Para a teóloga austríaca, Martha Zechmeister, há que se aprender a encontrar Deus também nas situações que parecem sua negação.
Pesam em relação à mulher muitas
categorias do patriarcado latino-americano. Acredito que, pela má consciência,
pelo machismo, vem também, em seguida, uma elevação da mulher. Mas essas duas
atitudes, ou o machismo que pisoteia a mulher ou a eleva, são duas faces da
mesma moeda, que é a incapacidade de uma relação olho no olho, de serem
companheiros e companheiras na mesma luta.
Decidida a ver o mundo a partir
de uma perspectiva fora da Europa, a teóloga austríaca Martha Zechmeister
esteve pela primeira vez na América Latina em 1999, quando relata ter passado
por um "choque” em relação ao contexto social de El Salvador. No que
denomina um "ano sabático”, Martha conheceu a tradição latino-americana,
bem como Jon Sobrino [sacerdote e teólogo jesuíta], a história do monsenhor
Oscar Romero [recentemente beatificado pelo Vaticano] e do teólogo e sacerdote
jesuíta Ignacio Ellacuría. Em entrevista exclusiva à Adital, a teóloga explica
as diferenças em comparação com o contexto europeu, revelando o conflito entre
a teoria e a prática de ‘buscar e encontrar Deus em todas as coisas’, lema de
Ellacuría.
Doutora em Teologia, há mais de
30 anos Martha é religiosa da Congregação de Jesus, organização fundada por
María Ward. Atualmente, é professora e diretora do Mestrado em Teologia
Latino-Americana, na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), em
El Salvador, sendo especialista em Teologia Política, Antropologia Teológica e
Espiritualidade Ignaciana.
Aluna de Johann Baptist Metz, um
dos fundadores da Teologia Política na Europa, Martha se reconhece formada em
uma corrente teológica que está muito em sintonia com a Teologia da Libertação.
A partir da perspectiva central de Metz, que defende que, "para o cristão,
não há nenhum sofrimento que não o afete”, a austríaca destaca que esta
corrente teológica ajudou a romper com o narcisismo europeu, autossuficiente e
a abrir-se às experiências do sofrimento também na América Latina.
Avaliando o contexto das mulheres
na Igreja e em El Salvador, a teóloga revela suas surpresas com o Papa
Francisco, ‘um típico patriarca latino-americano’, reflete ainda sobre a
questão do aborto no país e o contexto de violência na América Central.
Adital: Como a senhora avalia as
diferenças entre o contexto teológico europeu e o latino-americano, a partir de
quando foi morar em El Salvador?
Martha Zechmeister: A partir
dessa corrente teológica, na qual fui formada, não houve uma mudança tão
brusca. Vejo muita sintonia entre a teologia de Johann Baptist Metz e a de
[Ignacio] Ellacuría. Por exemplo, Metz fala muito sobre a autoridade dos que
sofrem, que Deus nos fala nas situações de sofrimento e, a partir daí, devemos
determinar nossa práxis. E nisso vejo muita consonância com a Teologia de
Ellacuría. Mas claro que a situação eclesial europeia e a situação
salvadorenha, e também o social e político, são muito diferentes. Não quer
dizer que, na Europa, não há pobres, que não tenha marginalizados, mas são uma
minoria. Eu participava, em Viena, de um movimento que tratava de incluir as
pessoas sem teto, mas, em Viena, esse percentual é pequeno e você fica com a
ilusão de que, com boa vontade, pode solucionar isso. No entanto, atualmente,
ocorre outra situação, com a irrupção de milhares e milhares de sírios. Tudo,
então, se torna complicado, o que mostra que, na Europa, a situação também está
mudando.
Em El Salvador, primeiro, tive um
grande susto. Eu sou da espiritualidade ignaciana e um lema de Sanato Ignacio é
‘buscar e encontrar Deus em todas as coisas’, o que significa que, em toda
realidade, Deus está presente. Porém, chegando a El Salvador, me dei conta de
que minha espiritualidade foi um pouco ingênua, porque não é difícil sentir,
saborear a presença de Deus na bondade da vida, da natureza, da amizade. É
importante aprender isso para ter essa sensibilidade sobre a maravilha que é a
vida, mas, chegando a El Salvador, minha primeira experiência foi no centro,
quando tive um choque com uma cidade grande do Terceiro Mundo. Em 1999, se
sentiam muito as consequências da guerra civil – muitos homens mutilados pela
guerra, muito alcoolismo.
Atualmente, a situação não
melhorou, mas mudou – prostituição, droga, aumento da violência das gangues.
