A sociedade brasileira sempre teve uma atitude dupla e
ambígua com relação à prostituição: por
uma parte aceita sua existência e até usufrui, por outra parte rejeita o seu
reconhecimento. Por isso, apesar de ser um fenômeno amplamente consumido em
nosso país, a legislação praticamente guarda silêncio, especialmente no
relativo à garantia de direitos das profissionais do sexo.
Por Jose L. Uriol
E quando aborda o
tema, o faz unicamente para criminalizar algumas condutas relacionadas à
prostituição (artigos 227 a 230 do Código Penal), relegando esta atividade a
uma posição de marginalidade.
Um pequena mudança no modo como as políticas públicas
brasileiras têm abordado a prostituição
se deu com o reconhecimento da ocupação
“profissional do sexo” pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 2002, quando
foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupação (CBO). Segundo a CBO estes profissionais são
pessoas que buscam programas sexuais, atendem e
acompanham clientes, além de participar em ações educativas no campo da
sexualidade.
Porem, surpreendentemente,
esta profissão, reconhecida como lícita, não possui qualquer amparo
institucional para seu adequado exercício. O jurista Renato de Almeida Oliveira
Muçouçah, cuja tese de doutorado é “Trabalhadores do sexo e seu exercício
profissional: um enfoque pelo prisma da ciência jurídica trabalhista”, aborda esta questão com muita precisão:
“...por não haver balizamentos legais em relação à maneira de atuar de
rufiões ou casas de prostituição, estes podem ser considerados os “gatos” do
comércio sexual – pessoas que, sem idoneidade financeira, exploram o trabalho
alheio e não o remuneram condignamente, deixando de oferecer condições mínimas
de higidez física e psíquica aos trabalhadores, ambiente do trabalho com o
mínimo de salubridade, proteção contra riscos oriundos do trabalho, etc. Estes
aviltam, e de maneira gritante, a própria dignidade da pessoa do trabalhador do
sexo. Este é um motivo a mais para que as relações comerciais de sexo sejam
consideradas como de emprego, tendo-se em vista a proteção da pessoa do
trabalhador em seus mais elementares direitos”[1]
.
Precisamente por essa
clandestinidade, por essa falta de normatividade, as transgressões, e as vulnerações de direitos
podem acontecer com maior facilidade. Ao deixar de prever garantias e direitos
básicos às pessoas que escolhem esta atividade como forma de ganhar a vida, se lhe
impede o reconhecimento da sua identidade de trabalhadoras e que possam receber a proteção do Estado. Este
fator, que nega sua plena cidadania, vem a reforçar ainda mais a estigmatização
daquelas que estão na prostituição.
Nas palavras de Gabriela Leite[2]:
O que acaba com uma prostituta, o que tira sua dignidade e sua saúde, não
é transar, não é fazer sexo profissionalmente. O que acaba com ela é a falta de
condições de trabalho: não tem água para se lavar, o quarto não tem condições
de higiene, tem percevejo andando pelas paredes; se ela não trabalha um dia ou
mais, vem a cafetina dizer que ela tem que trabalhar para pagar pelo dia de
trabalho e pelas faltas, e a prostituta fica devendo um monte de dinheiro. Vira
escrava da cafetina. Não há regra para nada, nenhuma legislação que a ampare.
Evidentemente a exploração econômica incide no mercado do
sexo, igual que em muitos outros trabalhos ofertados no mercado, onde existe
uma grande disparidade entre o salário pago e o valor do trabalho produzido.
Permitir que, em ausência de normativa, as partes regulem livremente as
condições em que deve ser exercício o trabalho sexual (como acontece hoje) é
abrir a porta aos abusos e à violação de direitos, máxime quando existe um
enorme desequilíbrio de poder econômico entre quem contrata e quem é
contratada. Neste caso é preciso invocar
o papel do Estado na garantia de direitos.
É verdade também a prostituição como instituição não pode
compreender-se fora da estrutura patriarcal, sistema social, político e
econômico, no qual os homens controlam, individual e coletivamente, o trabalho,
o corpo e a sexualidade das mulheres. A
prostituição não é um problema exclusivamente individual de quem exerce e quem
paga, é uma questão também social, porque estamos falando de desigualdade
económica e de gênero e de ideologia patriarcal. Por isso a instituição
prostitucional, base sustentadora dessa ordem (ou desordem?) deve ser combatida no plano cultural e político. É
preciso politizar a sexualidade e questionar a construção ideológica das
necessidades sexuais masculinas. Esta batalha, longa e difícil, não nos deve
fazer esquecer o que as trabalhadoras sexuais nos estão dizendo. Por isso é importante diferenciar entre
táctica e estratégia: melhorar aqui e agora suas condições de vida e trabalho
no curto prazo, sem perder o horizonte de trabalhar por mudanças culturais e
sociais no longo prazo.
As mulheres que livremente exercem a prostituição merecem desde já o respeito e o
amparo dos seus direitos como cidadãs e trabalhadoras. Trabalhar hoje por
empoderá-las e garantir seus direitos civis e trabalhistas não se opõe a
promover, desde uma perspectiva feminista , uma sociedade com plena igualdade
nas relações entre gêneros.
Da mesma maneira que lutar para que as empregadas domésticas
(uma profissão, herança escravista, que só se mantém através da exploração de
uma classe social por outra) tenham mais
direitos trabalhistas reconhecidos não significa concordar com esta instituição
e com a divisão sexual do trabalho que ela manifesta[3].
Não oferecer direitos
laborais às profissionais do sexo vulnera os fundamentos da dignidade humana
e o principio da não-discriminação. A
regulamentação em si mesma, formalmente, não é decisiva. Uma determinada
regulamentação da prostituição pode agravar a exploração e reforçar o
patriarcado ou pode fornecer às mulheres proteção de seus direitos, tudo
depende do conteúdo dessa normativa e a quais interesses serve.
[1] MUÇOUÇAH,
Renato de Almeida Oliveira, O trabalho dos profissionais do sexo e sua tutela
pelo Direito. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a7b4862f2e69483.
Acesso em 10 de março de 2015.
[2] LEITE,
Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 170
[3] Teóricas
feministas, como Heleieth Saffioti mostraram como o emprego doméstico associa
modos capitalistas de exploração do trabalho com antigas estruturas de
dominação no âmbito familiar. Baseada na organização patriarcal da família, a
instituição do serviço doméstico é um sintoma da desigualdade de gênero e
desigualdade social existente. O desejo de poder superar, no futuro, esta
“instituição” não impede que seja importante lutar aqui e agora por melhores
condições de trabalho das empregadas domésticas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário