O trabalho diário com as mulheres
que exercem a prostituição tem nos provocado a fazer reflexões constantes. A zona boêmia de Belo Horizonte,
historicamente localizada no centro da cidade, sempre foi território masculino
onde as “moças de família” não deveriam sequer passar.
Por Isabel C. Brandão e Lucinete
Santos
Lembrando que, o termo “moça de
família”, já traz implícito o contraponto preconceituoso que está latente na
palavra mulher. Pois, há territórios e comportamentos que, por si só, colocam
sob suspeita o status sexual da mulher. Dito de outra forma, todas as mulheres
são controladas por um sistema informal e malicioso, no qual “puta” é uma
ofensa a qualquer mulher que transgride o que se considera “boa reputação
feminina”.
Para a mulher, o uso correto da
sexualidade se restringe ao casamento, reservando-lhe o lugar de “rainha do
lar” – aquela que está a serviço de todos - desempenhando tarefas que tem
reconhecimento social, mas não econômico. Estando restrita ao âmbito doméstico,
tem poucas oportunidades de desenvolver suas potencialidades e dificuldades de
acessar recursos econômicos que tornem viáveis sua independência e autonomia.
Este fato naturaliza e perpetua a discriminação, facilitando o controle
ideológico sobre a mulher. O controle da sexualidade feminina, constituído em
bases patriarcais, responde a uma ordem econômica que visa a garantir a certeza
da paternidade e a transmissão da herança a herdeiros legítimos.
A legitimação deste controle é
possível a partir da incorporação dos valores machistas pela própria mulher.
Simone de Beauvoir nos lembra que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”,
referindo-se as relações desiguais de poder que coloca o feminino subordinado
ao masculino. Assim sendo, “mulher de má fama”, oposto de “rainha do lar” é um
arranjo ideológico com motivação pedagógica, e está ali para nos ensinar o que
acontece se nos afastamos do que é “conveniente”. Entendendo como conveniente o
matrimônio, que é o que dá legitimidade social e autovalorização à mulher. O
medo de sermos identificadas como “desviadas, desonradas” nos faz assumir o
discurso sexista que cria padrões hegemônicos e heterogênicos de condutas
sexuais, impondo direitos desiguais para homens e mulheres. Logo, protótipos de
comportamentos considerados desviantes para as mulheres e, portanto, passíveis
de punição, são distintivos e valorativos do que é ser macho.
“Eu falo que a prostituta tem que
existir, a sociedade seria pior sem ela. Quando um homem ou uma mulher casada
me questiona sobre prostituição eu falo, ô minha filha, homem não vive sem
sexo. Porque se o homem não pegar a prostituta, não tiver ela, ele vai pegar a
mulher casada, ele vai pegar a menina adolescente. Seria mais estupro; assim eu
penso. O homem tem instinto animal, esse é o instinto dele.” (M.A.)
Diante dessa conjuntura, mesmo
com toda a opressão e controle, o que faz com que algumas mulheres optem pela
prostituição?
Embora seja comum que as mulheres
que exercem a prostituição tenham uma história marcada por vulnerações
sócio-afetivas e desrespeito a direitos elementares e básicos, tais como acesso
à moradia, saúde, educação, isto não será determinante para a entrada na
atividade. Vários fatores devem ser considerados. Além das histórias
individuais, as conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais
interferem na construção da subjetividade de cada pessoa influenciando em suas
escolhas.
Escutando as mulheres, observamos
que elas tiveram oportunidades de trabalho, mas diante dos baixos salários que
receberiam, optam pela prostituição como possibilidade de trabalho por ser mais
rentável, oferecer maior flexibilidade de horários, dar maior liberdade e
autonomia.
“Na minha vida, a prostituição
não foi problema; foi solução.
“Com o dinheiro que ganhei ajudei
minha mãe a cuidar de meus irmãos.” (M.P.)
“Eu não conseguia emprego, mas
conseguia cantada.” (L. W.)
“Com quinze anos conheci a
prostituição. Foi uma porta que se abriu.” (C. L.)
“Sabe o vício da garota de
programa? Ter dinheiro para fazer o que quer.” (L.W.)
“Eu não vivo com salário mínimo.”
(D. S.)
De fato, o acesso desigual aos
recursos econômicos entre homens e mulheres faz com que, historicamente, a
prostituição seja uma estratégia laboral para as mulheres ditas “desviadas”,
apesar do alto custo social e psicológico que a prostituição impõe.
“A mulher se veste muito bem,
então ela cobre aquele estigma que ela carrega. Ela entra no shopping parecendo
uma madame e ela senta em uma mesa tomando um café, fumando um cigarro, tomando uma cerveja ou uísque, com outra madame do lado, que pensa
que ela é dama. E pergunta pra ela: o que você faz? Ah! eu tenho um salão de
beleza no Rio, tenho uma lanchonete, mas sempre como dona. Ela pode mascarar.
Ha... faz de conta que está tudo bem,
está com sapato caro,está bem vestida, está acompanhando executivo que é
o político do Brasil, ninguém fala nada”. (V.M.)
“Você aguentar um homem dentro de
quatro paredes e conseguir sair bem não é pra qualquer um não. Ali, está
garantido seu aluguel, sua comida, então tem que ter jogo de cintura, não é pra
qualquer um não”. (M.A.)
Desde a ótica da mulher, a
prostituição é menos escravizante que outras atividades que oferecem baixa
remuneração e são estigmatizadas por serem consideradas de baixa qualificação
profissional. É comum que ela utilize a
renda obtida nesta atividade para a melhoria da qualidade de vida própria e de
seus familiares, construindo casa, auxiliando com recursos financeiros em caso
de doenças, pagando estudos para irmãos, sobrinhos e filhos. E, ainda assim,
será rotulada de “vadia” e “vagabunda”.
