Agradeço ao papa como mulher,
solteira, pelo seu esforço de desmantelar mentalidades penalizantes em relação
às mulheres. Espero que ele saiba como ir até o fim nessa operação, com as
consequências que ela comporta, e que a sua Igreja de rosto oficial masculino
saiba segui-lo.
A opinião é da teóloga italiana
Benedetta Selene Zorzi, professora de Teologia Espiritual no Istituto Teologico
Marchigiano e de Antropologia Teológica e Patrologia no Instituto Superior de
Ciências Religiosas de Ancona, onde ocupa o cargo de vice-diretora. É membro da
Coordenação de Teólogas Italianas. O artigo foi publicado na revista Adista
Segni Nuovi, nº 36, 24-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o
texto.
"Eu porei inimizade entre
você e a mulher, entre a descendência de você e os descendentes dela" (Gn
3, 15a). São as palavras que Deus dirige à serpente enganadora, encantadora.
Mediante essas palavras, Deus marca a mulher com uma barreira de proteção
contra o mal, à qual ela pode recorrer – se quiser – por todas as gerações.
Isso significa que uma mulher traz uma bênção secreta e especial, para a defesa
da sua criatura do Maligno! Como a Mulher do Apocalipse, que corre para
esconder o filho do Dragão. E Deus a protege (cf. Ap 12, 6). Pensem em que
profundidade se abre aqui! Existem muitos lugares-comuns, às vezes até mesmo
ofensivos, sobre a mulher tentadora que inspira ao mal. Ao contrário, há espaço
para uma teologia da mulher que esteja à altura dessa benção de Deus para ela e
para a sua geração!
- Papa Francisco, Audiência Geral
do dia 16 de setembro de 2015
Quem leu a insatisfação de muitas
mulheres católicas (ou não) depois das palavras acima mencionadas do Papa
Francisco sobre a mulher tentadora poderia dizer que realmente nunca há nada de
bom!
É verdade. Não é bom ainda ouvir
que precisamos de uma teologia da mulher, quando milhares de mulheres há mais
de um século estudam e escrevem sobre teologia e mulheres, sobre qual foi o seu
papel, a sua memória e as suas ações, prospectando às vezes uma tradição um
pouco diferente daquela transmitida pelos homens.
Não é bom que a teologia que a
Igreja tem das mulheres ainda seja a transmitida pelos Padres da Igreja, com
poucos ajustes que nem arranham a sua estrutura de fundo. Não é bom que existam
apelos para uma teologia da mulher e não, igualmente, a uma do homem (entendido
como ser do sexo masculino).
Não é bom que se fale da mulher
ainda no singular, como se fosse um bloco monolítico a ser abordada como algo
de estranho que aconteceu com o ser humano neutro macho, que se depara diante
dela e deve dar contas dela.
Não é bom que se denuncie como é
ofensivo pensar as mulheres apenas no papel de tentadoras e não se denunciem,
ao mesmo tempo, as graves culpas que a história, até mesmo cristã, tem em
relação com tantas mulheres mortas porque atentavam ao poder religioso, jogadas
na fogueira como bruxas.
Não é bom que se pense no papel
das mulheres ainda e apenas reduzindo-as ao papel de mães, biológicas ou
espirituais: é sempre o mesmo papel limitante que esquece que, biologicamente,
as mulheres são estruturadas também para fazer cálculos de matemática, falar em
público, tomar decisões, gerenciar situações complexas, ir para o espaço.
Não é bom que, na exaltação da
mulher como especial, não lhe seja reconhecido um ministério ou sacramento na
Igreja em virtude dessa (qual seria, aliás?) "especialidade".
Não é bom que, lembrando a mulher
pelo seu papel de defesa do maligno e apresentando-a como protetora, ela seja
recolocada em uma situação funcional do mesmo tipo, embora de sinal oposto,
daquela que a torna causa eficiente de pecado, isto é, instrumental.
Não é bom que, quando se insiste
na retórica da família tradicional, que também é a da família patriarcal, nos
esqueçamos de contar as violências, os lugares de sofrimento e de dor que a
família constitui, não apenas para as mulheres.
"O mundo criado foi confiado
ao homem e à mulher: o que acontece entre eles marca tudo." Sacrossanto,
Santo Padre! Então é justo se fazer a pergunta: que mundo é – ou que porção de
mundo é – este em que às mulheres não é concedido o acesso a papéis de plena
liderança e participação na tomada de decisões?
Que marca tem aquela porção de
mundo incapaz de considerar mulheres como iguais na oferta formativa, na
oportunidade de ação apostólica, na colaboração para além de serviços de
dependência e que as coloca sistematicamente às margens ou fora dos lugares de
incidência de decisão ou de partilha na gestão do poder... que é um serviço?
Que marca tem aquela porção de
mundo em que o trabalho feito pelas mulheres para a construção das comunidades
e das paróquias não tem um reconhecimento ministerial, econômico e público?
Por que o senhor também não
afirma que, em um mundo ou em uma porção de mundo em que as mulheres ainda e
sempre estão sujeitas ao poder decisional masculino, elas também devem pagar o
preço afetivo e o peso humano de uma instituição em que o reconhecimento pleno
da sexualidade, da afetividade, das afinidades eletivas, das competências, da
profissionalidade e do protagonismo de cada ser humano como tal – seja homem ou
mulher, seja célibe/núbil ou casado, com filhos ou não – ocorre segundo uma
arcaica concepção subordinativa e funcional da mulher?
Se essa concepção arcaica é ainda
mais incompatível hoje, não só em relação à sociedade atual, mas também no que
diz respeito à concepção antropológica e social em mudança que a Igreja tem (ou
diz ter) assumido, então deve ser denunciada uma duplicidade mental e
institucional de fundo que deve ser desmantelada o quanto antes.
Porque o risco de uma instituição
que concebe assim o mistério da Igreja é o de continuar subsistindo apenas a
preço de incoerências estruturais que formam pessoas divididas ou membros
acostumados à duplicidade.
Agradeço ao papa como mulher,
solteira, pelo seu esforço de desmantelar mentalidades penalizantes em relação
às mulheres. Espero que ele saiba como ir até o fim nessa operação, com as
consequências que ela comporta, e que a sua Igreja de rosto oficial masculino
saiba segui-lo.
O que é certo é que, diante dele,
ele não vai encontrar uma mulher, mas um numeroso exército de mulheres que o
precederam.
Fonte: Ihu
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