terça-feira, 1 de março de 2016

“Não vendemos nossos corpos, eles não são um produto”

A trabalhadora sexual Felicia Anna comenta em seu blog o primeiro programa da série “Jojanneke no mundo da prostituição”, conduzido pela jornalista Jojanneke van den Berge no canal de televisão evangélico holandês eo.nl. Felicia Anna, 27, é romena e trabalha no Distrito da Luz Vermelha de Amsterdã.


Bom, eu poderia dizer muito sobre o programa da Jojanneke, mas, principalmente, estou decepcionada. Ela não mostrou nenhuma das coisas que havia declarado antes do programa, e que pareciam ser voltadas principalmente contra o Distrito da Luz Vermelha de Amsterdã. Para proteger a identidade de algumas das garotas no vídeo, não vou postá-lo aqui – um conceito que aparentemente é difícil para Jojanneke entender.

Nesse primeiro episódio, ela levanta a questão de se a prostituição é um trabalho normal. Em primeiro lugar, Jojanneke parece estar sob a impressão de que se você não gosta de seu trabalho, você deve estar sendo forçada, ou deve haver algo de errado com essa profissão. Ela não chama isso de livre escolha, mas, se não podemos chamar de livre escolha, muito mais gente, fora da prostituição, também é forçada. Tanta gente no mundo não gosta de seu trabalho, isso não significa que seu trabalho é anormal, ou que essas pessoas são forçadas – só que Jojanneke tem dificuldades em aceitá-la como um trabalho normal.

Jojanneke diz que é legal um cafetão colocar alguém na prostituição, desde que ela concorde com isso. Isso não é verdade, absolutamente. Um cafetão é alguém que lucra com a prostituição, e isso é chamado de exploração, e exploração é tráfico humano, de acordo com a lei holandesa, sob o artigo 273F. Estou surpresa ao ver que mesmo depois de dois anos mergulhando na prostituição, ela ainda não sabe disso.

O que Jojanneke mostra, contudo, é que a prostituição ainda não é um trabalho aceito. Sua declaração de que tantas pessoas na Holanda encaram a prostituição como um trabalho normal é uma ideia que aparentemente ela tirou de sua própria cabeça. Porque a realidade, e estou falando com base em minha própria experiência, é que as pessoas não aceitam isso. Os bancos nos rejeitam na maior parte das vezes porque fazemos esse trabalho, como também é mostrado no documentário, mesmo que seja legal. As pessoas não consideram isso normal, o que cria um estigma.

O que Jojanneke provou com seu documentário é que a prostituição ainda não é aceita. Não que o trabalho não seja normal, mas as pessoas ainda não a consideram normal, e disso o maior exemplo é ela em seu próprio programa. Esse é o estigma que enfrentamos diariamente. As pessoas pensam que não estamos fazendo um trabalho normal, de modo que ou somos vítimas tristes, ou devemos ser vagabundas sujas e loucas. Jojanneke tenta mostrar que somos principalmente figuras tristes, enquanto, na realidade, não somos diferentes das outras pessoas; elas nos veem diferentes por causa desse trabalho.

Por exemplo, quando Jojanneke tenta descobrir quais são os preços, e se as garotas trabalham sem camisinha, vemos todas as garotas responderem o preço que é comum para aquelas áreas: € 50 em Amsterdã, € 35 em outros lugares da Holanda e € 25 em Haia. Algumas garotas fazem sem camisinha, mas não tantas assim. Uma garota responde que muitas garotas têm Aids – é claro que isso não é verdade, é um truque que algumas usam para assustar os clientes de modo que eles não façam sem camisinha, mas é claro que Jojanneke usa isso para enquadrar a coisa de forma negativa.

De fato, na última conferência sobre Aids em Melbourne, eles declararam que legalizar a prostituição ajuda no combate ao HIV e à Aids, como vocês podem ler aqui. [ou aqui.]

Jojanneke também fica dizendo que nós “vendemos nossos corpos”, um erro comum, que muitas pessoas cometem. Já escrevi antes em meu blog, e digo novamente aqui: Vender seu corpo significa que alguém te possui, e pode te levar para casa, e não é esse o caso. Não vendemos nossos corpos, eles não são um produto; oferecemos um serviço, um serviço sexual, da mesma maneira como um dentista oferece seus serviços para teus dentes, ou um psicólogo para a tua mente. Também não se diz que uma massagista está vendendo suas mãos, ou que um psicólogo está vendendo seu cérebro, ou coisas assim.

Quando indagado por Jojanneke se permitiria que sua própria filha fizesse esse trabalho, sua resposta é, naturalmente, negativa. Afinal de contas, prostituição é um trabalho duro que não é para qualquer um; isso não significa que somos forçadas. Mas, como no caso de entrar para a indústria da pornografia ou para o exército, acho que muitos pais têm dificuldade com isso. É natural, mas isso não significa que a prostituição não pode ser uma profissão normal, apenas porque os pais se opõem a ela.

Acho que a loira romena que fala no programa é uma representação muito boa das trabalhadoras sexuais romenas e búlgaras. Elas são independentes, fazem esse trabalho simplesmente pelo dinheiro e não têm problemas em fazer sexo com seus clientes. Jojanneke obviamente ficou tentando fazer as coisas parecerem tristes para aquela garota, porque ela está trabalhando para sustentar sua filha, mas qual é o pai ou mãe que não trabalha por suas crianças? Isso não diz nada sobre o trabalho, mas só sobre a motivação que muitas mulheres nesse negócio têm para fazer esse trabalho.

