiar,
conformismo, sofrimento mental. Muitos se julgam velhos demais para recomeçar.
“Tenho 35 anos. Durmo aqui desde 1998, mas quem me emprega não sabe. Fui mais
discriminado por ser negro do que por ser morador de rua”, conta “João”,
crônico assumido. Aírton Gonçalves, 46 anos, 11 de albergue, montava exposições
da Fundação Cultural de Curitiba. Seu vínculo com a arte é flagrante, mas agora
a mostra é no Terminal Guadalupe, onde vende alguns desenhos feitos de punho.
“Acho que ele está apático”, diz uma assistente, diante do que chama de
desperdício de talentos.
Quanto aos “agudos”, somam 60% dos frequentadores da
Central, uma população flutuante, que aporta ali em troca de um banho, roupa
limpa e remédio para as feridas. Estão dando um tempo. Satisfeitas as
necessidades, podem demorar meses para voltar. É em meio a esse núcleo,
digamos, mais dinâmico, que está abrigada uma frente de hóspedes que muda o
perfil do morador de rua, botando por terra a pesquisa da FAS feita junto aos
usuários, há quatro anos.
Naquela ocasião, havia na clientela do local 7% de não
alfabetizados; 14% com ensino médio; 75% com ensino fundamental. A proporção
entre usuários de álcool e os de drogas era empatada. Hoje, esses dados parecem
ficção científica. Os educadores estão perplexos diante da quantidade cada vez
maior de moradores de rua jovens e com maior exposição à escola. São
articulados. Com suas jaquetas e aparelhos nos dentes, eles se destacam nas
filas tristes de gente deserdada que se forma ali todos os dias, depois das 5
da tarde, à espera de uma vaga para comer, banhar e dormir.
Suas histórias até podem ser tristes feito as do resto, mas
têm sabor de faroeste, embaladas por drogas pesadas, como o crack. As variações
para o tema são muitas: o “mendigo” que chega agora aos cadastros pode ter
dívidas no crime, estar em disfarces, ser usado por traficantes e até ser um
expulso das Unidades Paraná Seguro, as UPSs, instaladas em seis bairros da
cidade.
“Estou com saudade de encontrar um mendigo romântico, como
aqueles do cinema”, brinca a educadora carioca Edna Marinho, 42 anos. Ela já
cruzou com físicos, engenheiros e um homem que bem poderia ter habitado as
cavernas. Apelidou-o de Uga-Uga, talvez para amenizar o impacto de ter de
enfrentar alguém que ameaçava o atendimento com um pedaço de ripa. Por ora,
contudo, é impossível dizer quantos são esses neófitos no mundo da mendicância,
até porque não estão sós. Eles vêm acompanhados de outras comunidades incomuns,
como a dos gays, lésbicas e transexuais lançados à sarjeta.
Não é difícil perceber as mudanças que a tribo das drogas
trouxe ao cenário. Há quem se preocupe. “Esse lugar se tornou uma bomba prestes
a explodir”, compara Edson Luiz de Souza, da coordenação do Movimento Nacional
da População de Rua. Ele teme por um espaço que hoje abriga não mais centenas
de homens e mulheres igualados na pobreza extrema, mas também os espoliados
pela violência. É o encontro de dois mundos.
Impressões recolhidas
pela reportagem no mundo da mendicância:
1 - Organização – Vigora entre os moradores de rua a “lei do
mais forte”. Quem tem Bolsa Família ou “é bom de esmola”, por exemplo, pode
fazer valer sua vontade. Há também os líderes naturais, que tendem a agregar
pessoas. O conflito entre os grupos é comum.
2 - Tribalização – O povo da rua está tão tribalizado quanto
a sociedade em geral. O albergue da FAS reflete essa divisão. Existem as mesas
e quartos dos gays, lésbicas e transexuais; o gueto dos que têm transtorno
mental; e outros.
3 - Desafios – O atendimento maciço de moradores de rua no
Centro de Curitiba traz um efeito colateral. Moradores de rua socorridos em
outros bairros acabam ficando na região central, atraídos pelas esmolas e por
alimentação mais farta. Prefeitura estuda criar novos polos, promovendo a
integração nos lugares de origem.
4 - Detalhes – Os hóspedes do albergue da prefeitura
auxiliam a encontrar desaparecidos e formam uma “agência de emprego” informal.
O local é repleto de cartazes com oportunidades e de famílias em busca de
parentes.
O mais perigoso dos
mundos
O Movimento Nacional da População de Rua estima que 142
brasileiros em estado de mendicância tenham sido assassinados em 2011. De
acordo com líderes da ONG, esse dado está longe da realidade. “A maioria dos
casos não é notificada”, contesta o líder Edson Luiz de Souza. Além do mais,
diz ele, havendo endereços de familiares em algum cadastro de albergue, a
vítima deixa de ser identificada como morador de rua.
Quando se trata de agressão não seguida de morte, os índices
embaralham ainda mais. Por um motivo curioso: uma das crenças que rondam o
mundo da pobreza extrema é que os mendigos brigam entre si, na disputa por
território ou por bobagens motivadas pelo uso de álcool e drogas. Resumo da
ópera: cabeças rachadas não são levadas a sério pelas autoridades, acabando no
“deixa disso” e no ambulatório da Central de Resgate Social.
Para os grupos de direitos humanos, autoridades fazem corpo
mole na hora de investigar esses ataques, preferindo a versão de que não passa
de briga de mendigos. Apenas neste mês, em Curitiba, foram dois casos de
agressão a moradores de rua, um com faca, outro com fogo, em menos de cinco
horas entre um e outro. “Difícil sustentar que não houve uma relação entre
eles”, defende Edson.
Entre os que trabalham com a população de rua, a impressão é
diferente. Os cinco educadores sociais consultados pela reportagem entendem que
a população peca mais pela indiferença do que pela violência. O senão fica por
conta do avizinhamento cada vez maior do mundo do crime com o da mendicância,
fazendo da marquise não só o pior, como o mais perigoso dos mundos.
Fonte: Gazeta do Povo
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