"No caso brasileiro, por
exemplo, fala-se mais nas geladeiras das Casas Bahia e menos na exploração do
trabalho - nas suas formas tupiniquins - que sustenta o qu.e vem sendo
denominado neodesenvolvimentismo" diz a socióloga Ludmila Abílio.
“Está cada vez mais difícil
mapear quem trabalha para quem, quais são os elos da cadeia produtiva, quais
são as relações de subordinação e, ao fim e ao cabo, reconhecer e criticar a
própria exploração”, constata a socióloga.
A flexibilização e a precarização
do trabalho indicam a “atualização da racionalidade taylorista e o seu
deslocamento para o setor de serviços”, diz Ludmila Abílio, autora do livro Sem
maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos, recém lançado
pela editora Boitempo. Crítica à teoria do trabalho imaterial do sociólogo
francês André Gorz, Ludmila Abílio apresenta exemplos para demonstrar que o
trabalho continua assentado numa lógica taylorista, na qual a “subjetividade”
do trabalhador “está sendo mobilizada permanentemente”, ou seja, “é uma
racionalidade que hoje se realiza pondo a subjetividade do trabalhador a
serviço da produção”.
O nicho de pesquisa da socióloga
é o trabalho desenvolvido pelas revendedoras de cosméticos da Natura, mas
também exemplifica sua teoria mencionando o trabalho de operadoras de
telemarketing, de motoboys e funcionários do McDonalds. “Seu trabalho conta com
seus saberes e diversos atributos? Claro que sim. Seu tom de voz, a forma como
estabelece o diálogo, a capacidade de lidar com agressões, dúvidas, etc. são
definidores de sua produtividade em certa maneira. Entretanto, sua
produtividade é gerenciada por um controle permanente em torno do tempo, tal
como o típico operário taylorista. Há uma relação estabelecida com a máquina,
um determinado ritmo da produção, quanto tempo deve durar a ligação, quais
frases utilizar, qual o procedimento padrão que será repetitivamente repetido,
etc. Não é porque sua produção seja completamente intangível e sua esteira seja
invisível que a racionalidade não é taylorista”, argumenta.
Na entrevista a seguir, concedida
à IHU On-Line por e-mail, Ludmila Abílio esclarece as situações de precarização
no trabalho, tendo em vista um cenário em que mais de um milhão de mulheres
atuam como revendedoras da Natura. Para ela, o crescimento exponencial de revendedoras
nas últimas décadas está diretamente relacionado com “a flexibilização do
trabalho, a generalização do empreendedorismo e a permanente ameaça do
desemprego”. Ela enfatiza que não há como traçar um perfil homogêneo das
revendedoras, porque elas “têm variadas condições socioeconômicas, formação,
trajetória profissional (...) Sua formação pode ir do ensino médio incompleto
ao pós-doutorado”. Nos quatro perfis de mulheres apresentados a seguir, Ludmila
destaca que, dentre as razões de as mulheres buscarem essa atividade, estão
desde o oportunismo até o vislumbramento de uma oportunidade de trabalho.
Ludmila Costhek Abílio é graduada
em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – USP, mestre em Sociologia pela mesma universidade e
doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas – Unicamp. Atualmente
leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em seu livro, a
senhora menciona que há no mundo mais de 95 milhões de revendedores de
cosméticos, e no Brasil, segundo dados de 2013, havia mais de 4,52 milhões de
vendedores, sendo que 1,3 milhão trabalham para a Natura. Como analisa esses
dados e a atividade das revendedoras dentro do quadro das transformações do
trabalho das duas últimas décadas? A partir da sua pesquisa, é possível
vislumbrar quais são as motivações que levam milhares de mulheres a se tornarem
revendedoras de empresas como a Natura?