Pela primeira vez, me senti exposta a uma situação, perdão pela má educação,
mas, antes, eu tinha a impressão de que, com boa vontade, podemos humanizar o
mundo, se assim queremos. E, chocada com aquela situação, eu pensava: ‘este
mundo não tem solução’. E, naquele momento, eu me dava conta de que esta frase,
‘buscar e encontrar Deus em todas as coisas’, não é um romantismo barato, ou
cinismo. É preciso aprender a encontrar Deus também nas situações que parecem
negá-lo.
Para mim, sempre o mais
importante foi um tipo de espiritualidade de grito, porque me dava conta de que
não pode ser que vejamos essa realidade e digamos: ‘é assim’ - sem deixar isto
nos afetar. Creio que a oração, diante dessa situação, significa gritar -
‘assim não pode ser!’. Este é um grito profundo e alto para Deus – ‘Não se pode
continuar assim!’.
Adital: Sobre o contexto das
mulheres na Igreja, como avalia os desafios e avanços no papado de Francisco? E
como é ser uma teóloga em El Salvador?
Martha: Creio que todos estamos
felizes que Papa Francisco é como é. Jon Sobrino tem uma expressão que eu gosto,
que fala dos ‘ateus como Deus manda’. O que quer dizer isto? Existem ateus que
são ateus, mas são justos, por lutarem pela dignidade do ser humano, por
exemplo. Eu, aplicando essa palavra de outra forma, sempre digo que Francisco é
um patriarca como Deus manda. Creio que não se pode esconder que ele é um
típico patriarca latino-americano.
No voo de volta da Jornada
Mundial da Juventude, no Brasil, creio que uma repórter italiana perguntou
sobre a ordenação de mulheres. O Papa respondeu que essa questão não se discute
e já existe uma resposta definitiva. Isto não me surpreendeu muito porque ele é
um patriarca. Em outra ocasião, ele disse: ‘veja, a Madona, a Virgem, é muito
mais importante do que os apóstolos’. Não sei se ele quis falar sobre uma dignidade
da mulher dentro da Igreja, sobre uma vocação da mulher ser ícone da Virgem,
mas eu me senti confundida.
Outro dia, comentei com um amigo
que, quando me dizem que tenho que viver como apóstolo, como discípula de
Jesus, eu sei o que fazer, sempre sei que vou fracassar porque é uma exigência
demasiadamente alta, mas eu sei onde me colocar em ação. Porém, quando me
dizem, como mulher, que tenho que viver como ícone da Madona, da Virgem, não
sei o que fazer.
Pesam em relação à mulher muitas
categorias do patriarcado latino-americano. Acredito que, pela má consciência,
pelo machismo, vem também, em seguida, uma elevação da mulher. Mas essas duas
atitudes, ou o machismo que pisoteia a mulher ou a eleva, são duas faces da
mesma moeda, que é a incapacidade de uma relação olho no olho, de serem
companheiros e companheiras na mesma luta.
Vejo que a Igreja tem um caminho
longo. Por um bom tempo, pensei que podíamos esperar muito deste Papa e, hoje,
sou uma grande fã dele, encantada, porque ele está dando à Igreja um rosto
muito mais de Jesus. Porém, sobre esse tema da mulher na Igreja, me senti um
pouco estranha, embora, por outro lado, também me surpreende de verdade, por
exemplo, a questão das religiosas norte-americanas.
Eu participava de uma audiência
com o Papa e 800 superioras da Congregação, no ano de sua eleição, em 2013.
Ali, já se sentia uma tensão, quando ele nos falava sobre obediência aos bispos
e à santa Igreja, eu ficava ‘argh’. Porém, esse Papa sempre surpreende. Eu
pensava: ‘mais convencional não é possível’ e, logo depois, ele recebeu a Clar
(Conferência Latino-Americana de Religiosas/os) em um clima aberto, fraternal e
dizia coisas como ‘não tenham medo, atrevam-se’, ‘não temam receber uma carta
da Congregação da Fé, sigam adiante’. Foi muito animador.
Para a teóloga Martha
Zechmeister, o Papa Francisco é um típico patriarca latino-americano, porém sua
‘capacidade de aprender o caminho’ sempre surpreende.