“Rotulam nós como sujas, acham
que nós somos um bando de aidéticas, com gonorréia. Acham que a gente é lixo do
lixo, que serve só para os homens descarregar”. (A. K)
Por que as mulheres que exercem a
prostituição estão em situação desfavorável frente a outras/os
trabalhadoras/os? Qual é a real situação de vulnerabilidade?
O estigma. Entendido como tratar
o “diferente como inferior,
O olhar preconceituoso da sociedade
não vê a prostituição como uma atividade, mas como uma identidade que
desqualifica a mulher. Prostituta equivale à má mãe, “mulher de vida fácil”,
degenerada, manipulada entre outros. Como ressalta Minayo, “a transgressão como
busca de identidade para ser reconhecido como sujeito esbarra na violência
estrutural: existência e reprodução das desigualdades, exclusão social e moral
e dominação de classe e gênero”.
“O preconceito é assim: a mulher
de programa, para a sociedade hipócrita é indigna, embora ela não seja. Até o
homem que usa a garota de programa vê este trabalho como um trabalho sujo”.
(L.W.).
“Vocês acham que pela minha
profissão eu não sei criar meus filhos? Tem muita gente que tem diploma e não
sabe criar os filhos” (L.P.).
Neste sentido, o estigma é o
extremo da violência por ser “um atributo que implica desvalorização e situa a
pessoa em uma posição de desvantagem.”
Quando se associa a prostituição
à marginalidade e delinquência, abrem-se espaços para restrições de direitos
civis e sociais destas pessoas, naturalizando a violência e exploração
econômica. Além do mais, “conceitos negativos dessa espécie, designam um
comportamento que não representa uma injustiça só porque ele estorva os
sujeitos em sua liberdade de ação ou lhes inflige danos, pelo contrário,
visa-se aquele aspecto de um comportamento lesivo pelo qual as pessoas são
feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram de maneira
intersubjetiva.” (Axel Honneth).
Tais conceitos potencializam a
discriminação e humilhação “atuando de dentro para fora, através do medo, da
fraqueza de caráter e da sensação de impotência criada e mantida pelo
permanente processo de auto-julgamento, auto-condenação e auto-flagelação, o
que confirma e antecipa o fracasso pessoal, reafirmando o estigma social” (Letícia Lans)
Discursos antagônicos e
preconceituosos sobre a sexualidade podem ser usados como elementos para
fortalecer e manter a objetificação da mulher: vítima - se a mulher está na
prostituição por adversidade do destino; delinqüente - se ela encara a
prostituição como possibilidade de exercer liberdade, autonomia e resistência;
aquela que precisa ser “salva”; mulher passiva, objeto sexual, escrava
sexual... Em todos os casos o que está mal visto é a “troca de sexo por
dinheiro”, que em uma leitura latente diz respeito à autonomia, protagonismo e
liberdade da mulher.
O estigma é um mecanismo de
controle tão efetivo que as trabalhadoras sexuais passam a “se ver” com o olhar
daqueles/as que as discriminam. Assim, são lesadas em sua autoestima e são
marcadas pela ambiguidade: sentem vergonha do que fazem e introjetam a imagem
que a sociedade tem delas: “não presto”. Estigmatizadas, envergonhadas e com
medo de serem identificadas pelo trabalho que exercem acabam não se associando
para reivindicar direitos:
“O que vou reivindicar se tenho vergonha do
que faço?”
“Tem muito tempo eu nem
cumprimentava ninguém por causa disso. Ninguém, ninguém. A gente fica com medo
de ser reconhecida”
Cabe perguntar-nos: será que nós também
contribuímos para propagar idéias preconcebidas e de cunho moralista que
reforçam a discriminação a que as mulheres estão submetidas?
Estamos cientes de que não poderemos
erradicar a prostituição a curto e médio prazo, contudo, não abrimos mão de
lutar contra estruturas perversas que promovem injustiças e desigualdades.
Contemplando a vida destas pessoas a
partir do seu olhar e de suas dores, lutaremos para que as mulheres que exercem
a prostituição sejam reconhecidas como sujeitos de direitos. Que possam exercer
sua ocupação livres de marginalização, humilhação, violência e exploração
econômica. Poderemos rever conceitos e preconceitos, abandonar construtos
morais e criar novos paradigmas que promovam a resistência e autonomia das
mulheres.
Quem sabe, um dia, toda a
sociedade poderá olhar para uma prostituta como relata C., filha de uma das
mulheres que frequenta a Pastoral: “tenho orgulho da minha mãe porque ela nunca
deixou faltar nada para nós, nem um chinelo. Ela nunca colocou a gente para
pedir nem deixou a gente tirar nada de ninguém.”
Isabel Cristina Brandão Furtado –
Psicóloga e Lucinete Santos – Educadora Social – Formada em Serviço Social
(ambas Integrantes da Equipe Pastoral da Mulher de BH).
REFERÊNCIAS
- El trabajo sexual em la mira.
Polémicas e estereótipos - Dolores Juliano;
- Amor, um real por minuto -
ThaddeusBlanchetie e Ana Paula da Silva;
- Luta por reconhecimento; A
Gramática Moral dos Conflitos Sociais -
Axel Honneth;
- A vueltas com La prostituicón -
Holgado Fernández, Isabel;
- Profissionais do sexo – uma
perspectiva antropológica do estigma da prostituição – Vanessa Petró;
- Estigma, Auto-estigma e
Invisibilidade Social dos Crossdressers – Letícia Lanz
http://www.leticialanz.org/estigma-auto-estigma-e-invisibilidade-social-dos-crossdressers-13-10-2011/;
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