Ludmila Abílio - Respondendo a
primeira parte de sua pergunta, a revenda nos propicia uma excelente
perspectiva para compreender uma série de questões que hoje atravessam e
costuram o mundo do trabalho. Como me disse uma diretora de uma reconhecida
empresa voltada para a gestão de recursos humanos, a “revendedora Natura é o
que há de ultramoderno no mercado”. Essa frase sintetiza a atualidade e a
centralidade de formas precárias e pouco reconhecidas como trabalho, que estão
plenamente conectadas com as inovações tecnológicas e reorganizações da
produção. Ao longo de minha pesquisa, a cada ano, em média 200 mil mulheres se
tornavam revendedoras. Como interpretar o crescimento exponencial de
revendedores nas últimas décadas? A flexibilização do trabalho, a generalização
do empreendedorismo e a permanente ameaça do desemprego são bons pontos de
partida.
O trabalho da revendedora encarna
os preceitos da flexibilização: não ter jornada de trabalho definida, não ter
local de trabalho preestabelecido, nem sempre ter patrão definido, e até mesmo
não ter remuneração definida. A princípio poderíamos associar trabalho flexível
com aquele programador que presta serviços de seu home office; já aqui a
flexibilidade parece muito mais próxima das características das ocupações
tipicamente femininas associadas ao emprego doméstico, ao trabalho doméstico e
ao trabalho em domicílio. Entretanto, se olharmos bem de perto, ou bem de
longe, veremos que na realidade
elementos centrais das ocupações tipicamente femininas hoje estão no
cerne do que denominamos flexibilização do trabalho: indistinção entre o que é
trabalho e o que não é, indistinção entre o que é e o que não é tempo de
trabalho, ausência de regulações públicas, trabalho não pago e não reconhecido,
ausência de proteções e direitos, polivalência e demanda permanente pela
mobilização de seus atributos e saberes pessoais. Então, este é um primeiro
ponto; um trabalho tipicamente feminino, mal reconhecido como trabalho e
aparentemente desimportante nos possibilita reconhecer elementos centrais que
hoje costuram a exploração do trabalho.
A transformação do trabalhador em pessoa jurídica
Pensando nos contornos da
flexibilização, a transformação do trabalhador em pessoa jurídica é um elemento
importante, e se traduz em transferência de riscos e responsabilidades para o
trabalhador, eliminação de direitos historicamente conquistados; a relação de
trabalho é então deslocada para uma relação de “prestação de serviços”. Já as
terceirizações reconfiguram os elos das cadeias produtivas e são um poderoso
vetor da eliminação de postos de trabalho; também se realizam como meio de
eliminação de proteções e garantias sociais conquistadas por meio de muitas
lutas e que estão no centro do jogo de forças do trabalho. Ainda, as novas
demandas do trabalho, dentro e fora da fábrica, requerem do trabalhador
atributos em permanente mudança e sem medidas claras e definidas: traduzem-se
na sua colaboração com a maior produtividade do trabalho; trata-se do que o
jargão do mundo do trabalho hoje denominaria pró-atividade e polivalência, ou
seja, diferentes aptidões e saberes são exigidos para a sobrevivência neste
mundo do trabalho que se alimenta da permanente ameaça da exclusão.
Todos estes elementos nos
possibilitam pensar em uma perda de medidas e regulações do trabalho, mas mais
do que isto, no que denomino indiscernibilidade das relações de trabalho, ou
seja, está cada vez mais difícil mapear quem trabalha para quem, quais são os
elos da cadeia produtiva, quais são as relações de subordinação e, ao fim e ao
cabo, reconhecer e criticar a própria exploração. Para tratar destas
transformações, tive como eixo central a questão da extensão do tempo de
trabalho e a indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, assim como
a das formas contemporâneas de intensificação do trabalho. Portanto, me
desloquei de pares fundamentais para a sociologia do trabalho: trabalho
formal/informal e emprego/desemprego. Este eixo orientou permanentemente minha
análise sobre empreendedorismo, polivalência, flexibilização do trabalho e
precarização do trabalho. Mas então tinha de lidar permanentemente com a
seguinte questão – que tornava a análise mais difícil e ao mesmo tempo, em
minha opinião, mais relevante: este eixo central estava sendo problematizado a
partir de uma atividade que mal é reconhecida como trabalho, que está associada
ao trabalho informal e que não está na esfera da produção, mas da circulação.
