Dados do último Mapa da Violência
denotam aumento de 54% nos homicídios de mulheres negras, enquanto o
assassinatos de brancas caiu 9,8%. O que explica isso? Uma complexidade de
questões!
Por Nana Queiroz
– A delegada não apura esses
crimes que rolam depois da meia-noite – Marlene Anunciação ouviu um dos
funcionários da delegacia cochichar, em profunda consternação, enquanto tentava
saber detalhes da investigação do assassinato de sua menina – Ela tava no lugar
errado na hora errada! Tá procurando o quê andando na rua uma hora dessas?!
Engolindo soluços, ela se esforça
pra lembrar o rosto da filha, Juliene, já tão obscurecido pelos boatos e os
maus julgamentos dos policiais, dos jornais de fofocas e da língua afiada de
quem não tem o que fazer. Juliene de sorrisos fáceis, sua menina alegre de 19
anos, que achava que todo mundo era seu amigo. Juliene que dançava sem se
cansar. Juliene que ia prestar vestibular de educação física na semana
seguinte. Juliene que tinha tantos sonhos que nunca ia realizar – meu Deus! -,
a Juliene que foi enforcada com as próprias calças e teve o corpo exibido em um
estádio em Cuiabá, no Mato Grosso, seu corpo nu e negro estirado pros olhos
despudorados da população, como na época da escravidão. Como uma mãe vai
esquecer uma coisa dessas, mesmo depois de 4 anos?
Durante a entrevista à Revista
AzMina, Marlene não demorou a deixar o choro vir, desregrado, e embotar a fala
e o pensamento. “Disseram que ela era garota de programa, mas ela não era nada
disso! E, se fosse, mesmo assim, quem mereceria uma coisa dessas?”, desabafa.
“Ela fazia curso de telemarketing no Senai, não era menina de rua… Linda, minha
filha, linda. Ela veio pro mundo só pra fazer nossa vida feliz e foi embora
dessa maneira tão bárbara. Ela não fazia mal pra ninguém, eu não entendo o que
pode ter acontecido. Parece um crime de ódio, por que isso?”
A dor de Marlene, contudo, não
toca o mundo. Não comoveu os investigadores que, segundo ela, praticamente
abandonaram o caso há anos. “Não temos influência ou dinheiro, o pai vende
joias e eu sou professora. E ainda tem o racismo. A polícia não dá atenção pra
crimes assim”, opina.
Um dado do mais recente Mapa da
Violência, tão chocante quanto a história de Juliene, também não provocou muita
comoção na sociedade. Na verdade, nem sequer fez manchetes nos principais
jornais. O levantamento mostrou que, nos últimos dez anos, o número de
homicídios de mulheres negras, como Juliene, cresceu 54%, enquanto a quantidade
de assassinatos de mulheres brancas caiu 9,8%. Em 2003, quando a raça das
vítimas começou a ser informada nos relatórios de crimes, os homicídios de
mulheres negras eram 22,9% do total e em 2014, último ano analisado, saltaram
para 66,7%. Enquanto a criação de disques denúncia, campanhas de
conscientização e popularização do feminismo tornaram o mundo mais seguro para
as brasileiras brancas, por que as negras estariam morrendo mais?
Segundo Julio Jacobo Waiselfisz,
coordenador de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais (FLACSO), que faz o Mapa da Violência, é preciso começar a debater a
questão derrubando alguns mitos. Um dos argumentos para diminuir o peso do
dado, por exemplo, é o de que, na verdade, o que aumentou foi o número de
mulheres que se reconhecem como negras ou pardas no Brasil, a partir da
popularização do movimento negro. “De fato, no período analisado, cresceu
significativamente a população negra e parda de uma maneira que não se
justifica pela dinâmica da reprodução, mas pela dinâmica ideológica”, argumenta
Jacobo. “Mas nem tudo se explica por esse incremento, pois o crescimento da
autoidentificação como preta ou parda no IBGE ainda é muito menor que o
crescimento no número de homicídios de mulheres desses grupos.”
