Por que pensar e tratar a morte
de mulheres de forma distinta às demais? Por que não encarar a extrema
violência causada a elas da mesma maneira que devemos encarar todas as vidas
ceifadas de maneira violenta? Essas são perguntas que inevitavelmente surgem a
tantas pessoas que ouvem pela primeira vez qualquer debate sobre o feminicídio.
As respostas a essas perguntas trazem luz a uma realidade que vai além da morte
dessas mulheres e que atingem a sociedade como um todo.
por Aline Yamamoto e Elisa Sardão
Colares
No Brasil, segundo dados do Mapa
da Violência (2012), a cada 10 homens que morrem de maneira violenta uma mulher
também é assassinada. Apesar de as mulheres corresponderem apenas a esta
porcentagem no total de homicídios que são cometidos no Brasil (dados similares
ao dos demais países da região), as mortes violentas de mulheres vêm crescendo
nas últimas décadas em patamares superiores aos demais homicídios: houve um
aumento de 230% de assassinatos de mulheres em comparação aos homicídios de
forma geral que cresceram 124% de 1980 a 2010 (Mapa da violência, 2012). Nas
últimas 3 décadas somaram-se 96 mil mortes de mulheres que representaram um
crescimento de 2,3 mortes a cada 100 mil mulheres em 1980 para 4,6 mortes por
100 mil mulheres em 2010.
Em que contextos se dão essas
mortes? Os dados não permitem mapear exatamente todos os cenários possíveis em
que as mulheres são assassinadas, mas indicam diferenças notórias em relação
aos homicídios de homens: quanto ao local da morte, 41% das mulheres morreram
nas residências enquanto apenas 14,3% das mortes dos homens ocorreram dentro
das casas; em relação ao instrumento utilizado, observa-se maior uso de armas
brancas nos assassinatos de mulheres (a arma de fogo aparece com incidência em
49,2% nas mortes de mulheres, enquanto que para os homens a incidência é de
72,4%). Esses dois elementos sinalizam que os fatores de vulnerabilidade à
violência fatal de homens e mulheres são distintos e que há uma característica
peculiar das mortes violentas de mulheres: a conexão com o fenômeno da
violência doméstica e familiar e a maior suscetibilidade de ser morta por
instrumentos que envolvem contato próximo entre agressor e vítima e que sugerem
uma desproteção maior.
Dados das Nações Unidas estimam
que 1 de cada 3 mulheres sofreram ou sofrerão algum tipo de violência ao longo
de suas vidas e que 1 de cada 5 sofrerão especificamente algum tipo de
violência sexual. A maior parte dos agressores são pessoas conhecidas: nos
casos de violência doméstica e familiar, são os parceiros ou ex-parceiros os
principais autores, isto é, pessoas com quem a mulher construiu laço de
confiança e afeto. Nos casos das meninas, especialmente crianças, os principais
autores de violência sexual são parentes ou pessoas de convívio familiar
próximo. Mas as violências que meninas e mulheres sofrem também ocorrem em
outros contextos, seja no local de estudos e trabalho, no espaço público, seja
por pessoas desconhecidas, em contexto de tráfico de pessoas, de drogas, de
casamentos forçados, mortes decorrentes do exercício de alguma atividade estigmatizada,
como a prostituição etc. E dentre os grupos de mulheres há aquelas que estão
mais vulneráveis que outras, sendo necessário considerar os outros marcadores
sociais como renda, raça, etnia, origem, deficiência, geracional, dentre
outros.
Entretanto, um traço comum a
todas essas violências é serem resultantes da desigualdade de poder entre os
gêneros, isto é, da objetificação da mulher, do controle sobre suas vidas e
seus corpos, compondo esse cenário amplo de discriminação resultante de uma cultura
brasileira ainda fortemente patriarcal e machista. Quando essa violência
resulta em morte, quando esta morte se dá nesse contexto de discriminação e
desigualdade, é que falamos em feminicídios. Então falamos de Eloá, Eliza,
Mércia, Isabella, Michelle, Sandra, Daniella, Maristela, Ângela e tantas outras
mulheres que foram mortas por não aceitarem permanecer numa relação violenta,
por não aceitarem cumprir com as regras ou expectativas de seus companheiros ou
da sociedade, por serem vistas como objetos sexuais, por terem sido invisíveis
ao Estado e ao sistema de justiça, que na maioria dos casos não foram capazes
de ouvi-las e, portanto, de prevenir tais mortes anunciadas.
É por isso que precisamos falar
de feminicídios, porque as respostas que os Estados dão a diferentes problemas
sociais, como são os homicídios, geralmente consideram primordialmente o
retrato da maioria. E no Brasil, assim como em outros países, a maioria das
pessoas assassinadas são homens, jovens, negros, no contexto da criminalidade urbana
ou de grupos de extermínio. Embora seja extremamente relevante que o Brasil
desenvolva medidas para reduzir tais homicídios, considerando esse recorte
geracional e étnico-racial, e que haja uma relação entre altas taxas de
homicídios e de feminicídios (Small Arms Survey, 2012) ligada ao alto índice de
impunidade, tais medidas dificilmente terão impacto significativo na redução
dos assassinatos de mulheres, porque os contextos e cenários são distintos e
requerem, portanto, políticas públicas diferenciadas.