Enfim, recorri a um trabalho
aparentemente desimportante e distante de todos estes elementos para pensar em
questões cruciais a uma compreensão crítica das transformações contemporâneas
do trabalho. Novamente lembrando a frase que citei acima, o precário hoje é o
que há de ultramoderno e, se perdemos isto de vista, incorremos em sérios
riscos de darmos as costas para formas explícitas da exploração, as quais vão
se tornando politicamente invisíveis para as abordagens cada vez mais enredadas
no fetichismo do imaterial e nas indefinições da flexibilização.
O “cachorro loko” x o operário da Volkswagen
O trabalho das revendas
materializa o que denomino uma polivalência precária. Esta é uma definição que
nos ajuda a pensar na exploração do trabalho no Brasil. O que isto quer
dizer? Que não é só ao operário toyotista
ou ao funcionário da Google que é demandada a polivalência; relações informais
de trabalho, ocupações de baixa qualificação e remuneração também hoje são
permeadas pela mobilização de atributos e saberes que são centrais para as
próprias atividades e é impossível fixar critérios, medidas e regulações
envolvidos nesta mobilização. Por exemplo, hoje, estudando o trabalho dos
motoboys na cidade de São Paulo, o que me salta aos olhos é que ser motoboy não
é somente saber pilotar seu instrumento de trabalho a todo vapor (expressão
mais que ultrapassada) para garantir uma entrega; há uma série de procedimentos
que definem a qualidade de seu trabalho e também sua remuneração, que incluem a
manutenção da moto, seu conhecimento sobre o trânsito e sobre as manobras
arriscadas, suas aptidões para lidar com a burocracia – saber realizar serviços
de cartório, de banco, etc. –, seu traquejo social frente às discriminações e
aos micropoderes que envolvem seu cotidiano e que vão desde lidar com o
porteiro, o segurança do prédio, o ascensorista do elevador de serviço,
passando pela secretária que o deixar esperando, chegando à batida da polícia.
Ou seja, há uma série de atributos e de saberes que determinam o que é o
trabalho bem feito deste trabalhador. Trata-se do savoir-faire do “cachorro
loko” e não do operário da Volkswagen. Este saber-fazer também se realiza como
instrumento de uma intensificação informal do trabalho. Quanto mais eficiente a
mobilização destes atributos, mais trabalho realizado em menor tempo. Ainda,
neste caso, o savoir-faire também envolve o saber-sobreviver, literalmente.
Mas, voltando às revendedoras, a
polivalência precária é extremamente flexível e adapta-se ao perfil da
vendedora: saber mobilizar suas relações afetivas para vender nos encontros
familiares, saber ser secretária e vendedora ao mesmo tempo, saber estabelecer
novos contatos-clientes na fila do banco, no salão de beleza, na casa da
patroa, saber aproveitar as promoções de forma estratégica que lhe gere
rendimento, saber lidar com as negociações informais sobre o pagamento e as
recorrentes inadimplências, conhecer os produtos, saber vender, dentre inúmeros
(literalmente) exemplos. O termo precário neste caso define a total ausência de
mediações públicas que possibilitariam algum tipo de reconhecimento deste
trabalho; a polivalência está no cerne das revendas, mas ela se constitui em
bases informais, pessoais e privadas. Portanto, pela perspectiva da
polivalência, o que podemos afirmar é que é demandada ao trabalhador uma série
de conhecimentos e aptidões e ele cumpre, é isto que garante sua permanência
enquanto tal. Entretanto, esta mobilização permeia não só o trabalho no chão de
fábrica ou nas baias dos sofisticados escritórios dos espigões envidraçados.