O ponto alto de tudo isso, que
mais me surpreende sobre este Papa, é que ele vem de um certo contexto de
patriarcado latino-americano, porém, ele é muito capaz de aprender. Depois de
tudo que ocorreu com as religiosas norte-americanas, punidas pelo Vaticano,
pela Congregação da Fé, agora, o Papa diz, em público, que ele está admirando a
coragem dessas mulheres, valentes, que lutam na primeira fila. Os rostos dos
bispos se petrificaram porque o choque com essas religiosas foi, em grande
parte, um choque com os bispos norte-americanos, que se opuseram à reforma dos
centros de saúde, sob o argumento de nesses locais também vai se praticar o
aborto. E as religiosas apoiaram a reforma da saúde, não porque estavam a favor
do aborto, mas porque entendiam que isto deixava desprotegidos os pobres, sem
acesso à saúde. Então, quando o Papa felicitou publicamente o valor dessas
mulheres, isto para mim foi um grande passo, sua capacidade de aprender o
caminho.
Temos vivido muitos anos de
paralisação, de exclusão. Agora, é um momento histórico, em que é importante
não perder o Kairós [momento oportuno]. É um clima de abertura, mas o perigo é
que esperamos tudo isso do Papa. Antes, fomos paralisados por medo, exclusão,
etc. Agora, estamos tão fascinados com o Papa que, talvez, esqueçamos que
precisamos nos mover. Ele abre uma brecha, mas temos que despertar.
Adital: E como avalia a questão
do aborto?
Martha: Creio que a vida é santa.
Dizem para mim que quem é a favor do aborto é um idiota. Ocorre que estamos
perseguindo mulheres que, em situação limite, se decidem pelo aborto. Na
Romênia, por exemplo, eu conheci mulheres mais velhas que, nos tempos quando
não havia outro método de planejamento, e pela miséria social, e já tendo
muitos filhos, submeteram-se ao aborto, e, agora, com 80, 90 anos estão
condenadas ao inferno por isso. Uma coisa é promover o aborto, que, para mim,
não é uma opção, e outra coisa é criminalizar as mulheres que, em situações
limites, se decidem pelo aborto.
O Papa diz: ‘quem sou eu para
condenar uma mãe a quem o médico diz que seu filho vai nascer com uma
deformação grave, que vai fazê-lo sofrer’. Eu não sou a favor do aborto, mas
quem sou eu para julgar uma mãe que se decide por isto. É preciso proteger o
mistério da vida, mas criminalizar o aborto é outra coisa. E eu sou,
certamente, contra a criminalização.
Adital: É o que ocorre em El
Salvador, onde as mulheres são criminalizadas por qualquer tipo de aborto?
Martha: Sim. Isto me parece uma
dupla moral insuportável, começando pelos métodos de planejamento. É uma ofensa
ao varão falar de preservativos, é impensável falar disso, mas não é obsceno
que, nos centros de saúde, se apliquem injeções com hormônios para três meses,
que provocam nas jovens uma desordem hormonal, que têm consequências para a
saúde da mulher. Isto é uma moral dupla.
Adital: O que significou a
beatificação de Oscar Romero para El Salvador?
Martha: Em março de 2015,
realizamos um Congresso na UCA, sem saber que, no mesmo ano, seria realizada a
beatificação. A memória no Cristianismo é algo central, celebrar a morte e a
ressurreição, e a vida que brota aqui e agora. Podemos fazer uma memória nostálgica,
recordando um tempo passado glorioso, mas perder o Kairós atual. O drama de
Jesus, por exemplo, tem que nos inspirar, não para ficarmos no passado, mas
para agir aqui e agora. Por isso também as lembranças da beatificação de
monsenhor Romero.
Ignácio Ellacuría dizia que, com
monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador. Nesse mundo acabado pela
situação econômica, pela violência, pela corrupção, a máfia das drogas, que
está flagelando uma grande parte da população centro-americana, 60%, ou seja,
2/3 da população estão submetidos a isso. Esse amor claro, tão profundo e
profético de monsenhor Romero é a irrupção de Deus neste mundo.
A Igreja precisa obedecer a esta
fé do povo, não pode negá-la. Essa fé do povo já confessou Romero como santo
muito antes da beatificação, e não temos que esperar a canonização. É algo que
deu a muitas pessoas esperança e alegria, por estar, agora, oficialmente,
reconhecido pela Igreja. Há uma grande parte dos salvadorenhos profundamente
católica e, agora, não é preciso ir contra a hierarquia, uma vez que a
autoridade máxima da Igreja confessa este santo do povo.
Para mim, é precioso o texto da
carta da beatificação, que fala desse beato Romero, ‘bispo e mártir, pai dos
pobres, testemunho heroico do reino, reino da justiça, do amor e da paz’. É
algo muito forte, que resume a fé do povo, embora seja triste que, no nível
eclesial local, na conferência episcopal, isso foi muito relativizado. Romero é
um modelo de santidade, o que quer dizer viver ao modo de Jesus, aquele que se
põe, incondicionalmente, ao lado das vítimas, e, por isso, denuncia os que
estão vitimando as vitimas. Ele é um santo que incomoda e não um santo doce,
sem arestas, que permite uma reconciliação barata.
