A reportagem é um relato sobre a
vida de mulheres na prostituição aos 40, 50, 60 e até 70 anos. Segundo as
organizadoras do Grupo Mulheres da Luz, duas ex prostitutas e uma irmã da
Igreja, elas fazem o possível e o impossível para dignificar a vida dessas
mulheres.
“As mulheres que cumprimetei no
caminho na verdade estão todas se prostituindo”. Assim Cleone começa nossa
conversa enquanto caminhamos para a sede do Parque da Luz, ao lado da
Pinacoteca do Estado em São Paulo, uma construção antiga, tombada, e que hoje
abriga o Grupo Mulheres da Luz formado por duas ex-prostitutas L.T. (mantivemos
o nome em sigilo a pedido da entrevistada), Cleone e Regina, uma irmã da Igreja
que há anos auxilia mulheres prostitutas.
O grupo que foi se organizando
nesse espaço, conquistado mediante muita luta, possibilita que mulheres que se
prostituem durante a semana no parque tenham acesso a aulas, já que muitas
querem sanar a dificuldade de ler e escrever. A organização também serve como
apoio diverso e acolhimento, pois na maioria das vezes elas se sentem
solitárias e culpadas. Essa organização se dá mesmo na ausência de apoio
público e do próprio movimento feminista.
É no caminho até a sede do parque
que fui vendo uma face da prostituição muito distante daquela pintada pela
mídia com a imagem da Bruna Surfustinha e até mesmo da Bebel da novela Paraíso
Tropical. Glamour que não existe para as mulheres que estão no Parque da Luz. O
que vi foram várias mulheres que são auxiliadas pelo Grupo Mulheres da Luz,
sentadas em bancos da praça, cada qual no seu canto, algumas com maquiagem
colorida, roupas do dia a dia, algumas conversando entre si, outras nitidamente
apreensivas, e todas com a idade que eu remetia a minha avó e mãe.
Para quem passa desapercebido são
só mulheres sentadas numa praça. Para quem começa a observar atentamente são
muitas. Segundo os dados recolhidos pela irmã, ali ficam mulheres de 21 a 70
anos, mas a grande maioria da área tem entre 40 e 50 anos. O que choca é uma
mulher no auge dos seus 70 anos ali se prostituindo e sustentando netos e
filhos. Sim, a grande maioria tem filhos, netos e faz o que faz pelas suas
famílias.
Segundo a fundação francesa
Scelles, mais de 40 milhões de pessoas se prostituem no mundo. Dessas, 75% são
mulheres entre 13 e 25 anos. Sendo assim, as mulheres que na Luz se prostituem
fogem das estatísticas mundiais, fato que ajuda a entender toda a realidade de
maior vulnerabilidade a que elas estão expostas.
É no porão, a partir de algumas
cadeiras que foram doadas, que a sala de aula vai ganhando forma em um dos três
cômodos daquele espaço. Sento e fico de frente com L.T., Cleone e Regina. As
três que vão me expondo com desenvoltura a necessidade da criação de novas
possibilidades para as mulheres prostitutas do Parque da Luz.
Livros recolhidos para a
biblioteca que pretendem formar em um dos cômodos
Segundo Cleone, depois dos 28
anos, uma prostituta não tem mais “valor” nesse meio. Por isso muitas estão
ali, já que naquele espaço elas têm a possibilidade de se livrar dos temidos
cafetões. Mesmo com a segurança do parque, a não presença de um cafetão e a
idade mais avançada significam receber valores baixíssimos pelos programas:
entre 20 e 30 reais. O valor é abaixo do preço dos próprios hotéis da área,
geralmente usados para os programas. Esses costumam cobrar entre 30 e 50 reais.
A higiene dos espaços é nula. Os
lençóis não são trocados entre um programa e outro, os espaços são precários e
nem as toalhas de banho são lavadas, relata L.T. Segundo ela e Cleone, o
cliente geralmente se responsabiliza por pagar o hotel. Algumas delas, porém,
também usam esses espaços como dormitório, quando não possuem onde ficar, o que
acaba sendo recorrente.
“A violência começa quando a
gente esconde da família”.
