Os três dias de folia se referem
e encontram significação no mistério cristão, já que a festa carnavalesca
nasce, agoniza e morre em três dias. Sendo um evento sincrônico, repetitivo,
prenhe de conteúdos cognitivos e afetivos, o Carnaval tornou-se e passou a ser
um tempo social importante, fortemente ligado à experiência vital de uma
sociedade, muito especialmente da sociedade brasileira.
Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
É parte constitutiva da
identidade do ser humano o elemento da festa. A festa interrompe o tempo
cotidiano e introduz a diferença do ritual e da celebração, a fim de marcar uma
ocasião especial em que é preciso deixar a rotina e voltar os olhos para o
extraordinário que irrompe no tempo cronológico. Todas as festas são eventos
pelos quais se entra em "outra" ordem de coisas, onde a fantasia, a
imaginação e o desejo tomam lugar.
Festejar, portanto, é reafirmar
nossa condição de ser humano, é sublinhar o fato de que não somos guiados
apenas pelos instintos e pelo kronos que implacavelmente passa. Festejar é
demonstrar que temos algum senhorio sobre o tempo, transfigurando-o com o rito
da comemoração e da celebração. Em tempo de preparação e espera do carnaval, as
reflexões acima se aplicariam a essa festa. Somos instigados a refletir sobre o
sentido e o objetivo da música e da dança, dos espetáculos cheios de luzes e
cofres, dos corpos desnudados e fantasiados em desfile, do samba na rua, de
tudo isso que compõe os três dias que o povo espera com sofreguidão.
Torna-se isto ainda mais
importante no Brasil, país onde o carnaval ocupa lugar central no imaginário do
povo. Chamado com justeza país do Carnaval, o Brasil parece que entra em câmara
lenta no Ano Novo para só recuperar seu ritmo e dinamismo depois dos festejos
momescos. Efetivamente, a maioria daqueles e daquelas que "brincam" o
Carnaval conhecem pouco ou nada do seu sentido mais profundo. A primeira
dimensão dos folguedos carnavalescos tem a ver com um tempo religioso, cósmico
e sagrado, onde a Transcendência mesma é que irrompe e transfigura o kronos.
O antropólogo Roberto da Matta
nos chama a atenção em seu conhecido livro "Carnavais, malandros e
heróis" para o fato de que o carnaval fica suspenso entre o Advento (tempo
ligado ao nascimento de Cristo que é celebrado no Natal) e os 40 dias da
Quaresma, esse período de penitência e mortificação que visa a conversão
(metanoia), o qual culmina com a celebração dos mistérios da paixão, morte e
ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
De fato, é como se todo o ritual
carnavalesco, tão apaixonadamente preparado e vivido pelo povo e que tantos
milhões rende aos bolsos dos donos das festas e desfiles só deixasse brilhar
seu verdadeiro sentido quando o silêncio da Quarta-feira de cinzas se faz, com
seu ritual das cinzas aplicadas em cruz sobre a testa dos penitentes
acompanhado das palavras: Convertei-vos e crede no Evangelho.
A quarta-feira onde tudo se
acaba, proclama sua morte, que se encontra, agora, assumida pela disciplina da
Quaresma que substitui os folguedos e a descontração carnavalesca. O carnaval,
portanto, não tem rosto próprio, já que sua identidade lhe é dada por um outro
tempo e uma outra ordem de coisas e de sentido. Figura ele ainda seguindo a
Roberto da Matta - como um momento sem nome ou vez, escondido que está nas
dobras de um calendário sagrado. Situada entre o nascimento e a paixão, morte e
ressurreição de Jesus Cristo, a festa que é o reinado de Momo é efêmera como as
alegrias e gozos imediatos. Ela como que assume e resume simbolicamente os
momentos crísticos do Natal e da Páscoa, e a numerologia cristã dos três dias de
que fala o Novo Testamento. O carnaval em si mesmo, portanto, é um evento
relativo.
Com todo o brilho e o ruído que
atraem todos os focos de atenção, na verdade está simplesmente resumindo algo
de fulgor bem maior e duradouro: os três dias de folia se referem e encontram
significação no mistério cristão, já que a festa carnavalesca nasce, agoniza e
morre em três dias. Sendo um evento sincrônico, repetitivo, prenhe de conteúdos
cognitivos e afetivos, o Carnaval tornou-se e passou a ser um tempo social importante,
fortemente ligado à experiência vital de uma sociedade, muito especialmente da
sociedade brasileira.
Em uma leitura informada pela fé,
porém, e mesmo aos olhos das Ciências Sociais, o Carnaval só pode ser
compreendido no contexto da visão de mundo cristão. Carnaval e Quaresma no
calendário cristão -que rege o mundo após a queda do Império Romano- opõem-se
ao ciclo anual por seus conteúdos sociais e religiosos, implicando
comportamentos individuais e coletivos opostos. Mas, na verdade, encontram seu ponto
luminoso e iluminador na mesma pessoa de Jesus Cristo, Sol que nunca se apaga,
Vivente por excelência, sobre quem a efemeridade das coisas e a corrupção da
morte não têm poder.
Fonte : Adital
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