A Lei nº 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha, foi uma das respostas do Estado ao grave cenário de
violência doméstica e familiar contra as mulheres. Considerada uma lei avançada
por partir da concepção de que o enfrentamento a este tipo de violência demanda
ações integrais, de prevenção, assistência, promoção e garantia de direitos,
para além da adequada e necessária punição aos autores, houve significativos
avanços em termos de políticas públicas e de percepção da sociedade brasileira
sobre o fenômeno da violência doméstica e familiar.
Em relação à prevenção,
observa-se a crescente institucionalização das políticas voltadas para as
mulheres no âmbito dos poderes executivos federal, estadual e municipal, e a
criação de mecanismos para fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas de
urgência, de enorme importância para se evitar os feminicídios. Tal também se
deu no âmbito dos sistemas de justiça estaduais, que vêm criando estruturas
especializadas para investigar, processar e julgar esses casos de violência e
que levou à organização de grupos de promotores de justiça, da magistratura, da
defensoria pública, que se mobilizassem pela efetiva implementação da lei.
Recente pesquisa realizada pelo IPEA (2015) identificou que um dos efeitos da Lei
Maria da Penha foi a contenção, de até 10%, dos feminicídios ocorridos no
contexto doméstico e familiar.
Quanto ao segundo aspecto, dados
da pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo DataPopular (2013)
mostram que a população está mais consciente sobre a gravidade do problema e à
maior vulnerabilidade da mulher nas relações íntimas de afeto. Reconhecem, por
exemplo, que a mulher está mais suscetível a ser vítima de violência dentro de
suas próprias casas que nos espaços públicos. Entendem que o medo de morrer é
um dos fatores que fazem com que as mulheres permaneçam por anos numa relação
violenta, ao mesmo tempo em que reconhecem que o rompimento dessa relação
aumenta o risco de morte. A população acredita que se deve denunciar a violência
às autoridades policiais, mas opinam que essa denúncia aumenta ainda mais o
risco de vir a ser assassinada. Em suma, a população está ciente de que as
mulheres ainda estão sozinhas na luta contra a violência e reconhece os limites
das respostas que o sistema de justiça tem dado aos assassinatos de mulheres.
Passados mais de 8 anos de
vigência da Lei Maria da Penha e reconhecendo que permanecem muitos desafios na
sua implementação, é preciso aprimorar as respostas do Estado no enfrentamento
a todas as formas de violência contra as mulheres e especialmente aos
feminicídios, que são a expressão mais grave delas. E isso também envolve
aprimorar a legislação brasileira, conforme recomendado na 57ª reunião da
Comissão sobre a Situação da Mulher da ONU. Nesse sentido, em 9 de março de
2015, foi sancionada pela Presidenta da República a Lei nº 13.104, que tipifica
o feminicídio como forma qualificada de homicídio, incluindo-o no rol do
parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal. Deste modo, o Brasil passa a ser o
15º país da região a alterar sua legislação penal para nomear e distinguir os
feminicídios dos demais crimes de homicídio.
Mas essa alteração do Código
Penal é suficiente para reverter o cenário de feminicídios no Brasil?
Certamente não. Nenhuma lei é capaz, por si só, de alterar um cenário de
violência, ainda mais quando intrinsecamente ligada à cultura de desigualdade e
discriminação contra as mulheres, e esperar isso dela seria não só ingênuo como
leviano. Contudo, a inclusão do feminicídio no Código Penal faz parte de um
conjunto de medidas legítimas que o Estado brasileiro pode e deve tomar para
melhorar a resposta do sistema de justiça criminal voltadas à investigação,
processo e julgamento dos casos de feminicídios, de modo a estar atento às
desigualdades não só presentes na trajetória individual das vítimas mas também
àquelas presentes nas vidas de todas as mulheres brasileiras.
A inclusão das “razões de
condição de sexo feminino” associadas às mortes violentas de mulheres, que
podem ser caracterizadas pela violência doméstica e familiar e pelo menosprezo
e discriminação à condição de mulher, já é o reconhecimento da estrutural
desigualdade entre os gêneros e comunica uma mensagem relevante à sociedade no
sentido de reprová-la. Mas as práticas penais também comunicam e é preciso
reverter a reprodução dos estereótipos de gênero, na instrução e nos
julgamentos dos feminicídios, ainda encontrada nos Tribunais do Júri que
configuram como crimes passionais o que na verdade representam verdadeiros
crimes de ódio. Conforme identificado por recentes pesquisas (Ministério da
Justiça, 2015) ainda se exige da mulher determinados comportamentos para poder
ser dada como vítima legítima de punibilidade de seu algoz.
Por fim, deve-se destacar que o
feminicídio representa uma, entre tantas outras lutas, que precisa avançar.
Porque no Brasil ainda se mata simplesmente por ser mulher.
Referências:
CEBELA/FLACSO. Mapa da Violência.
Atualização: homicídios de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro:
CEBELA/FLACSO-Brasil, 2012, 26 pág. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_mulheres.php.
Data Popular; Instituto Patrícia
Galvão. Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres
(2013).
Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Texto para Discussão nº 2048. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2015.
Small Arms Survey-Graduate Institute of
International and Development Studies. 2012. Femicide: A Global Problem em
http://www.smallarmssurvey.org/fileadmin/docs/H-Research_Notes/SAS-Research-Note-14.pdf.
Genebra, The Graduate Institute.
BRASIL. Diálogos sobre Justiça –
A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil.
Ministério da Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário, 2015 (no prelo).
Aline Yamamoto é Secretária
Adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR)
Elisa Sardão Colares é Analista
de Políticas Sociais da Secretaria de Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres da SPM-PR
Fonte: Patrícia Galvão
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