É assim que L.T sintetiza as suas
vivências como prostituta. Segundo ela, a primeira violência é essa. Depois,
achar que a escolha é uma opção, quando para elas, as mulheres na verdade são
reféns de um sistema que por fim as tornam em pedaços de carne, vistas como
“boas de cama” e que quando são negras, um pedaço de carne que ganha menos.
Logo depois dessa opinião, que
diverge de algumas prostitutas ativistas, pergunto o posicionamento das três,
que se organizam durante todo final de ano para doar presentes e fazer almoços
para os filhos dessas mulheres que se prostituem, sobre a regulamentação da
prostituição e a resposta é unânime:
“Somos contra. Não podemos ser a
favor da regulamentação de algo que não se faz por escolha. A dignidade delas é
tirada, a maioria dessas mulheres não sabem quais são seus direitos”.
A irmã Regina ainda enfatiza que
muitas delas não querem nem ouvir falar sobre isso, pois acham que a
regulamentação inclusive não trará benefícios para elas. A maioria das mulheres
que se prostituem naquela área moram nas periferias e bordas da cidade de São
Paulo, enfrentam grandes distâncias de mais de três horas para chegar ao Centro
da metrópole, onde se prostituem muitas vezes sem a família saber. Fazem isso
para ajudar os filhos e netos que estão em situação difícil. Algumas mentem que
vão trabalhar como doméstica, quando na verdade vão para a praça se prostituir.
Essas mulheres, devido a essa condição, de acordo com Cleone, não querem ter
uma carteira assinada pois o anonimato as protege. Perguntei para Cleone se
para ela, mulher negra que já vivenciou a prostituição e agora auxilia o grupo
de apoio às diversas mulheres na mesma situação, se ela via alguma forma de
empoderamento na prostituição:
“Só haverá empoderamento se as
mulheres conseguirem estudar, ter acesso a políticas públicas, mas também
buscar uma forma de ter uma outra alternativa”.
Cartaz na parede da sede
É do próprio feminismo pautar que
na sociedade atual as mulheres ainda não são vistas como sujeitas. É claro que
mulheres negras já recorrem aos recortes para evidenciar que quando se une
classe, raça e gênero, como fatores que te colocam numa situação de
desprivilégio, a possibilidade de se fazer escolhas é praticamente nula para
mulheres negras, pobres e analfabetas, como é o caso de algumas mulheres que se
prostituem na Luz. Cleone e as parceiras de ativismo recolhem doações de
sabonetes, pastas de dentes e alimentos que têm como destino as mulheres e seus
familiares, já que isso suaviza o orçamento delas no fim do mês. Uma que tem o
filho numa penitenciária é uma das mais necessitadas nesse quesito, segundo a
irmã Regina:
“Estamos falando de necessidades
básicas. Elas precisam do básico”.
Regina tem num caderno dados
sobre essas mulheres. É assim que vão tendo um controle sobre a área e o que
precisam conseguir urgentemente para algumas delas. É terrível perceber que
elas não possuem muito apoio, mesmo de grupos que lutam pela emancipação
feminina. Pergunto do porquê dessa falta de apoio de feministas em amparar as mulheres
que estão na prostituição, passando necessidades financeiras e até fome. Cleone
é enfática:
“As feministas não têm claro qual
é a verdadeira situação das mulheres, principalmente as idosas que estão dentro
da prostituição”.
Cleone diz que nós mulheres,
prostitutas ou não, deveríamos nos unir para apoiar umas às outras,
principalmente as que precisam de acesso às políticas públicas e de recursos
que muitas vezes nos soam banais, como uma pasta de dente, mas que para elas
são um alívio no orçamento. Como os valores do programa são baixos, muitas não
conseguem nem o dinheiro para garantir as refeições e/ou a condução de volta.
Por isso o sonho de Cleone e da
irmã Regina é uma casa para acolher essas mulheres. O porão seria uma sede
provisória, para o sonho que elas admitem ser alto. Atualmente é só o Parque
fechar, de acordo com os seus horários comerciais, que algumas saem para se
prostituir ali nos arredores da Luz, de forma totalmente desprotegida. Outras
simplesmente viram a noite porque não têm onde dormir ou o dinheiro para voltar
para suas casas. Uma passagem hoje custa 3,80 e mesmo cobrando valores baixos
pelo programa, nem sempre elas garantem a possibilidade de voltar para a casa.