Inclusive, a polivalência precária não é novidade para “os de baixo” da classe
trabalhadora brasileira – nos trópicos ela é constitutiva do que podemos
denominar de “viração”; entretanto, hoje ela está progressivamente presente
também na vida dos trabalhadores qualificados, formalizados ou “PJs” e de maior
remuneração.
Empreendedorismo
Chegamos então à questão do
empreendedorismo, o qual também nos possibilita pensar nas motivações. Este
está evidente no discurso da empresa: seja dona do seu próprio tempo e de seu
trabalho, determine você os meios para a geração de seu rendimento, dê o melhor
de si da forma que você determinar, saiba agarrar as oportunidades na sua vida
cotidiana, tenha seu próprio negócio. Entretanto, é um discurso ambíguo, porque
ao mesmo tempo este negócio não pode se tornar uma loja (a empresa não permite
este tipo de estabelecimento); dependendo da experiência da revendedora o
trabalho não é trabalho, mas pode gerar alguma renda, ou ao contrário, é
trabalho mas quase não gera renda; as oportunidades não se relacionam às
lógicas do mercado, mas à realização das vendas por meio das relações pessoais.
Novamente, trata-se de uma extrema flexibilidade desta atividade de acordo com
o caráter e lugar que a revenda tem na vida da revendedora. Então, temos 1,3
milhão de mulheres que “empreendem” em nome desta empresa. Mas estas demandas
ambíguas não estariam generalizadas no mundo do trabalho? Traduzindo, está em
jogo uma mobilização do trabalhador, a qual não tem necessariamente muito bem
definidos o estatuto e o lastro do trabalho – seja em termos de identidade profissional,
de regulações do trabalho, de remuneração.
Entendi esta mobilização como o
que denominei uma plena atividade no mundo do trabalho. Isso quer dizer que há
um engajamento produtivo nas mais diversas formas de trabalho, que podem nem
mesmo ser reconhecidas como tal. Se pensarmos que – de acordo com dados da
empresa apresentados em 2009 – em torno de 20% das revendedoras fazem desta sua
ocupação principal, podemos ver que os outros 80% estão aderindo a mais
trabalho, ou seja, intensificando seu trabalho ao preencher os poros de sua
jornada com as revendas e estendendo seu tempo de trabalho ao realizar as
revendas no que seria seu tempo livre. Se pensarmos em termos de uma
generalização da plena atividade, chegaremos às mais diversas tarefas e trabalhos
que hoje também aparecem como lazer, consumo ou como um trabalho que facilite o
consumo, e que dão trabalho. Isso que denominei perda de lastro atravessa o
mundo do trabalho, envolve o trabalhador, demandando-lhe engajamento, tempo,
dispêndio de energia, e nem sempre o remunerando por isto. Há um debate
nascente hoje na sociologia do trabalho sobre o trabalho amador. O trabalho das
revendedoras é um bom ponto de partida para reconhecê-lo e para compreender
como se combina com diferentes ocupações e estatutos do trabalhador.
Por um lado, a plena atividade
propicia pensar nas transformações do trabalho das últimas décadas na sua
imbricação com o consumo. Ao nos beneficiarmos dos serviços oferecidos pela
internet, trabalhamos para o banco, para as agências de turismo, para as
livrarias; mas não podemos reconhecer como trabalho estas tarefas que
experenciamos como consumo próprio, no entanto, tem “alguém” economizando
significativamente em custos com o trabalho por meio dessa nossa atividade.
Também há uma enormidade de tarefas criativas que hoje tornam ainda mais
obscuras a relação entre trabalho e acumulação; o termo crowdsourcing hoje
nomeia esta forma de lucrar por meio da atividade da multidão.
