Vítimas de estupro e escravidão sexual cobrem
o rosto durante o julgamento com medo de represálias.
Em 1998, o Projeto lnterdiocesano
REMHI (Recuperação da Memória Histórica) investigou o ocorrido durante o
conflito armado interno que sacudiu a Guatemala por mais de 40 anos. O informe
final "Guatemala: nunca mais”, que esteve a cargo do então bispo e diretor
do Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala (ODHAG), Juan
José Gerardi, calcula que entre 1954 e 1996 aproximadamente 150 mil
guatemaltecos foram executados extrajudicialmente e mais 50 mil foram
desaparecidos de maneira forçada.
Mais de 600 massacres e 440
comunidades Maya exterminadas deixaram como sequela 1 milhão de exilados e
refugiados, 200 mil órfãos e 40 mil viúvas. Nove de cada 10 vítimas eram civils
desarmados, em sua maioria indígenas.
Em suas conclusões, o informe
evidenciou também que pelo menos 60 por cento das mais de 55 mil violações aos
direitos humanos cometidas contra a população foi responsabilidade direta do
Exército. Dois dias depois da apresentação, em 24 de abril de 1998, monsenhor
Gerardi foi brutalmente assassinado.
A história da comunidade de Sepur
Zarco, das suas mulheres valentes, dos horrores que tiveram que viver, mas também
da sua incontida sede de justiça e exigência de reparação, é marcada, então, em
um contexto que o sociólogo Carlos Figueroa Ibarra definiu como "o maior
genocídio que se observou na América contemporânea”.
Um contexto cujas raízes estão
firmemente incrustadas em um sistema de dominação patriarcal, em que "a
violência sexual goza de legitimidade social e é uma ferramenta de sustentação
de tal modelo”, explica a Aliança Rompendo o Silêncio e a Impunidade.
Durante o conflito armado
interno, esse delito se exacerbou e se instrumentalizou como arma de guerra.
"A violência sexual foi utilizada de forma generalizada, massiva e
sistemática, como parte da política contrainsurgente do Estado, e constitui um
delito de lesa humanidade, crime de guerra e elemento constitutivo de
genocídio”, afirma a Comissão para o Esclarecimento Histórico, em seu informe
"Guatemala: Memória do Silêncio”.
A Aliança assinala que a
violência sexual segue impregnando a sociedade guatemalteca, mesmo que se
mantenha invisibilizada como crime de lesa humanidade, e é normalizada
socialmente.
A cada ano são registradas mais
de 50 mil denúncias por violência contra as mulheres (uma média de 142
denúncias diárias), 15 mil gravidezes de meninas menores de 14 anos e mais de
600 feminicídios.
Estes dados se somam ao elevado
nível de impunidade (em 2014, tão só 243 casos tiveram sentença), projetam a
Guatemala como o país centro-americano mais afetado pela epidemia de violência
contra as mulheres.
As mulheres de Sepur Zarco:
olhando nos olhos, sem titubear
Na Sala de Vista da Corte Suprema
de Justiça, vítimas e vitimadores estão frente a frente. 15 mulheres valentes
do povo originário maya Q’eqchi’ derrotam fantasmas e decidiram percorrer o
caminho rumo à verdade e à justiça.
Com o rosto quase totalmente
coberto com mantas, como medida de segurança, as mulheres permaneciam imóveis,
olhando seus carrascos, com uma paciência infinita, escutando com atenção cada
palavra que se pronunciava na sala e que a tradutora, sentada ao lado delas,
traduzia em seu idioma ancestral.
Sempre como medida de segurança e
para evitar a revitimização, as mulheres declararam em audiência de antecipação
de prova. Contaram ante os juízes os horrores vividos, as humilhações e as
violências sofridas, iniciando assim o difícil caminho para a verdade.
Em 1982, um dos tantos
destacamentos militares organizados pela política contrainsurgente do Estado
guatemalteco se instalou na comunidade de Sepur Zarco, no nordeste do país.
"A comunidade tinha iniciado
os trâmites para a legalização das terras, e isto foi motivo suficiente para
que os militares capturassem e desaparecessem com os homens, por considerá-los
insurgentes. Ao ficarem viúvas, as esposas dos tais homens foram consideradas
‘mulheres sozinhas e, portanto, disponíveis’. Foram submetidas à escravidão
doméstica, violência sexual e escravidão sexual”, denuncia a Aliança.
O horror dos abusos se prolongou
durante mais de seis meses e marcou suas vidas para sempre.
Foi até 2011, após participar do
Tribunal de Consciência contra a Violência Sexual de Mulheres durante o
Conflito Armado Interno (2010), que 15 mulheres q’eqchies’ decidiram romper o
silêncio e apresentar uma querela penal pelos abusos sofridos. Várias
organizações acompanharam e continuam respaldando este esforço extraordinário.
"É o primeiro caso
apresentado ante órgãos jurisdicionais nacionais por delitos de transcendência
internacional contra mulheres. É um caso emblemático de mulheres que romperam o
silêncio e querem demonstrar que sim, é possível buscar a justiça”, disse à
Rel, Felipe Sarti Castañeda, representante legal da Equipe Comunitária de Ação
Psicossocial (Ecap).