É naquele espaço público que as
protege, onde muitas vezes elas queriam ter o dinheiro da passagem e do dia
garantido para sair dali, que essas mulheres tem que escutar coisas como:
“Eu prefiro meu marido aqui com
vocês do que estuprando uma filha minha”.
As agressões psicológicas vão
tomando o ar dos comentários e são feitas descaradamente. Essa é verdadeira
face do Brasil, um mix de ódio de gênero, classe e raça que recai sobre
mulheres negras e/ou pobres que são invisíveis aos olhos de muitos que usam o parque
para cortar caminho, vão na Pinacoteca para prestigiar obras de arte e fazem da
Estação da Luz seu principal ponto de partida e chegada.
Cesto de camisinhas e livros
Os homens que procuram essas
mulheres e as usam para exacerbar seu ideal de masculinidade são em sua maioria
muito, muito pobres e muitos mais velhos do que os de filmes como Uma Linda
Mulher, que te fizeram romantizar a prostituição. Homens que pagam mais caro
para elas não exigirem preservativos e algumas inclusive aceitam pois precisam
dos reais a mais. Cinco, dez, quinze reais fazem muita diferença para essas
mulheres, que por isso aceitam e se tornam suscetíveis a sífilis, gonorreia,
entre outras DSTs. Lembrando que a A Lei Maria da Penha entende isso como
violência sexual.
A violência sexual é definida
pela Lei Maria da Penha no inciso III do Artigo 7o como “qualquer conduta que
constranja [a mulher] a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual
não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a
induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que
a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos” (Brasil, 2006).
Em linhas gerais as pessoas vão
dizer que não existe impedimento, mas uma mulher vulnerável não tem opções
diante da possibilidade de obter mais recursos financeiros cedendo e não usando
preservativos. A vulnerabilidade nas palavras de L.T é extrema. Além de física,
também é psicológica. Segundo a irmã, algumas delas têm doenças mentais e mesmo
assim continuam se prostituindo. Para Cleone, esse é um estrago causado pelo
sofrimento, que está envolvido em questões da realidade marginalizada dessas
mulheres e da situação que vivem enquanto prostitutas:
“Precisamos melhorar nosso
espaço, e ter um psicólogo promovendo atendimento aqui todo dia sem julgar
elas. Isso é urgente”.
Realmente o porão tem ainda um ar
de provisório. Elas ainda esperam os documentos para ficarem realmente com o
local e tornar ali uma área de acolhimento. O problema é que ainda faltam
recursos, ajuda e apoio de fora.
Cleone diz que até é convidada
para alguns debates sobre prostituição, mas se nega a ir pois a realidade dela
ali com essas mulheres é outra. Para as três, mesmo com todo apoio e histórico
de envolvimento com a luta de prostitutas, essas mulheres não querem debater a
regulamentação, pois entendem que é diferente estar aos 60 anos nesta situação
para comprar pasta de dente pro filho na prisão.
“Elas são independentes,
inclusive muitas buscam na prostituição a fuga de famílias patriarcais. Acabam
na prostituição e acham que terão vidas melhores. Meninas sensíveis,
inteligentes e sonhadoras”.
A irmã Regina enfatiza em vários
momentos o quão inteligente e cheias de capacidades distintas essas mulheres
têm caso lhes dessem chances. Por isso, para a irmã, o silenciamento que essas
mulheres sofrem é mais uma das violências sofridas por mulheres que deveriam
estar falando por si e tendo espaço para isso. São mulheres de uma potencialidade
humana e intelectual enormes que não falam e tem medo de falar, completa a
irmã.
No grupo tem mulheres que são
artistas, escritoras, desenhistas e pintoras. Eufóricas e com muita alegria
contam que uma delas escreve poesia. Eu pergunto se é algo como Carolina Maria
de Jesus e Cleone me diz que é essa a semelhança, uma mulher escrevendo o dia a
dia dela em papéis e nem sendo totalmente alfabetizada.
