Sou do tempo em que no Carnaval
nossas mães soltavam a criatividade e
faziam para cada um de nós a mais linda e diferente fantasia: “de rei ou de
pirata ou jardineira”... diz a canção do poeta Vinicius de Moraes. E de
camponesa russa, de bailarina, de ursinho etc, etc. Quem já não vestiu cada uma dessas fantasias
e foi para o baile sentindo-se rainha ou pelo menos princesa, com todos os
olhares postos na sua pessoa?
Havia também os grupos. E eu participei de vários. Uma vez éramos 26 palhaços, rapazes e
mocinhas, todos de cara pintada, bata de seda, meias pretas. Em outra, 17 tiroleses. Eu fui de saia, a única. E a mancha verde se confundia com os confetes
e serpentinas. Naquele tempo, a maior
preocupação das mães era um de nós engolir confete e ter de parar no hospital.
Ou escorregar no chão cheio de
serpentinas molhadas e quebrar uma perna.
Sim, senhoras e senhores, a gente vai
ficando velha. Lança-perfume era só uma
deliciosa sensação de geladinho na perna, nas costas, na mão. E disputar quase a tapa a linda garrafa
dourada para brincar de casinha no dia seguinte. Em nossa inocência jamais soubemos o que Rita
Lee sabia. E que os garotos mais velhos que iam ao baile noturno dos clubes
também sabiam.
Para nós, pequenas, era brincar em
roda, fazer cordão, cantar e suar até se acabar. E quando a adolescência
começava a espreitar na porta, sentir o coração bater e o rosto corar, sem
precisar de maquiagem. Será que o namorado
ou “paquerado” viria ao baile? Será que
iria dançar conosco? Coisas que enchiam a imaginação, o afeto, o coração. Hoje, fantasia, quando é anunciada nos
desfiles e concursos, a vontade é perguntar: onde está? Porque quando não se resume a uma lantejoula
estrategicamente colocada na parte inferior do tronco, chega a, no máximo,
algumas pluminhas que balançam ao som da música e deixam adivinhar tudo que,
aliás, ninguém estava tentando esconder. A nudez é a fantasia na maioria das
vezes. Pois, para isso aquele corpo foi
submetido à mais rigorosa “malhação”, ao longo de todo o ano, a fim de poder
ser exibido sem cuidado nem pudor, mas, ao contrário, orgulhosamente, aos
olhares todos.
Não cabe aqui ser moralista. Fica até meio ridículo. Cabe, porém, tentar refletir. A realidade está aí para isso mesmo: ser
ruminada, digerida, refletida, mastigada. Reflitamos, então. Não estaremos indo na contramão da
civilização que levamos milênios para construir e edificar? Pois, na raiz da mesma está uma combinação
dos dois elementos: a nudez e a veste.
A primeira era apanágio dos
gregos. Na nudez estava o apanágio da
estética. E por isso as gravuras da
época cuidaram bem que ficasse material para que os artistas renascentistas
imortalizassem a beleza nua das deusas do Olimpo, como Vênus e Afrodite, que
deixavam ver o esplendor de seus corpos perfeitos para sempre escavados no
alvíssimo mármore. Até hoje peregrinamos
pelos museus europeus extasiando-nos diante dessas maravilhas.
Mas não só de Atenas vive a nossa cultura. Não podemos nos esquecer de Jerusalém, longe
de nós. E nesta cultura, a veste era a
coisa mais importante. Era a “carteira de identidade” da pessoa, pois revelava
a que meio social pertencia. E era
igualmente sinal de respeito.
Apresentar-se em algum lugar, sobretudo em um ritual ou uma festa, com a
veste inadequada era uma falta de respeito passível de ser punida com a
expulsão ou a rejeição mais radical.
Foi nesse terreno plural e rico que
aterrissou a mensagem cristã. E foi tão
natural como o desabrochar de uma flor identificar a nova vida em Cristo, que a
comunidade proclamava com entusiasmo e alegria com uma nova veste que devia ser
revestida e nunca retirada, a fim de fazer parte da personalidade da pessoa. Assim é que o Apóstolo diz uma e outra vez:
“Pois todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gal
3,27). Ou ainda “... e vos revestistes
do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem daquele que o criou,
até atingir o perfeito conhecimento” (Col 3,10).
Assim, no próximo Carnaval, vamos
brincar de ir vestidos. Não só vai ser
coisa nova, que vai chamar a atenção.
Mas pode ser, inclusive, testemunho de que estamos cheios de alegria,
justamente porque fomos revestidos d’Aquele que é a fonte da vida e da
alegria. Um bom e sadio Carnaval para
todos e todas!
Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A argila e o
espírito - Ensaios sobre ética, mística
e poética' (Ed. Garamond), entre outros livros
Fonte: Jornal do Brasil
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