Bergoglio já descobriu que o
Vaticano é uma imensa agência imobiliária, com 5.000 apartamentos, lojas e
terrenos, e outros tantos milhões de euros como imitação de um império que
transforma a benemerência em ostentação caritativa para uma sociedade
corrompida e opulenta. O cardeal Tarcisio Bertone, figurão citado como
candidato a Papa no último conclave, reformou seu fabuloso apartamento com o
orçamento de um hospital infantil.
O novo arcebispo de Buenos Aires,
Víctor Manuel Fernández, adimitiu numa recente entrevista ao Corriere della
Sera – não tão recente quanto os escândalos desta semana – que a Cúria romana
era dispensável e que o pontificado poderia ser exercido em Bogotá, por
exemplo.
Tanto fazia a capital colombiana
ou qualquer outra cidade do globo, conquanto que não fosse Roma. Isso serviria
tanto para neutralizar a nomenclatura parasitária, que ficaria distante do seu
habitat, quanto para preservar os rumos da Igreja, ora vinculada a uma cidade
ressabiada que a corrompeu em meio a conspirações e distrações mundanas.
Dois novos livros – Via Crucis,
de Gianluigi Nuzzi, e Avarizia (avareza), de Emiliano Fittipaldi – corroboram
essa tese. Não só pela originalidade ao retratar uma casta política e
cardinalícia que se aferra a seus privilégios como se fossem um direito
natural. Mas também porque as denúncias dos conspiradores revelaram a Francisco
o mau cheiro de uma cidade que observa o Papa como um corpo estranho, como um forasteiro
com aspirações ingênuas, entre as quais se destaca a purificação das tubulações
do rio Tibre.
Já escrevia Tácito que o Vaticano
era um lugar infame, do mesmo modo que Plínio definia o subúrbio romano como um
esgoto dominado por ratos e serpentes. A primeira pedra da basílica de São
Pedro ainda não havia sido colocada nessa época, mas os exemplos históricos
indicam uma maldição embrionária. Mais ainda quando se sabe que o nome
Vaticano, antes de ser um lugar religioso e uma fortaleza de 44 hectares,
provém de um oráculo etrusco dono de espantosos dons divinatórios.
Mas entre tais adivinhações nunca
figurou a de que a deteriorada fortaleza acabaria por se tornar a capital do
catolicismo, alojando em seu seio pagão o centro da Igreja Católica Apostólica
Romana, de tal maneira que a fundação da identidade romana representa um
aspecto determinante em suas idiossincrasias, muitas vezes à custa da
universalidade.
Uma Igreja romana em sentido
restritivo. Uma Igreja "de" Roma, alheia às suas obrigações
espirituais e à sua vocação planetária, sequestrada pelos poderosos de uma
hierarquia que se propôs a reconstruir o paraíso na Terra, fazendo-se
prevalecer sobre o eventual inquilino do trono de Pedro.
Exagerando um pouco as coisas,
João Paulo II se dedicou a evangelizar o mundo porque não suportava a
burocracia nem a elite endogâmica de Roma. Ratzinger decidiu abdicar porque
reconheceu ser incapaz de transformar os hábitos incorrigíveis de eminências e monsenhores.
Por isso adquire um valor
profético a Roma de Federico Fellini, o desfile de moda pontifícia, a descrição
fantasiosa, delirante – ou talvez nem tanto – de um jet set eclesiástico
anestesiado em seu próprio incenso, imiscuído na política nacional e
profundamente local.
Explica-se assim a incredulidade
dos Papas estrangeiros em sua concepção global da mensagem cristã, estranhos
numa cidade subterrânea, cujos mistérios incitam ou convidam a recear até os
coroinhas.
Bento XVI definiu a si mesmo como
um pastor rodeado por lobos. Não podia confiar nem no seu mordomo, nem teve
estômago suficiente para permanecer onde agora está exposta a ingenuidade do
seu herdeiro, traído por um administrador de Astorga, Vallejo Balda, a quem se
atribui de forma desmesurada e complexa a trama de uma conspiração da Opus Dei
contra a Companhia de Jesus. Só que as coisas parecem mais simples. Tão simples
como a resistência da velha-guarda, do antigo regime, às ambições quixotescas
com que Francisco pretende retificar seu estilo de vida e lhes reprovar a
tergiversação blasfema das obrigações cristãs.
Bergoglio já descobriu que o
Vaticano é uma imensa agência imobiliária, com 5.000 apartamentos, lojas e
terrenos, e outros tantos milhões de euros como imitação de um império que
transforma a benemerência em ostentação caritativa para uma sociedade
corrompida e opulenta.
O cardeal Tarcisio Bertone,
figurão citado como candidato a Papa no último conclave, reformou seu fabuloso
apartamento com o orçamento de um hospital infantil, o Bambino Gesù, um
comportamento vampírico que pode ser explicado por uma das conclusões mais
impactantes do livro de Nuzzi: de cada 10 euros destinados originalmente à
caridade, apenas 2 são efetivamente destinados ao seu objetivo declarado.
O restante se desvia pelo caminho
na forma de recursos financeiros para uma hierarquia que se deslumbra nos
saraus sociais. E que “comemora” as canonizações de João XXIII e João Paulo II
estourando garrafas de espumante numa festa de 18.000 euros (73.400 reais)
particularmente propícia à promiscuidade de jogadores de futebol, vedetes,
políticos, jornalistas e aristocratas conhecidos.
É a sociedade que o cineasta
Paolo Sorrentino descreve em seu corolário felliniano A Grande Beleza, um
mosaico obsceno de uma Roma putrefata, cujas festas não atingem a reputação
social necessária se não forem frequentadas por um cardeal e se nelas não se
materializarem, um a um, os sete pecados capitais.
É a decadência da decadência. Não
a agonia, pois a remota fundação de Roma, oito séculos antes de Cristo, faz
dela uma fortaleza indestrutível, mistificada, inclusive alheia à revolução
conjuntural à qual aspira um pontífice argentino, um marciano contra quem seus
próprios cortesãos conspiram.
Roma foi fundada por uma
meretriz, a loba capitolina, e disputada até a morte por dois irmãos, Rômulo e
Remo, inscrevendo um pecado original que se arraigou em sua identidade
destrutiva e criadora. Uma cidade incorrigível, que se rebela como uma
predadora ao menor sinal de purificação.
Por isso faz sentido a reflexão
de monsenhor Fernández na diocese de Buenos Aires. Não se concebe uma catarse
de Roma, mas o mal da Cúria poderia ser extirpado se a cruz fosse transferida
para uma fundação imaculada.
Fonte: El Pais
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