Não tem como não ficar triste com
a realidade que elas vão me relatando. É de apertar o peito. O Parque querendo
ou não protege essas mulheres que com a idade mais avançada são motivos de
chacota e repúdio. Algumas delas têm medo de qualquer coisa e preferem não
aparecer em fotos, entrevistas e eventos que pretendem debater a realidade da
prostituição no Brasil. Foram ensinadas e condicionadas a serem discretas e
silenciosas. É isso que uma mera passada no Parque evidência. É com o tempo e a
auto organização, que elas estão aprendendo a se auto proteger. As três sempre
repetem nas conversas com todas:
“Vocês tem voz, vocês precisam
ser unidas”.
Mesmo que as três afirmem isso,
ainda é complexo demais. Segundo elas, muitas brigas acontecem e por incrível
que pareça o mais difícil é lidar com os sentimentos distintos e a necessidade
de atenção de tantas mulheres. A sensação mais presente é a da culpa, de acordo
com a irmã Regina:
“Algumas aqui sentem muita culpa,
muita culpa mesmo. Sabem que os homens que pagam têm famílias e elas dizem que
o dinheiro dado para elas é amaldiçoado e por isso não conseguem sair da vida,
pois é o dinheiro do pão dos filhos que eles dão para elas.”
“Hoje eu ainda não pequei.” - É
isso que Cleone diz que escuta de uma das mulheres. E ainda completa: "Tem
dia que chego em casa e não consigo dormir”.
Cleone é uma mulher negra que
viveu a realidade distinta para negras na prostituição e que agora tenta com
seus esforços ajudar as mulheres que ainda estão nessa realidade, mas sem apoio
nenhum. O mito da mulher negra ser forte se materializa na sua imagem, de
alguém que também precisa de apoio para si, mas continua ali lutando
coletivamente por várias mulheres. A sensação é de impotência ao perceber que
mulheres que poderiam ser nossas mães, avós estão ali.
Pelo que elas me contaram, até
uma mulher de 80 anos já se prostituiu ali nas áreas centrais e por incrível
que pareça chamava atenção de jovens que viam nela a possibilidade de uma
experiência sexual diferente. Outra mulher negra que mesmo aos 80 anos era de
alguma forma o objeto de diversão das pessoas. Cleone me diz que uma já cega
continuou se prostituindo na Sé, e eu não consigo cogitar o que leva homens a
se envolver com idosa cega e pagando ela para isso. Outra aos 74 anos se
aposentou mas entrou em depressão, já que desde os 19 fazia isso e não sabia
que poderia fazer outra coisa da vida já que sempre foi prostituta. Por isso,
mesmo nessa idade preferia retomar o ofício. Poderia ser minha ou sua avó.
Estamos falando de um cenário de extrema pobreza que filmes nacionais insistem
em apenas retratar nas regiões norte e nordeste, mas que tive contato no centro
de São Paulo.
“Não queremos vitimizar essas
mulheres, mas queremos mostrar que elas existem”.
É a frase que escuto da irmã,
como se ela pedisse desculpas por contar que as mulheres são semi analfabetas e
algumas completamente analfabetas e têm a sua vida ali 24 horas do dia diante
do cenário de pobreza e miséria no meio do centro de uma das cidades mais ricas
do país.
Na gestão passada do ex prefeito
Haddad na na cidade de São Paulo, elas tiveram reuniões e momentos de discussão
via secretaria de política para mulheres. Atualmente elas não sabem como será
diante da gestão do PSDB do atual prefeito Dória em que já se nota políticas
higienistas que não beneficiam essas mulheres e nem qualquer outra população
vulnerável.
Talvez o pouco conquistado, como
ter uma relação com uma secretária da prefeitura, se perca na atual gestão. É
fato que tudo está em jogo e quem tem que pedir desculpas para essas mulheres é
a sociedade, que não possibilita nem o mínimo que as três pedem: um espaço para
dar comida, ensinar a ler e possibilitar a elas que durmam no centro quando necessário.
Fonte: Alma Preta
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