Ela não tinha nenhuma ginga no
corpo, mas isso não impediu que Renata Rodrigues lançasse um bloco de Carnaval
nas ruas do Rio de Janeiro dois anos atrás. Quando a mulher de 40 anos viu uma
postagem viral no Facebook mostrando um cartaz que dizia "Eu não mereço
mulher rodada", ela ironizou a mensagem ao fundar um bloco feminista
chamado "Mulheres Rodadas".
A reportagem é de Clare
Richardson, publicada por Deutsche Welle, 24-02-2017.
A intenção é que o bloco fosse
apenas uma brincadeira entre poucos amigos, mas quase uma centena de pessoas
apareceu para o primeiro ensaio. Agora o bloco tem milhares de seguidores.
Neste ano, o Mulheres Rodadas está se preparando para o seu terceiro Carnaval
promovendo uma campanha de conscientização sobre assédio sexual usando a
hashtag #CarnavalSemAssedio. O Rio é conhecido por suas atitudes sexuais
liberais, que atingem o ápice durante os desfiles de Carnaval.
Desconhecidos se beijando pelas
ruas são parte da tradição. Mas o ambiente "ninguém é de ninguém"
também abre a porta para o assédio sexual desenfreado. Mulheres são apalpadas,
imobilizadas pelos braços e beijadas à força.
"Em festas em que as pessoas
estão nas ruas, como o Carnaval, as pessoas estão mais vulneráveis a sofrerem
assédio ou estupro", afirma Renata Rodrigues.
Mas os brasileiros parecem não se
preocupar muito com o problema. Uma pesquisa realizada em 2016 pelo instituto
paulista Data Popular mostrou que 61% dos homens acreditam que uma mulher que
vai pular o Carnaval sozinha não pode reclamar de assédio sexual, e 49%
afirmaram que um bloco de Carnaval não é lugar para uma mulher decente.
A ideia de que o Carnaval
funciona como uma grande festa democrática que reúne pessoas independente do
gênero, raça ou classe acaba mascarando o racismo e sexismo profundamente
enraizados. Imagens lascivas de mulheres negras vestindo nada além de penas e
lantejoulas são transmitidas para o mundo todo.
Hiperssexualização e preconceito
Nas residências brasileiras, a
hiperssexualização das mulheres negras era até este ano encarnada por uma
mulata que escolhida anualmente para interpretar o papel de
"Globeleza" – uma junção do nome da emissora de TV Globo e a palavra
"beleza".
A escolhida era sempre uma mulher
negra pintada com glitter. Durante a temporada de Carnaval, a Globeleza
aparecia em diversas inserções televisivas com closes que destacavam suas
partes inferiores. Neste ano, a emissora anunciou que não iria mais promover
uma mulata e optou por mostrar diferentes foliões – usando mais roupas.
Mas muitas das mais populares
marchinhas de Carnaval ainda refletem velhas atitudes. Elas incluem letras
racistas e sexistas sobre mulatas como O teu cabelo não nega.
O problema vai, porém muito além
do assédio e do que ocorre no Carnaval; o Brasil tem índices de chocantes de
violência sexual. De acordo com relatório de segurança pública de 2014, uma
pessoa é estuprada a cada 11 minutos no país – e o número real deve ser muito
maior se forem considerados os casos que não são reportados.
O país também tem uma das mais
altas taxas de homicídios contra mulheres no mundo. Ainda que o número de
homicídios de mulheres brancas esteja em declínio, as estatísticas envolvendo
mulheres negras dispararam.
Analba Brazão, uma ativista do
SOS Corpo, uma organização feminista do Recife, afirma ser fã do Carnaval. No
entanto, ela diz que a violência contra mulheres é amplificada em eventos de
rua. "As mulheres no Brasil não têm a liberdade de estar na rua. Elas
ficam expostas", diz. "Nossa luta é pelo direito de pode sair em
público e contar com segurança".
Antigas mazelas
Daiane Monteiro, de 29 anos,
estava tomando algo em um café quando o bloco Mulheres Rodadas passou pelo
local na última sexta-feira para um ensaio de pré-Carnaval. A jovem, que toca
um instrumento de sinos chamado agogô em uma das mais tradicionais escolas de
samba do Rio, gostou da iniciativa do grupo, mas disse não achar que o assédio
sexual ainda continua a ser um grande problema no Rio.
No entanto, Daiane Rodrigues
pensa que assumir novos papéis na música não é o bastante. "Mulheres estão
por toda parte nos blocos e escolas de samba, mas elas não se tornam mestres de
baterias, não conduzem as bandas e não tomam decisões", conta.
Raquel Fialho, de 36 anos, vai
tocar o xequerê com o Mulheres Rodadas pela primeira vez neste ano. "Eu vi
eles no ano passado e fiquei encantada", afirma. "Foi algo muito
poderoso, bonito e colorido". Ela sabe que as tradições do Carnaval contam
com décadas de história e que mudar as atitudes será um longo processo: "Não
podemos esperar mudar as ideias em apenas alguns anos."
Muitos no Brasil também temem que
direitos conquistados pelas mulheres estejam sob risco com o presidente Michel
Temer, que lidera o governo mais conservador desde o fim do regime militar.
Quando Temer anunciou o seu primeiro ministério após assumir interinamente, as
pastas não incluíam nenhuma mulher.
Ele também aboliu o status de
ministério das secretarias de Políticas para as Mulheres, de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial, e de Direitos Humanos. As responsabilidades das
pastas passaram a ser atribuição do Ministério da Justiça.
"Nosso grupo começou como
uma brincadeira, mas é na verdade muito sério", reforça Renata Rodrigues,
a criadora do bloco.
"O Carnaval é talvez a mais
importante forma de protesto no Brasil."
Fonte: Ihu
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