Há muito tempo venho refletindo
sobre as desigualdades de gênero no mundo acadêmico, nas escolas ou na
política. Muitos acreditam que o sucesso feminino é a melhor arma contra um
mundo predominantemente masculino. Como sou um pouco incrédula em relação ao
conceito de sucesso (por não entender muito bem o que ele significa e quais os
parâmetros que o definem), prefiro acreditar que a resistência se dá por
palavras. Palavras públicas. Dedo na ferida. É preciso desnudar a ignorância
machista e apontá-la no flagra. Nosso papel é tornar o invisível, visível.
Escreve Rosana Pinheiro-Machado,
cientista social e antropóloga e professora do departamento de Desenvolvimento
Internacional da Universidade de Oxford, em artigo publicado por CartaCapital,
Foucault já dizia que
conhecimento é poder. O feminismo lembra que conhecimento é poder masculino.
Como se reproduz, então, essa ciência dos homens? Certamente por mecanismos tão
sutis e invisíveis que nem sempre são facilmente identificáveis.
Muitas mulheres quando entram em
uma sala de aula pela primeira vez para ensinar seja Física ou Ciência Política
enfrentam rotineiramente a ridicularizarão de meninos que simplesmente não
conseguem sincronizar a expectativa – uma disciplina encarnada na figura de um
homem – e a realidade. Aí começa uma longa jornada de deboches, afrontas e
desdéns.
Mas isso não é observado por
todos. Geralmente, só a professora que sente calada e enxerga com o canto do
olho a arrogância do aluno (e da aluna também). As consequências desse ato tão
pequeno, mas tão poderoso (que é engendrado por parte de meninos que, na
verdade, pouco sabe sobre que está sendo ensinado) é o desenvolvimento de um
processo de autodilaceração, insegurança e até pânico entre as mulheres. O
ensino se torna um fardo e uma provação constante.
Foram tantas as vezes que eu
entrei em sala de aula e, ao falar sobre teoria social, deparei-me com alunos
que simplesmente não conseguiam me olhar nos olhos. Mas os problemas não acabam
por aí. Salas de professores e corredores universitários são cenários perfeitos
para a reprodução do poder masculino. Tente entrar na roda de discussão sobre
política ou economia.
Não se surpreenda se seus colegas
continuarem de costas para você, mais ou menos como acontece quando uma mulher
tenta dar uma opinião sobre tática futebolística. Se a mulher levantar a voz
para ser ouvida, será chamada de histérica. Mas se ela conseguir entrar na roda
dos meninos, não é raro que sua opinião seja desprezada por gestos
microscópicos, como a mudança ligeira de assunto. Uma verdadeira máquina de
exclusão e de corroer autoestima.
Ao longo destes anos, ouvi muitas
colegas dizerem que eu precisava me masculinizar se quisesse ser respeitada. Eu
teria que aprender a “colocar o pau na mesa”. Ou apenas tornar-me “assexuada”.
Mas confesso que a preguiça de colocar esse plano em prática é inversamente
proporcional ao apreço que tenho pelo meu batom vermelho.
Eu também tenho preguiça profunda
de tentar soar inteligente. Aos 18 anos eu fazia isso com muita facilidade.
Usava palavras bonitas, referia-me a filósofos franceses, preferencialmente
citando conceitos ou da moda ou palavras que ninguém entendia. Mas um pouco de
reflexão crítica sobre isso nos demonstra que essa tem sido justamente a forma
de reprodução de poder via conhecimento. E não é nisso que eu acredito.
Eu acredito na força da
simplicidade das palavras e na democratização do conhecimento, que precisa ser
uma viagem prazerosa coletiva e não uma masturbação intelectual. George Orwell
dizia que palavras difíceis servem ao poder. Elas são armas políticas, desenhadas
para dar uma aparência de solidez àquilo que é puro vento. Eu apenas
acrescentaria que palavras difíceis servem muito bem ao poder masculino.
Nos últimos tempos, tenho
participado de debates – predominantemente masculinos – sobre política brasileira.
Muitos dos chamados intelectuais de esquerda têm uma capacidade imensa de
provocar paixões. Quando mais ininteligível for o “Professor”, melhor. Afinal,
é justamente esse o prazer que o poder desperta. É assim que as pessoas querem
ser vistas: inatingíveis. É justamente esse cara que o garoto da sala de aula
espera porque, no final das contas, é esse cara que ele quer ser. Não é incomum
que muito desse discurso enfeitado seja usado para persuadir sexualmente alunas
muito jovens.
O curioso é que quando a gente
faz uma análise de discurso do que está sendo dito em muitos desses debates,
damo-nos conta que existem ideias em círculos, pouco claras, mas muito
enfeitadas. Na maioria das vezes em que eu tento discutir o avanço da direita
no Brasil e os desafios da esquerda, é preciso aguentar uma tonelada de clichês
acadêmicos para uma situação que exige objetividade e ponderação. No entanto,
elitismo e machismo acadêmico fazem com a simplicidade – que deveria ser a
maior virtude intelectual – seja considerada uma fraqueza feminista, justamente
enquanto o país pega foto dento e fora das redes sociais.
Deixo as frases difíceis àqueles
que precisam delas. Todo o dia, lembro que muitos dos meus alunos estavam
esperando o professor velho britânico, mas vão encontrar a jovem
latino-americana, um tanto desajeitada e sem vontade nenhuma de parecer séria.
Assumo as consequências de minha escolha – e não são poucas. Era bem mais fácil
fechar a cara, falar grosso e delirar na dialética discursiva.
Assim com milhares de companheiras,
opto por desafiar o poder masculino cotidianamente jogando luzes no escuro. No
discurso reto, começo minhas aulas de desenvolvimento internacional lembrando
que não se pode lutar contra a injustiça global sem nos darmos conta das
injustiças locais, aquelas mesmo que se reproduzem na sala de aula.
Eu paro a aula e pergunto por que
fulano está rindo e peço para ele compartilhar a piada com o grupo todo. Ele
fica vermelho e seu império de papel desmorona. E eu continuo aqui, em minhas
aulas ou em minhas colunas, acreditando no poder revolucionário e
democratizante do sorriso generoso e das palavras simples.
Fonte: Carta Capital
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