Todo o dia encontrava com eles.
Sempre me preocupei em olhá-los e vê-los para além daquele traje de trabalho,
aquela farda, ou a vassoura na mão. Olhar aqueles olhos por debaixo da boina ou
do chapéu. Principalmente eles, tão invisibilizados, estigmatizados na
sociedade elitista. Uns mais simpáticos outros recatados, mas sempre nos caía
bem um “Bom dia. Tudo bem? Como passou de final de semana?”
Por: Naeli Simoni de Castro via
Guest Post para o Portal Geledés
Nesse dia não foi diferente:
período de férias, faculdade vazia, poucos funcionários. Cumprimentei porteiro,
falei “oi” pra segurança e segui corredores adentro. Meio do caminho segurança
me alcança: “Tá indo pra aquele lado?” “Sim, estou indo ao banco”, respondi.
“Vamos juntos, também estou” – completou.
Não haveria porque me preocupar:
Sorriso doce, olho brilhante e sempre pronto a um “bom dia” eram suas
características. Então seguimos lado a lado naquele corredor cujo silêncio
ecoava, às 14 horas de uma sexta-feira a alguns dias do natal.
Corredores que se estendiam e os
papos engatavam, como aqueles assuntos de elevador: “o tempo”, a “chuva” e o “natal”. Topamos com um
vácuo, saleta reclusa no meio do corredor. Ele diminui os passos. E com olho
nos meus olhos diz: “queria falar com você…” E tratou de vir diminuindo os
poucos centímetros que nos distanciava.
“Mas… mas, não estamos a
conversar já?”
“Quero te conhecer melhor”-
respondeu.
Não saberia contar os segundos em
que me demorei a perceber o olhar malicioso, sorrisinho em canto de boca que se
molhava como quem saliva para a primeira mordida.
“Hey, não cara, não vai rolar” –
eu tentei.
Moço não se contentou: “Mas, você
sempre foi tão simpática, sempre conversamos, você sorrindo, eu achei que tava
rolando…”
“Não cara não. Eu sou assim. Sou
assim com todo mundo, isso não quer dizer nada. Sou assim até quando perto de
namorado, e você sabe disso. Não sou diferente ao lado dele. Aliás, você também
tem namorada e por isso nunca achei que você fosse confundir alguma coisa”.
Ele não se contentou. Ficou pasmo
que falar oi, perguntar sobre o final de semana e mostrar os dentes (leia-se
sorrir) não são sinônimos de “quero que você me agarre num corredor vazio,
fardado, com pistola e cassetete, me encurrale na parede e insista por um
beijo”. Mesmo se, com o namorado, agisse
com a mesma simpatia.
“Mas ele (o namorado) não vai
ficar sabendo, não tem ninguém aqui” – insiste.
Esse era o problema. Ninguém
veria. Assim nenhuma alma poderia me ouvir se gritasse. Por milésimos de
segundos me apercebi da situação: faculdade vazia, corredor sem sinal de vidas,
pistola de um lado, cassetete de outro. Mas não, independente do preço que eu
poderia pagar, não foi pra isso que busquei me empoderar, não foi pra me render
que fui apresentada ao feminismo.
“Não cara, você se confundiu. Eu
sou assim com qualquer pessoa, sempre converso, mas não significa nada além de
uma conversa. Sinto muito, mas você se confundiu”.
“Mas então um presente de natal
pra eu não me sentir tão mal. Eu sou tão feio assim que não mereço nem um beijo
de natal?”
Eu já não acreditava em tamanha
insistência. Mas já não estava em muitas condições de partir pra grosseria ou
aumentar o tom de voz. Então usei da mesma arma que ele me apontava – a
simpatia. Com olhar mais doce que conseguia, embora num tom sério e firme
sutilmente neguei pela última vez: “Não cara, de verdade, você se confundiu.
Mas fique tranquilo, a amizade continua. Agora temos que ir que o banco já esta
a fechar. Você vai também?”
Óbvio que foi meu dia de sorte
por não terem me interrompido a caminhada. Mas nesse dia morreu algo dentro de
mim. Morreu minha prontidão por cumprimentar sorrindo e de brilho nos olhos a
desconhecidos, independente de quantas vezes por dia meu olhar cruze com os
deles, nem todos estão prontos a receber um olhar um pouco mais brilhante, ou
um sorriso nos lábios com a mesma sinceridade em que lhes são oferecidos.
Aprendi nesse dia que por mais
difícil que seja deixar de sorrir para o porteiro que se parece tão simpático e
cansado de tanto trabalho é preciso desaprender, porque dias após outro ele
aprenderá a te chamar com fiu-fiu quando você passa por ele, aprenderá também
que ele se sente no direito de te chamar assim, “porque é teu amigo”. Aprendi
com eles que é preciso “embrutecer o olhar”, diminuir o sorriso. Porque como
diz um sábio amigo filósofo “a simpatia também é uma experiência, nem todos
saberão apreciar sem invadir a privacidade do outro”.
Eu fui violentada? Sofri uma
opressão? Muitos dirão que não. Mas: Quais eram minhas reais chances de negar
aquele beijo e sair ilesa? Quais eram minhas opções se ele resolvesse se dar um
presente naquele natal? Para quem eu ligaria depois disso? O que diria a
polícia: “sua saia esta curta demais, você procurou por isso” ou “ele disse que
você queria, e só está inventando essa história”.
Ou talvez com muito azar, nem 190
eu teria condições de discar, e poderia ser só uma historinha contada sobre
certa aluna que hoje vive a 7 palmos da terra. O corredor poderia se tornar
assombrado e como nos filmes de terror eu poderia ser aquela personagem
branquela que depois de morta, sua alma continuaria vagando pelos corredores e
que mataria os “ômi” que assediassem as mulheres na rua, na escola, em casa.
Aprendi que não é só o “fiu-fiu”
que tem de ser banido. Aprendi que assédio não é só quando diz “gostosa” pra
desconhecida na rua. Tem um tom de voz, um brilho nos olhos, próprios dos
assediadores. Tem o ambiente milimetricamente calculado para te encurralar.
E foi nesse dia que aprendi que
mulheres são violentadas o tempo todo, na rua, na calçada, no corredor, no
posto, no bar. E que não há um número sequer em que podemos requisitar por
socorro. Porque será ridicularizada: “não há marcas, dirão”. Onde está a lei que
me protege antes mesmo que eu me torne tetraplégica como Maria da Penha, vítima
de uma violência doméstica? Onde está a lei que me protege de assédios na rua
que cotidianamente me coagem, me tiram o direito de ir e vir? Estamos todos à
espera que Maria da Penha seja nossa história pessoal para só então admitir:
“isso sim foi violência”?
Cotidianamente encontro com ele.
Já não pergunto sobre o final de semana, tampouco pronuncio o “tudo bem”,
apenas um leve balanço de cabeça como quem diz “oi”. E todos esses dias me
lembro do medo, e do que poderia ter acontecido. Essa história me atormenta, me
causa maus estares, me dá arrepios. E se isso não foi assédio é porque estamos
muito acostumados a perceber que o assédio só tem marcas físicas.
Fonte: Geledes
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