A festa de Corpus Christi que
celebramos na última quinta-feira é uma ocasião adequada e prenhe de
significado para refletir sobre acontecimentos recentes que em nosso país
profanaram corpos humanos com uma onda irrefreável de violência. Venerar e
proclamar a fé no Corpo de Cristo presente na Eucaristia nos remete
necessariamente a pensar sobre o lugar do corpo na revelação cristã.
Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer*
A experiência e a reflexão teológica
no cristianismo são experiência e reflexão teológica sobre um Deus encarnado.
Fora deste dado central e absolutamente necessário, não há cristianismo. Não
havendo encarnação, não há a possibilidade de Deus assumir todas as coisas por
dentro e viver a história passo a passo, por assim dizer “na contramão” de sua
eternidade. Não havendo encarnação, não há cruz, não há redenção, não há
salvação. Não há, portanto, aliança entre a carne e o Espírito.
Nada, portanto, do que é humano é
estranho ao cristianismo e toda nova descoberta e toda nova ênfase em termos de
humanidade vêm não ameaçar a experiência cristã, mas pelo contrário,
alimentá-la, nutri-la, fazê-la mais de acordo ao sonho de Deus Pai, Filho, e
Espírito Santo, que a tudo e a todos deseja cristificar e plenificar por sua
práxis santificadora que preside a história e trabalha por dentro a carne do
mundo.
Toda tentativa de escapar disto,
é tentação que descaracteriza o cristianismo, em sua pessoalidade, em sua
configuração trinitária, em sua dinâmica histórica e encarnatória.
Confessar com a boca e o coração
que o Verbo se fez carne e o Espírito foi derramado sobre toda carne implica
buscar a experiência e a união com Deus que assim determina comunicar-se com a
humanidade através desta carne na qual é possível experimentá-Lo. Desde aí
somente é possível começar a reflexão sobre a corporeidade humana e pensar
igualmente sua conflitiva interlocução com a violência.
O corpo humano está no centro da
revelação cristã, do momento em que se trata de algo que foi assumido pelo
próprio Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo. A Encarnação do Verbo,
que toma corpo humano e habita entre nós, embora carregue consigo uma forte
dimensão de despojamento e humilhação, pois Deus se esvazia de suas
prerrogativas ao assumir a carne humana, por outro lado eleva e engrandece a
corporeidade humana, resgatando-a de uma vez para sempre, pois a divindade a
abraça por dentro.
Através das Escrituras cristãs
podemos ver que a presença da violência se encontra no meio do mistério da
Encarnação. A corporeidade humana assumida pelo Filho de Deus está desde o
início exposta ao flagelo da violência que sempre assolou a humanidade. Assim
como Deus não se revela impondo-se, mas expondo-se, entregando-se amorosa e
indefesamente, assim também a violência não é por ele driblada ou desviada, mas
sim assumida em seu próprio corpo semelhante ao nosso. A corporeidade redentora
e redimida passa pela vulnerabilidade e a exposição à violência.
O mistério da Encarnação coloca o
próprio Filho de Deus e a corporeidade humana por ele assumida em meio à
violência e ao pecado presentes no mundo. Neste sentido, Jesus em sua vida e em
seu caminho histórico não se encontra preservado nem invulnerável às
ambiguidades que implica viver num mundo onde a paz ainda não é uma realidade
plena.
Jesus, além disso, entra na
história sempre recomeçada de um povo ingrato e indócil, de má-fé, que não quer
dar a Deus o que deve. Assume em sua carne e em sua vida a visão e a
experiência dos profetas, rejeitados, perseguidos. É uma lei da história que os
homens queiram se desembaraçar, sumária e injustamente, dos enviados de Deus. E
Jesus lê nessas histórias de sangue e violência o destino que o espera.
A Bíblia e, especialmente o Novo
Testamento, revela que a violência presente no mundo, Deus não a evita, mas a
assume sobre si mesmo. E que a fé nesse Deus implica fazer o mesmo que Ele:
dispor-se a tudo suportar, tudo sofrer, para poder persistir amando. Para isso,
decidir-se a tudo perdoar, preferindo antes sofrer injustiças e perseguições do
que preservar-se, deixando o câncer da violência seguir seu curso. O Mestre dá
o exemplo supremo com a maneira pela qual vive e sofre o processo que o levará
à Paixão e à morte. Seu Espírito derramado após Sua Ressurreição indicará que
este é o caminho e a vocação da corporeidade humana à luz da fé cristã. A festa
de Corpus Christi nos ensina que esse corpo entregue é alimento para uma
vidapautada no amor e não na violência.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da
PUC-Rio. É também autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética,
mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
Fonte: http://amaivos.uol.com.br/
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