Jojanneke parece ser obcecada principalmente com o fato de termos sexo com nossos clientes, ao ficar calculando com quantos homens precisamos ter sexo de modo a pagar as contas. Mas repito, é um trabalho que gira em torno de ter sexo; se você não quer, é claro que você está no tipo errado de trabalho. Se há garotas que têm problemas em ter sexo por dinheiro, elas deveriam procurar outro trabalho, afinal de contas, esse é o sentido desse trabalho como um todo. O que você pensa que iria fazer na prostituição: vender flores? Há muitos programas de saída para ajudar prostitutas a saírem, de modo que, se você não gosta de ter sexo com clientes por dinheiro, então use-os!

Jojanneke também parece ter a impressão de que temos que aceitar botar pra dentro qualquer cliente. Quando ela pergunta a um cliente se ele gostaria, se tivesse que satisfazer mulheres sujas, fedidas, até mesmo menstruando, Jojanneke usa um videoclipe feito pelo Lobby Europeu de Mulheres para demonstrar isso, o mesmo grupo de lobby que estava entre os responsáveis pelo Parlamento Europeu aceitar uma resolução de aceitar o modelo sueco, no qual clientes de prostitutas são criminalizados. Isso já mostra de que lado Jojanneke está com seu documentário, mesmo que ela diga que é objetiva. Ela esquece que prostitutas também têm o direito de recusar fregueses, e também faz isso (!) quando a mulher holandesa explica ao dizer que recusa 70% dos clientes. Por falar nisso, o videoclipe também parece esquecer que existem camisinhas para mulheres, também, mas aparentemente, Jojanneke e o Lobby Europeu de Mulheres não sabem disso? Acho que é importante aumentar a conscientização sobre sexo seguro, portanto por favor, gente, usem camisinha, as mulheres também!

Jojanneke encerra seu documentário dizendo que frequentemente garotas são forçadas. Mas como vimos no documentário, todas aquelas mulheres escolheram fazer esse trabalho de livre e espontânea vontade. Pode não ser o trabalho dos sonhos, ou o melhor trabalho do mundo, mas ele paga as contas. Ela não provou as coisas que disse.

Fico pensando numa coisa. Em seu documentário, Jojanneke exibe um cafetão; aparentemente, foi fácil para ela encontrar um. Faz a gente pensar por que a polícia não consegue encontrar esse homen, se esse cafetão é um cafetão de verdade? As coisas que esse cafetão disse são ridículas. Estou trabalhando aqui há cinco anos, de cinco a seis dias por semana, e nunca ninguém veio bater à minha porta querendo ser meu cafetão, como esse homem diz, e também nenhuma de minhas colegas. E isso também não parece uma boa ideia, porque policiais estão sempre andando pela área, e sempre há outras pessoas passando. Cafetões de verdade ficam longe das janelas, porque o risco simplesmente é muito grande.

Ele diz que precisamos de proteção, mas nós já temos proteção da polícia, é por isso que [o trabalho sexual] foi legalizado aqui! Temos um botão de alarme que podemos acionar em caso de emergência; por isso, de que proteção a mais nós precisamos? Ele também diz que apenas 5% a 10% não são forçadas, mas eu duvido muito da autenticidade desse homem.

O modo como ele fala sobre mulheres não é algo que atrairia mulheres – o que seria problemático nessa linha de trabalho, porque ele precisa atrair mulheres para seu trabalho. Isso também vai contra todas aquelas histórias que sempre contam sobre gigolôs e cafetões, que eles são charmosos, e não se encontra nada disso nesse homem.

Ela também tentou mostrar que garotas menores, sem passaporte, também estariam trabalhando por trás das janelas. Não posso falar pelo resto do país, mas como vocês viram, ninguém aceita isso aqui em Amsterdã, o que novamente prova que declarações sobre garotas trabalhando sem passaporte ou abaio da idade são absolutamente falsas.

A questão de se a prostituição é ou não um trabalho normal parece ser respondida, no documentário, pela opinião das pessoas sobe nossa profissão, que se baseia principalmente em preconceitos. Como no caso das pessoas gays, enquanto as pessoas tiverem preconceito sobre isso, isso não será aceito, e portanto não será visto como ‘normal’. Mas as pessoas gays não são normais só porque há preconceito sobre elas?

Todos sabemos que há coisas erradas na prostituição; algumas garotas são forçadas, outras exploradas. Já sabemos disso, não é novidade. Mas a premisa de que ‘70% seriam forçadas’ não foi comprovada; na verdade, há muito pouca evidência disso. A maior parte das ‘provas’ pareve estar no julgamento de Jojanneke sobre se ela sente que aquelas garotas estão sendo forçadas ou não – não por um cafetão, mas pelas circunstâncias econômicas, o que na linguagem comum chamamos simplesmente de kapitalismo.

Sim, as pessoas têm que trabalhar para ganhar a vida! Sim, as pessoas têm que trabalhar para dar um futuro melhor para seus filhos e filhas! Isso não é novidade, vale para quase todo mundo, e a prostituição não é exceção a essa regra. Isso não nos torna forçadas, isso só prova que nosso trabalho é tão normal como qualquer trabalho no mundo; as pessoas é que não veem nosso trabalho como normal.

A ironia é que há um estigma enorme sobre a prostituição. Esse estigma leva suas vítimas a serem tímidas ao sair, causa muitos problemas para levar uma vida normal para todo o resto das prostitutas, e o documentário de Jojanneke só aumenta esse estigma. Portanto, ao invés de ajudar todas aquelas garotas que Jojannele diz ‘querer ajudar’, ela só piorou as coisas, tanto para as vítimas como para as trabalhadoras sexuais, au aumentar o estigma. Muito obrigada, Jojanneke!


Fonte: http://www.mundoinvisivel.org/

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