Por outro lado, podemos pensar na
plena atividade em contraposição ao desemprego, o que nos possibilita enfrentar
as teorias que se apoiam em uma imbatível descartabilidade social. Estar
desempregado pode estar bem longe de significar estar inativo: há uma
produtividade obscurecida em torno do desemprego, em uma série de ocupações que
não são reconhecidas como trabalho, mas novamente, se realizam como tal, e
podem tanto ser produtivas como propiciarem economia em custos do trabalho. Ou
seja, é preciso pensar na produtividade do que denominamos descartabilidade
social.
Por fim, este imenso exército de
revendedoras e seu crescimento exponencial na última década têm de ser pensados
à luz das recentes mudanças na estratificação social brasileira. De saída, o
que as revendas indicam é que concessão de benefícios sociais, aumento real do
salário mínimo, aumento do trabalho formal e redução da taxa de desemprego,
concessão de crédito, trazem mudanças não só para o mercado consumidor. É
preciso pesquisar e compreender o que está em jogo no mundo do trabalho a
partir e para além dos pares trabalho formal/informal, emprego/desemprego.
Enfim, é preciso recuperar o debate sobre a relação entre exploração do
trabalho, desenvolvimento e acumulação capitalista brasileira.
IHU On-Line - Desse número de 1,3
milhão de revendedoras, é possível estimar se todas trabalham de fato ou se
algumas estão cadastradas e não vendem os produtos, ou ainda se, depois do
cadastro realizado por elas, é possível verificar quantas de fato vendem os
produtos?
Ludmila Abílio - Dada a
flexibilidade deste trabalho, não era possível ter de fato uma espécie de
quantificação sobre o trabalho das revendedoras. Certamente que a empresa tem
esta estimativa muito clara. Como digo no livro, a informalidade se traduz em
informação do lado de dentro da fábrica. Este trabalho sem formas e regulações
predefinidas é muito bem amarrado à produção. Na realidade, a fábrica da Natura
trabalha praticamente “sob encomenda”, o que Marx dizia ser o ideal da produção
capitalista, ou seja, a realização do valor já está garantida no ato da
produção, e quem dá esta garantia é este exército de revendedoras com seus
cadastros ativos e pedidos cotidianos.
A aparente ausência de controle
sobre a produtividade das revendedoras também conta com alguns instrumentos
aparentemente frouxos, mas que têm eficiência. O mais reconhecível e menos
flexível é a eliminação do cadastro da consultora após x ciclos de inatividade.
Ou seja, caso fique x dias sem fazer pedido, seu cadastro é desativado. Assim,
isso mantém a consultora ativa. Outro instrumento é a figura da promotora de
vendas: mulheres que são contratadas pela empresa e que trabalham com metas,
bônus e verbas destinadas ao controle sobre a produtividade das revendedoras.
Estas funcionárias são responsáveis pela produtividade de seu setor, que é
determinado por regiões na cidade. Elas conduzem as reuniões a cada ciclo, têm
uma função didática de apresentar novos produtos e desenvolvem estratégias –
também elas flexíveis – de estímulo à revenda. Quando estava terminando a
pesquisa, a empresa fez uma reestruturação, criando a figura da “consultora
orientadora”, que me pareceu ser uma auxiliar da promotora, mas não acompanhei
os desdobramentos.
Outro instrumento são as
promoções, que funcionam como um forte atrativo, tanto para consumo quanto para
estímulo à venda. O “leve dois pague um” propicia 100% de comissão sobre a
venda do produto, ao invés dos usuais 30%, o que recorrentemente leva a
consultora a investir em produtos que ainda não têm sua venda garantida; ou
seja, ela passa a fazer estoques. Os estoques também acabam sendo feitos por
conta de um valor mínimo requerido pela empresa para que se possa fechar o
pedido. Aquela revendedora que se torna consultora apenas com intuito de
consumir os produtos acaba se envolvendo com as revendas para poder alcançar
este valor mínimo. Vale ressaltar que os estoques também são feitos pelo
diferencial que é ter os produtos para pronta entrega; para a revendedora que
investe na atividade como meio de geração de renda, esta é uma estratégia
importante em meio à concorrência.