Em 2003, o número de pessoas que
se declaravam pretas ou pardas no censo do IBGE, era de 47,3%. Em 2013, último
ano avaliado pelo Mapa da Violência, o número havia inflado para 53%, ou seja,
um aumento percentual de 5,7 o que ainda é bem inferior ao crescimento de 54%
da taxa de homicídios entre mulheres de cor negra, como aponta o pesquisador.
Restam 48,3 pontos percentuais a serem explicados.
Para Jacobo e outros
especialistas ouvidos pela Revista AzMina, a diferença entre os assassinatos de
mulheres negras e brancas não pode ser analisada sem levar em conta o racismo.
O mito de que o Brasil seria o “paraíso racial” e que teria superado todo o
preconceito através da miscigenação impediu, por muitos anos, que informações
sobre a cor de pele das vítimas fossem coletadas junto aos relatórios de
homicídios. Só na virada do século é que a equipe do Mapa da Violência
conseguiu dados consistentes para fazer, pela primeira vez agora, essa análise.
“O que o Mapa da Violência nos
mostra, no entanto, é o quanto é enganosa a visão de ‘paraíso racial’: a
sociedade brasileira aplica a violência de forma extremamente discriminatória.
O homicídio e o feminicídio vêm se reproduzindo entre todas as faixas etárias e
grupos sociais, mas com maior intensidade entre grupos de pele mais escura.”
Outros levantamentos comprovam a
teoria de Jacobo em relação especificamente às mulheres. Em 2014, o estudo
“Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, feito pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrou que quando estupradas,
as mulheres negras têm 37% mais chances de contrair doenças sexualmente
transmissíveis do que as brancas – talvez por falta de acompanhamento médico e
coquetéis preventivos logo após a violência. “No Brasil, ainda se insiste em
acreditar que os males pelos quais passam as mulheres negras são apenas uma
questão social e não de uma questão de racismo. Isso não é verdade. Estamos
falando de racismo”, reforça Maitê Lourenço, psicóloga que trabalha com o
empoderamento de mulheres negras.
Questão de classe
Isso não quer dizer que pobreza
não seja parte do problema. Em 2013, último ano do levantamento considerado no
Mapa da Violência, o IPEA revelou que o salário médio de pessoas negras no
Brasil era R$ 876,40, enquanto brancos ganhavam em torno de R$ 1.517,70. O
mesmo estudo monitorou até 2009 a diferença de escolaridade entre mulheres
negras e brancas, sendo a média das primeiras 7,8 anos e a das últimas, 9,7.
Recentemente, a crise também está castigando mais mulheres negras: de janeiro a
novembro do ano passado, a taxa de desocupação feminina geral chegou a 7,9%,
mas entre pretas e pardas alcançou os 9%.
Jacobo lembra que, a partir da
década de 1990, diante da ineficiência do aparelho de segurança, começou no
Brasil a privatização da segurança pública. Como resultado desse fenômeno, quem
podia começou a pagar uma segurança privada e quem não podia ficou mais
vulnerável. Foi então que entraram em cena os carros blindados, as guaritas de
prédio, os sistemas de câmera e cerca elétrica, etc. E a população negra,
pauperizada, não pode arcar com nada disso.
“A violência afeta mais a
população porque é pobre do que porque é negra. Isso não significa que não
exista racismo, existe racismo que se reflete em questão racial e uma questão
racial que se reflete numa questão econômica. Elas se retroalimentam para criar
vulnerabilidades”, analisa Jacobo.
Para Marlene, mãe citada no
início da reportagem, a pobreza e falta de influência política fazem com que
polícia leve menos a sério a investigação de crimes cometidos contra mulheres
negras. Isso geraria um clima de impunidade e de maior liberdade para agredí-las.
A delegada Anaíde Barros, da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa
(DHPP), nega a acusação. “As vítimas de homicidios aqui são pobres em 95% dos
casos e ainda assim resolvemos 60% deles”, afirma. “No caso de Juliene, usamos
todas as possibilidades para investigar o crime, produzimos um inquérito de
mais de 2 volumes e estamos muito frustrados por não ter encontrado o
agressor.”