Ex-militares acusados por estupro
e escravidão sexual contra mulheres guatemaltecas.
"É uma luta por todas
aquelas mulheres da Guatemala que durante o conflito armado interno sofreram
graves violências. Temos que recordar para ir sentando as bases para que nunca
volte a se repetir”, acrescentou o também psicólogo do Ecap.
"A violência sexual em nosso
país foi uma estratégia militar contrainsurgente, e foi utilizada para o
controle dos corpos e dos territórios. O Estado terá que responder pelos crimes
cometidos no marco dessa estratégia”, indicou Ada Valenzuela, presidenta da
União Nacional de Mulheres Guatemaltecas (UNAMG).
"No caso das mulheres de
Sepur Zarco, estamos colocando na mesa um tema que é muito atual para a
sociedade guatemalteca”, disse à Rel Paula Barrios, diretora das Mulheres
Transformando o Mundo.
"Julgar a violência e a
escravidão sexual pode sentar um precedente histórico para o país, ao mesmo
tempo em que estará conceitualizando e configurando esses tipos penais no marco
dos crimes de guerra. Há centenas de mulheres que sofreram o mesmo horror e que
merecem justiça e reparação”, assegurou.
De violadores a torturadores: perseguir todos os culpados
O julgamento foi iniciado no
último dia 1º de fevereiro, no juizado A de Maior Risco, da capital
guatemalteca. Os acusados, detidos desde junho de 2014, são o tenente coronel
Esteelmer Francisco Reyes Girón e o ex-comissionado militar Heriberto Valdez Asig.
Estão sendo julgados, entre
outros, por delitos de deveres contra a humanidade, em sua forma de violência
sexual, escravidão sexual e doméstica contra um total de 12 mulheres; o
assassinato de três mulheres (mãe e suas duas pequenas filhas); o desaparecimento
forçado de seis homens – esposos das mulheres vítimas – e tratamentos cruéis
contra duas meninas.
As organizações que acompanham as
querelantes asseguram que são muitos mais os culpados por esses delitos, e
assinalam a lentidão com a qual o Ministério Público está atuando para
providenciar a captura de pelo menos outras cinco pessoas.
Além disso, recordam que existem
nexos diretos entre os militares violadores de direitos humanos e os
fazendeiros que disputavam as terras com as comunidades indígenas.
Para Anabella Sibrian e Miguel
Zamora, da Plataforma Internacional contra a Impunidade, esses processos se
marcam dentro de uma história e estrutura sociopolítica do Estado guatemalteco,
que, desde o seu começo, se configurou em função dos interesses das elites
econômicas tradicionais e, mais recentemente, dos novos poderes econômicos
legais e ilegais (poderes fáticos).
Esses poderes utilizam a força
militar e os órgãos de justiça para controlarem qualquer tipo de oposição aos
seus interesses.
"O caso da comunidade de
Sepur Zarco é um claro exemplo disso. Na medida em que toleramos que graves
crimes fiquem impunes, estamos alentando que continuem sendo cometidos”, disse
Sibrian.
É por isso que um amplo conjunto
de organizações nacionais e internacionais estão acompanhando esse longo
processo de busca pela justiça.
"As mulheres querelantes
estão sendo estigmatizadas e vivem um contexto comunitário muito complicado, em
que os militares voltaram a organizar os patrulheiros de autodefesa civil e os
grandes fazendeiros continuam disputando com as comunidades indígenas o acesso
à terra”, disse Ada Valenzuela.
"Além disso, nas redes
sociais, se desencadeou uma forte campanha de desprestígio contra as mulheres
querelantes e as organizações que as apoiam, assessoram e acompanham”,
assinalou a presidenta da UNAMG.
Uma sociedade corresponsável: despojar-se da vergonha
Um dos objetivos desse julgamento
é que as vítimas se despojem da vergonha e a transfiram para os vitimadores,
que são quem devem carregar isso.
"Como é possível que a
sociedade não tenha gerado condições para que as mulheres que sofreram
violência sexual possam caminhar livremente e de forma segura?”, pergunta Paula
Barrios.
"Devemos romper este
continuum da violência contra as mulheres. Conseguir derrubar esse grande muro
de impunidade – que, na Guatemala, é histórico – permitirá a todas as
sobreviventes de violência sexual considerar que é possível chegar à justiça”,
disse a diretora das Mulheres Transformando o Mundo.
Barrios explicou também que já
estão elaborando e discutindo uma proposta para gerar um esquema e um
estandarte de reparação para as vítimas, com enfoque de gênero e cultural.
"Essas mulheres estão com um
empoderamento, uma firmeza e uma dignidade incrível. Apesar das ameaças e
intimidações, estão firmes e decididas. E dizem claramente: estamos aqui para
que se conheça nossa verdade, para que se saiba que o que aconteceu não foi
nossa culpa, para que se castiguem os responsáveis e para que o que nós sofremos
não volte a acontecer nunca com nenhuma outra mulher na Guatemala”, concluiu
Valenzuela.
Fonte: adital
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