Desta forma, não podemos precisar
o quanto vendem e com qual frequência, mas sabemos que este 1,3 milhão de
revendedoras estão ativas, ou seja, vendendo e consumindo os produtos.
IHU On-Line - É possível traçar
um perfil das revendedoras?
Ludmila Abílio - Não, e este é um
aspecto central da pesquisa. Para mim, foi possível delimitar alguns tipos
sociais. As revendedoras têm variadas condições socioeconômicas, formação,
trajetória profissional. São jovens, são senhoras aposentadas, são desempregadas,
empregadas de baixa, média e alta qualificação, são microproprietárias, são
trabalhadoras autônomas. Sua formação pode ir do ensino médio incompleto ao
pós-doutorado. Encontrei mulheres que sobreviviam com um salário mínimo, bem
como mulheres de classe média alta e da elite paulistana. Enfim, é impossível
precisar um perfil; a flexibilidade desta ocupação é de fato extrema e se
combina com as mais diversas condições sociais. Desta forma, em um apartamento
em Moema encontro a esposa de um executivo que ocupa seu tempo entre encontros
religiosos, eventos beneficentes, encontros em Campos de Jordão e na Riviera de
São Lourenço, todos mediados pela venda dos produtos. Bíblias e catálogos
Natura podem estar à mostra na mesma mesa do evento, assim como não há
contradição entre a patroa e sua empregada doméstica desempenharem a mesma
atividade. Claro que as distinções precisam ser mantidas; no caso das
revendedoras da classe alta paulistana, a criação do setor Crystal – um setor
com menor número de revendedoras, voltado para os eventos e redes desta classe,
garante uma demarcação social muito bem definida.
Primeiro caso - atividade
oportuna e oportunista
O que é possível então é pensar
em termos de tipos sociais. A situação ocupacional, minha percepção sobre a
condição social das entrevistadas e a relação que estabeleciam com as revendas
foram os critérios para esta determinação. Algumas questões: a revendedora tem
outra ocupação? Esta ocupação lhe dá uma estabilidade tanto em termos de renda
como de identidade profissional? As revendas são para ela principalmente um
meio de gerar renda ou de facilitar o consumo dos produtos? Qual a sua situação
socioeconômica em termos familiares? Assim, os tipos sociais foram se
delineando. Apresento aqui alguns dos casos que possibilitaram estas
definições. Primeiramente podemos pensar nas mulheres que têm um trabalho bem
definido, estabilizado e reconhecido, como uma professora de uma escola
particular de São Paulo, ou uma investigadora de polícia. Entretanto, não é o estatuto
profissional que define a relação com a atividade.
A primeira iniciou a entrevista
me dizendo: “Você está falando com a pessoa errada, eu não sou revendedora, sou
professora”. Já a segunda tinha um posicionamento muito claro, seu trabalho de
investigadora lhe garantiu não só uma identidade profissional, mas o meio
seguro para realizar as vendas. Seu espaço de trabalho é também o espaço das
revendas. Para a primeira, revender entrava até mesmo em conflito com o
reconhecimento que estabelece sobre seu próprio trabalho. Então afirmei que a
professora se envolveu em um consumo que “dá trabalho”, literalmente. Mesmo
afirmando que vende apenas para poder continuar consumindo, a professora
estabeleceu dentro da escola uma rotina de vendas, que envolve realizar os
pedidos no seu tempo livre, contabilizar as vendas e investimentos em
promoções, fazer a cobrança e também lidar com as negociações e inadimplências,
e ainda realizar a distribuição – ilegal – dos produtos na escola. Não só ela,
mas outros professores também hoje se tornam empreendedores: o fluxo intenso de
goiabadas caseiras, roupas, bijuterias e outros artigos levou à proibição
formal das vendas dentro da escola. Entretanto, a professora segue agora como
uma trabalhadora clandestina; a força da marca Natura lhe garante esta
possibilidade, as próprias diretoras continuam adquirindo os produtos. Para
ela, a revenda não é vista como meio de obter rendimento: não contabiliza, mas
afirma até mesmo ter prejuízo. Como tem poucos clientes, a maioria das vezes,
para poder fechar um pedido, adquire produtos que não foram encomendados por
ninguém. As gavetas do banheiro são o local de estocagem de produtos que se
transformam em presentes e lembranças nos seus eventos sociais. Pergunto por
que não para de vender. Ela me diz que é uma “atividade oportuna e
oportunista”, que se “retroalimenta” porque não quer “parar de consumir os
produtos”.