Para a ativista negra Luka
Franca, existe um processo de genocídio da juventude negra, do qual até a
própria polícia participa, em que racismo e pobreza se misturam. O Mapa da
Violência vem corroborando essa tese. Em 2014, o levantamento apontou que 53,4%
de todos os homicídios do Brasil foram cometidos contra jovens negros. No
último ano, o relatório registrou a conclusão: “As taxas de homicídio da
população branca tendem, historicamente, a cair, enquanto aumentam as taxas de
mortalidade entre os negros. Por esse motivo, nos últimos anos, o índice de
vitimização da população negra cresceu de forma drástica.”
De fato, a criminalidade é também
maior entre mulheres negras e jovens, mas os crimes tipicamente cometidos por
mulheres indicam que são ações que visam o complemento de renda em famílias
paupérrimas e, por vezes, monoparentais. “Muitas vezes, as mulheres negras têm
que decidir entre ganhar X trabalhando em um emprego não formalizado por horas
demais, ou ganhar 2X para traficar, dando melhor condição de vida aos filhos e
saindo de um relacionamento abusivo”, explica Luka. Diante da escolha difícil,
muitas veem no crime a melhor saída e entram em um mundo em que a violência
predomina.
E há ainda um terceiro elemento a
ser somado à equação, um fator político. O Datafolha registrou uma mudança nas
preocupações da população nas últimas décadas. Até 1996, o brasileiro se
concentrava em temas como inflação e geração de empregos. Em 1997, a segurança
aparece em primeiro lugar e começa-se a politizar a segurança pública. “O
Estado começa a dar segurança para setores formadores de opinião e ignorar os
que não são”, diz Jacobo. Perde, novamente, a população negra.
Feminicídio
A universitária negra Suzane
Jardim (veja depoimento no vídeo acima) ainda estava na UTI, com o pulmão sendo
drenado, respirando por aparelhos, 10 costelas e 40 partes do quadril
quebrados, quando lhe disseram que o homem que a havia empurrado da janela do
quarto andar do prédio andava espalhando por aí que ela pulou porque queria se
matar. Entrou em pânico. Só conseguia pensar que ia perder a guarda do filho
por ser considerada “uma louca que não pode cuidar direito de uma criança”.
Ainda por cima, a primeira reportagem que saiu sobre o caso, no Jornal O Estado
de São Paulo, acusou: “Ativista feminista cai do quarto andar e diz que foi
vítima de machismo”.
“Assim, como se eu tivesse
escorregado numa casca de banana e resolvido dar de louca depois e não como se
fosse vítima de tentativa de feminicídio”, desabafa. Ali mesmo, do hospital,
teve que fazer ativismo pelo próprio caso. Acionou as colegas do grupo
feminista que começava a nascer na Universidade de São Paulo (USP), onde
estudava, e pediu que espalhassem sua versão dos fatos pelas redes e sociais e
a imprensa. “Só quando elas fizeram barulho a polícia resolveu abrir um caso”,
conta Suzane.
“Eu tenho plena certeza de que,
se não fosse estudante da USP, não teria sido ouvida. E veja quantos alunos
negros há nas salas da USP: um ou dois numa sala de 40!”
Suzane afirma que o agressor a
empurrou pela janela por ela tê-lo criticado por uma atitude machista. Em vez
de socorrê-la, o homem correu à delegacia, onde atestou que se tratava de
acidente ou tentativa de suicídio. Por sorte, Suzane não morreu, mas perdeu
muito. Hoje sente dores o tempo todo, em qualquer posição, anda de bengala e os
médicos dizem que ela pode até precisar de cadeira de rodas no futuro. O homem
fugiu por um ano e só voltou a se apresentar à Justiça quando Suzane começou a
buscá-lo por conta própria, espalhando retratos nas redes sociais. Hoje
respondendo pelo crime em liberdade, ele mora a uma quadra de Suzane e seu
filho, em Diadema, São Paulo. “Não saio mais pela minha cidade. Acabou essa
coisa de tomar uma cerveja ou ir no cinema. Não falo onde vou porque tenho
pânico da possibilidade de vê-lo”, ela revela.
