sexta-feira, 3 de março de 2017

Caso Bruno e o Feminicídio: é preciso entender que a mulher não é culpada

Goleiro Bruno Fernandes. Foto: Marcelo Albert/TJMG
A saída do goleiro Bruno da prisão é um instrumento significativo para discussão sobre o feminicídio. E tratando não apenas dele, assassino confesso, mas também da relação enigmática entre as mulheres e os homens que cometem crimes contra elas.


Por Emanuela Carvalho, do Estadão

No caso específico de Bruno, três mulheres podem ser citadas: Eliza Samudio – a vítima,
Dayanne Rodrigues, a esposa do goleiro na época do crime, e Ingrid Calheiros, a atual esposa.

Eliza e Bruno mantinham uma relação conflituosa, que se agravou depois que ela engravidou.
Ele não aceitava a gravidez, era agressivo e a obrigou a fazer um aborto, o que não aconteceu.
É possível presumir, pelo contexto, que era um relacionamento abusivo, com agressões físicas
e verbais, e a exigência de que ela tomasse uma decisão contrária à sua, de tirar o próprio
filho, o que não aconteceu e acarretou no assassinato.
Por que Eliza aceitou viver essa relação? A pergunta não terá resposta nesse texto, mas é preciso perceber que ali ela já assumia a sua condição de vítima e não de culpada. Acusá-la por ter perdido a própria vida só é menos cruel do que matá-la e esquartejá-la, de fato. Denegrir a sua imagem é o início: amante, modelo que havia atuado em filme pornô, mãe de um filho “ilegítimo”. As justificativas? Ela poderia ter sido obediente, ter feito o aborto e nada disso
teria acontecido. Poderia ter se afastado dele quando as agressões começaram. Poderia. Mas qual a garantia de não ter sido morta por qualquer outro motivo?

Nesse enredo aparece Dayanne, esposa de Bruno na época do crime, que foi presa por sequestro e cárcere privado do bebê, filho de Eliza e Bruno. Dayanne tem 3 filhos, sendo que um deles não tem a paternidade assumida pelo goleiro. Parece que gravidez aconteceu enquanto ele estava encarcerado, durante as visitas íntimas.

É mais uma mulher envolvida na trama, que sabia do caso extraconjugal do marido e decidiu ser cúmplice, talvez de “olhos vendados”, sem saber ao certo qual seria a consequência de ter aceitado cuidar do bebê naquele momento.

Pouco adiantou a cumplicidade de Dayanne para a manutenção do seu relacionamento. Bastaram alguns meses para o goleiro manifestar a vontade de se separar e assumir oficialmente uma relação com Ingrid, sua atual mulher, que na época, também mantinha um relacionamento com Bruno, enquanto ele era casado com Dayanne, tinha uma relação com Eliza e a matou. Ingrid e Bruno se casaram em 2016, depois de 5 anos de namoro. A cerimônia aconteceu dentro do presídio.

O questionamento não é sobre o direito do goleiro de reconstruir a sua própria vida. Sim, porque essa oportunidade ele terá, ao contrário de Eliza, que foi morta. É sobre o comportamento de muitas mulheres diante de homens que comentem crimes, entre eles, o feminicídio. Seriam Dayanne e Ingrid solidárias a Bruno? Acreditam em sua inocência ou encaram que ele assassinou Eliza e decidiram ficar ao seu lado, apesar disso?

Ao visitar uma penitenciária feminina, é possível perceber nitidamente que mulheres em situação de cárcere são, muitas vezes (muitas!) esquecidas, abandonadas pelos seus companheiros. As visitas são infinitamente mais raras do que nos presídios masculinos, onde mulheres chegam a pernoitar na porta para serem as primeiras a entrar e aproveitar o máximo de tempo com os seus companheiros.

É preciso refletir sobre isso. Então as mulheres, por cometerem um crime, seja ele qual for, já não são mais dignas da atenção masculina? Devem pagar pelos próprios erros sozinhas, sem apoio, porque muitos homens desistem da relação logo que elas são detidas, ou pouco tempo depois?

E invertendo os papéis, elas estão sempre ali, suportando procedimentos tão vexatórios quanto necessários de revistas na entrada do presídio, visitas íntimas com dia e hora marcada, maus tratos de muitos dos homens, impacientes, revoltados, agressivos.

O certo seria então deixar os homens sozinhos, isolados, como eles fazem com as mulheres em situação de cárcere? Cabe a cada mulher decidir o que é certo, mas é importante que compreendam a situação em que vivem, o que suportam, ao que se submetem por uma suposta garantia de permanecerem num relacionamento, fazendo sempre o exercício de se questionarem: e se fosse o contrário?

Quando a mulher é a assassina, o seu companheiro permanece com ela por quanto tempo?

Está disposto a se submeter às visitas íntimas, que não são fáceis de ser conseguidas? (em média, há uma espera de seis meses para que se regularize a visita íntima). Esperaria esse homem para entrar numa penitenciária e fazer sexo com ela num período marcado de uma hora? Em condições, por vezes, improvisadas, desconfortáveis?

É claro que é possível encontrar um homem que esteja disposto, mas é comum? – pergunta retórica.

Até onde o romantismo e a idealização, tão presentes no universo feminino, levarão as mulheres a ignorarem as condições escolhidas por elas mesmas para viverem relações com homens que são potenciais agressores de mulheres, abusadores, quando não assassinos? E de que forma elas reagem a esse comportamento masculino? É compreendendo e aceitando, oferecendo apoio e suporte, ou sendo coniventes, acreditando e incentivando outros a acreditarem que se aquele homem agrediu ou matou uma mulher, a culpa é da mulher, que na verdade é vítima, e não dele?

Encerrando o assunto, por ora, de quem é a culpa por ter sido morta?

*Emanuela Carvalho é professora e autora do livro “Antes Feliz do que Mal Acompanhada”

Fonte: Estadão

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