Segundo caso – outra fonte de
renda
Já a investigadora tornou as
revendas sua segunda fonte de renda. Estabeleceu estratégias de venda e de
investimento nos produtos que lhe possibilitam fazer promoções, vender com
desconto, negociar pagamentos. Tem seus clientes catalogados, tem controle
sobre os produtos mais pedidos, sobre a constância, sobre os hábitos de seus
consumidores. Brinco que ela estabeleceu o “monopólio legítimo das vendas” em
seu local de trabalho. Por vender com desconto – o que significa abrir mão de
parte de sua comissão – ela conseguiu impedir o estabelecimento de uma
concorrência em seu local de trabalho. Acorda recorrentemente às cinco da manhã
para realizar pedidos pela internet, aproveitar as promoções que a empresa
oferece. À noite, depois do trabalho, organiza os pedidos, que serão
distribuídos com um carrinho de feira, andar por andar, no dia seguinte. Faz
oficinas de maquiagem na hora do almoço, confecciona brindes e embalagens para
presente, e além disso utilizou as caixas de papelão em que recebe os produtos
encomendados para arquivar documentos em seu trabalho – uma materialização da
imbricação de um trabalho no outro, do privado no público, e por aí vai. Para
ela, este trabalho é um trabalho, o qual não concorre com sua identidade
profissional: alimenta-se dela. As revendas foram um meio de garantir a
manutenção de um padrão de vida de classe média. Claro, ela também é
consumidora dos produtos, substituindo todas as outras marcas por Natura.
Terceiro caso – trabalhar sem
trabalhar
Há um tipo de revendedora que tem
o perfil da dona de casa, que vê na revenda um meio de ter seu rendimento sem
colocar em risco seu papel muito bem determinado na família. Para ela, revender
torna-se um meio de trabalhar sem trabalhar. Pude reconhecer uma realização
profissional, que, no entanto, não aparece como um trabalho. Estas mulheres se
servem das relações pessoais como meio de venda: vendem para as amigas, para os
familiares, para a vizinhança. Também consomem os produtos, mas têm aí um
engajamento constituído pela possibilidade de trabalhar sem trabalhar. O
rendimento torna-se também um meio para terem alguma autonomia em relação aos
cônjuges.
Quarto caso – a profissão
Dentre outros tipos, se destaca o
da revendedora que faz desta sua profissão. Conversei com mulheres de 60 anos,
que há 30 vendem Natura. Abriram mão de suas ocupações anteriores para se
dedicarem exclusivamente às vendas. Para estas, a relação de trabalho está
muito clara; e a ausência de reconhecimento é extremamente problemática. Há
trinta anos a concorrência era mínima e ser revendedora Natura lhe garantia um
estatuto profissional, além de rendimentos que para ela garantiam um padrão de
vida de classe média. Ela se profissionalizou informalmente como revendedora,
há décadas trabalha no mínimo 8 horas por dia, de cinco a seis dias por semana,
e encarna a figura clássica da “vendedora de porta em porta”. Desloca-se pela
cidade, “fazendo” tais bairros, como ela diz. Entretanto, sua situação se
complica profundamente na última década, como ela diz, “minhas clientes se
tornaram revendedoras”, “logo mais não iremos vender, mas trocar produtos”. Ela
tem uma queda de rendimento brutal, mas não só isso. Sua identidade
profissional também está sendo desmanchada. Quais são suas opções? Como
retornar ao mercado de trabalho? A saída por enquanto é revender produtos de
outras empresas, o que para ela também simboliza uma decadência.
