A empregada doméstica Shirley
Luciane Silva, de 29 anos, morava há alguns meses de favor na casa de uma amiga
no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo. Desde que terminou seu
relacionamento com o vigilante Ivan Gomes, 31, ela buscou refúgio na pequeno
apartamento da colega, em um conjunto habitacional.
Na madrugada de 30 de outubro de 2013, Ivan
foi ao local querendo reatar o namoro. Shirley se negou, e foi morta com sete
facadas na frente de seus dois filhos. Ela foi uma das 2.875 mulheres negras
mortas naquele ano. De acordo com o Mapa da Violência 2015, elaborado pela
Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais e lançado nesta segunda-feira, o
número de mulheres negras mortas cresceu 54% em 10 anos (de 2003 a 2013),
enquanto que o número de mulheres brancas assassinadas caiu 10% no mesmo
período.
No total, 55,3% dos crimes contra
mulheres foram cometidos no ambiente doméstico, e em 33,2% dos casos os
homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas. O sociólogo Julio Jacobo
Waiselfisz, coordenador do estudo, essa é uma principais características dos
assassinatos de mulheres. “Esse tipo de violência acontece em casa, é familiar,
e tem um componente enorme de gênero, já que costuma envolver uma mulher que
não se subordina às vontades de seu companheiro ou ex-companheiro”, afirma. O
professor ressalta ainda que os índices de homicídio no país também são maiores
entre os homens negros em comparação aos brancos.
Jurema Werneck, integrante da ONG
Criola, afirma que faltam políticas para as mulheres negras. “Uma política
pública justa e democrática precisa ser destinada a grupos específicos”,
afirma. Segundo ela, ao tratar as mulheres de forma homogênea sem levar em
conta os diferentes contextos enfrentados pelas negras e pelas brancas, o
Estado “tende a privilegiar grupos privilegiados, e prejudicar grupos
marginalizados”. “A mulher negra tem dificuldade de acessar não apenas a rede
de proteção contra a violência, mas todas as outras”, afirma. “Muitas delas têm
medo de recorrer ao Estado em casos de violência porque sabem que é o Estado
que mata os homens negros, logo ela não confia nele.”
De acordo com Julio, o maior
número de homicídios envolvendo a população negra do país também tem relação
direta com a ausência do Estado nos bairros mais pobres. “Nos bairros habitados
pela população branca mais abastada existe uma dupla segurança: a pública,
oferecida pelo Estado, e a privada”, diz. Por outro lado, nos bairros mais
pobres, de maioria negra, “é preciso se contentar com a segurança pública, que
muitas vezes age no sentido contrário ao de proteger, sendo responsável pelas
mortes ocorridas no local”. Para o professor, o mito do "brasileiro
cordial" e da "democracia racial" são “demolidos” por estes
dados. “Existe uma falsa mitologia de que o brasileiro não é racista: o fato é
que ele é!”.
Lei Maria da Penha
O relatório aponta ainda que
entre 2006 - ano da promulgação da lei Maria da Penha, que aumenta o rigor da
punição a agressores de mulheres - e 2013, apenas em cinco Estados foram
registradas quedas nas taxas. Julio defende a lei, e culpa o aumento da
violência uma cultura machista que enxerga este tipo de crime como um problema
“privado”. “Infelizmente aquele ditado ‘em briga de marido e mulher ninguém mete
a colher’ ainda é válido”, diz. Para o professor, “as nossas estruturas ainda
são muito machistas. A lei Maria da Penha foi um avanço, implicou que o ônus da
prova – que até então era da mulher, que precisava provar ter sido abusada –
passasse ao homem”, diz. Mas ele afirma que apesar de a lei ser boa, ela não é
aplicada com rigor. “Esta mudança cultural não acontece da noite para o dia”,
afirma.
Jurema elogia a lei, mas afirma
que ela é parcial, na medida em que “só cuida da violência na dimensão em que
atinge a mulher branca”. “Ela é insuficiente para lidar com as demais
violências que atingem a mulher negra e são decorrentes da maior vulnerabilidade
a que ela está sujeita”. Como exemplo, ela cita a falta de condições para se
deslocar até um equipamento público de atendimento a vítimas de violência, o
atendimento nestes locais, e até mesmo as condições para o desenvolvimento da
autoestima “para saber que pode recorrer a esse atendimento”.
Fonte: El Pais
Nenhum comentário:
Postar um comentário