É importante ressaltar que nem
todo caso de assassinato de mulheres é um feminicídio. O feminicídio acontece
quando se trata de um crime de ódio motivado pelo preconceito de gênero. Por
exemplo, quando um parceiro mata a mulher por ciúmes ou por achar que ela não
tem direito de falar com ele à altura ou criticá-lo, como foi o caso de Suzane.
Assim, assassinatos que acontecem no seio de relacionamentos abusivos são
feminicídios também.
Mesmo entre essa categoria de
assassinato, porém, as negras ainda estão em pior situação que mulheres de pele
mais clara. “Enquanto o homem negro é morto principalmente na rua por
desconhecidos, a mulher negra é morta em casa, por um parceiro ou parente”,
explica Jacobo. “Por isso, é correto dizer que grande parte dos homicídios de
mulheres negras são feminicídios. Aproximadamente 35% dos homicídios de
mulheres são por ódio de gênero.”
Mas por que mulheres negras se
sujeitariam a relacionamentos abusivos mais que as brancas? Porque têm a
autoestima fragilizada, explica a psicóloga Maitê. “Existe um problema de
representação, pois essa mulher não aparece na mídia, nas telenovelas e
comerciais, como padrão de beleza”, opina. “E, quando aparece, ela é
representada como uma pessoa violenta, hipersexualizada e pouco inteligente.
Isso vai minando sua autoestima e ela se torna mais vulnerável ainda.”
Por serem mais pobres e estarem
mais sobrecarregadas com o cuidado dos filhos e parentes velhos e doentes,
essas mulheres também estão em maior situação de dependência econômica com
relação aos parceiros.
Além disso, Suzane acredita que
os grupos feministas não têm dado atenção devida às negras. “Fui mãe aos 17 e
moro em Diadema e, neste contexto, não rola contato com o feminismo. Hoje em
dia até estão surgindo rodas de conversa na periferia, mas isso é bem recente.
Foi só quando entrei na USP que comecei a conhecer essas ideias.” E Maitê
complementa:
“O feminismo acadêmico,
eurocentrado, não contempla a mulher negra, que vai passar por ele sem que isso
agregue quase nada pra ela. E nisso entra a importância de fortalecer os
movimentos do hip hop, da periferia, sindicatos e associações de bairro, que são
quem, de fato, dá voz a elas.”
E tem solução?
Por ser um problema com raízes em
muitos lados, a resposta, segundo especialistas, é também variar as soluções.
Para começar, defende Jacobo, é preciso mudar a mentalidade do brasileiro sobre
segurança. Para ele, há uma mitologia criada pelos órgãos de segurança pública
de que toda a violência é causada pelas drogas e pela criminalidade. Contudo,
um levantamento do Ministério Público de 2012, que pesquisou os inquéritos de
homicídios em 16 unidades federativas do Brasil, mostrou que isso não é
verdade: em 9 estados prepondera o crime cultural e o crime por ódio.
“A consciência dos problemas da
negritude sempre foi muito bem manipulada pelo grupo dominante, que convenceu
as classes subordinadas a incorporarem essa ideologia sem perceber”, atesta
ele. “Você não pode colocar um policial em cada casa e boteco. Isso se supera
com mudanças culturais e educação, além de um replanejamento em como cuidamos
da iluminação e segurança pública e para quem fazemos isso.”
Para Luka e Maitê, trata-se de
uma luta contra o racismo e o machismo que tem que colocar a mulher negra nos
holofotes e nos microfones. E Luka conclui: “Quem está sendo afetada de forma
mais brutal pelo machismo no Brasil são as mulheres negras e esse debate não
pode mais ser um penduricalho do movimento feminista. Tem que ser central.”
Fonte: Revista Azmina
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