Monsenhor Romero, um santo do
povo, oferecia palavras claras, de orientação, nos tempos da guerrilha em El
Salvador. "Defendia os pobres, dizia a verdade e, por isso, o mataram.”
Adital: E quem são os mártires de hoje?
Martha: A meta não é produzir
mais mártires, por favor, não mais mortos. A pergunta que me faço é que, nos
tempos de conflito, de monsenhor Romero, ele denunciava o terrorismo do Estado.
Ele nunca foi um amigo da violência, mas disse que há situações em que a
violência, sempre como um recurso limite, pode ser legítima porque é a defesa
da vida. E reconhecia que a violência da opressão por interesses é o que vem
primeiro, e a que a violência do revolucionário da guerrilha é algo secundário
nisso, e tem certa legitimidade. Por que o mataram? Porque isso incomodou os
poderosos.
Agora, em El Salvador, falta uma
palavra clara por parte da Igreja e também uma proposta clara por parte da
política. Estamos com um governo de esquerda, mas o que se sente é que não
existe uma resposta clara, caindo na armadilha de governos anteriores, de
aplicar a política de mão dura contra as gangues. Atualmente, a situação é
complexa, não sabemos como entendê-la e fazer o discernimento. Essa violência
das gangues é formada por jovens humilhados, que tiveram o futuro roubado e se
converteram em vitimadores que, por sua parte, exercem uma violência
terrorista, impõem medo. Impotentes, a única forma de sentir seu poder é
imporem-se sobre os mais fracos. Nos tempos da guerrilha, também se
questionavam atos terroristas, mas havia uma meta nessa luta. A luta atual é
irracional, autodestrutiva, que comparo com uma doença autoimune, que destrói o
próprio corpo, os pobres que matam seus irmãos pobres.
Também, nos tempos de monsenhor
Romero, ele disse: ‘irmãos, parem de matar seus próprios irmãos, militares da
guerrilha’. No entanto, a guerrilha tinha uma meta política, já as gangues não
têm. É um grito desesperado, irracional, muito destrutivo e perigoso. E o povo
que está flagelado por esse terror começa a gritar pelo linchamento, com lemas
como ‘é preciso fumigar os ratos’.
As palavras de monsenhor Romero,
em sua situação, davam luz, orientação. Agora, faltam pastores com uma análise
clara. Os bispos seguem com sua conferência de imprensa, mas não oferecem uma
palavra de orientação. Espero e rezo por uma irrupção do espírito, mas não vejo
esse momento. O martírio é uma consequência de um sim incondicional à vida.
Nenhum desses mártires tinha uma doença patológica autodestrutiva, que buscava
o martírio. Lutavam pela vida. Eu não peço por mais mártires, eu peço por mais
lutadores apaixonados pela vida, que se atrevem. Jon Sobrino citava, muitas
vezes, um camponês salvadorenho que dizia que monsenhor Romero defendia os
pobres, dizia a verdade e, por isso, o mataram. Isto foi decisivo.
A teóloga austríaca explica que o
martírio é consequência de um sim incondicional à vida, questionando onde está
a redenção para a violência na América Central.
Atualmente, o complicado é que
não há uma linha clara sobre onde estão as vítimas e onde estão os vitimadores.
É necessária uma solução social e sustentável para El Salvador, e há um desejo
forte de se reconhecer as gangues como parte de um povo crucificado, esses
jovens que tiveram o futuro roubado, estão humilhados, porque ninguém necessita
deles. Uma noite, dormi muito mal pensando sobre o que significa decifrar esse
contexto. Jesus incluiu os marginalizados, dividia a mesa com os pecadores. O
que significa essa atitude de Jesus diante dessa violência juvenil em El
Salvador?
Não quero justificar nenhum
destes atos de violência, não se trata disso, mas quem é a boa sociedade?
Entendo quando uma pessoa sofre uma violência de um marginal, não compartilho,
mas posso entender psicologicamente quando uma pessoa que perde seus
familiares, grita por linchamento. No entanto, os que se aproveitam
socialmente, política e economicamente, dessa situação gritam que é preciso
‘fumigar os ratos’, o que, para mim, é um pecado imperdoável contra o espírito.
E como é uma situação real de violência na América Central, a pergunta é: ‘onde
há redenção?’.
Fonte: (Cristina Fontenele) Adital
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