IHU On-Line - Qual é a relação
das revendedoras com a empresa Natura e com outras empresas que têm esse tipo
de atuação?
Ludmila Abílio - Não saberia
falar sobre outras empresas, ainda que, do pouco que pesquisei, diria que
seguem o mesmo padrão da Natura. O Sistema de Vendas Diretas conta com dois
tipos de relação com os revendedores. A relação em pirâmide estabelece um
encadeamento entre revendedores que recrutam revendedores e têm uma comissão
sobre a venda destes. No caso da Natura, a relação é horizontal: as
revendedoras não estão ligadas entre si e não há este tipo de recrutamento.
Neste tipo horizontal, a relação com a empresa é reconhecível no boleto
bancário, que materializa a relação de compra e venda dos produtos – e obscurece
a relação de trabalho – e nas reuniões que ocorrem a cada ciclo (que na época
da pesquisa duravam 21 dias). Quem faz a ponte entre a empresa e as
revendedoras são as promotoras de venda. Estas são funcionárias contratadas
pela empresa, responsáveis por um setor. O setor é definido geograficamente,
seu tamanho varia por região. Uma promotora pode ser responsável por centenas
de consultoras. Nas reuniões a promotora apresenta os produtos, os comerciais
da marca, traz histórias de revendedoras e, o grande atrativo, sorteia
produtos. Há também a distribuição dos catálogos. O formato da reunião é
determinado pela promotora; ela tem uma verba mensal que administra de forma
flexível. Sua remuneração depende em grande parte da produtividade de seu
setor, ou seja, de quanto as revendedoras daquela região estão vendendo. Mas é
um controle que se dá em bases informais e flexíveis.
A empresa não estabelece relações
que se baseiem no reconhecimento do trabalho; mas, como todo trabalho, este
também precisa de reconhecimento para se manter. O reconhecimento se realiza em
premiações e cerimônias promovidas pela empresa. Entretanto, só estão
contempladas as vendedoras mais produtivas. Todos os setores são submetidos a
diversos ranqueamentos. Revendedoras dos primeiros lugares por setor e por
ranqueamento são convidadas a participar de uma festa de final de ano
organizada em um famoso bufê da cidade de São Paulo. A revendedora de 60 anos
que já citei anteriormente, ao completar 15 anos como consultora tornou-se uma
consultora Vip, o que na época lhe dava acesso garantido às festas. Conta que
ao tornar-se Vip ganhou um broche da empresa, um dia no salão de beleza seguido
de uma diária em um hotel – na mesma cidade em que morava. Em meio às
dificuldades enfrentadas pela concorrência crescente, esta revendedora também
lamentava sua exclusão da festa, pois recentemente a empresa também limitou o
acesso das “Vips”; era preciso estar entre as “10 mais” para poder participar.
Segundo esta revendedora, a empresa costumava sortear televisores, outros
aparelhos domésticos, até mesmo automóveis. Hoje as premiações diminuíram
muito.
Para a investigadora de polícia,
participar da festa já se tornou algo enfadonho. Como ela diz, “a gente vai lá
jantar, e fica aquela musiquinha da Natura a noite inteira”. Conta-me da noite
em que quis devolver o troféu que ganhou por seu bom rendimento, “o que vou
fazer com mais um breguete?” e também reclama, “os brindes da Natura que eles
dão para a gente na festa vêm com coisa escrita, não dá nem para revender
depois”. Ou seja, o reconhecimento, que é extremamente importante para a
revendedora que fez desta sua profissão, para a outra não tem o mesmo
significado.
IHU On-Line - Entre as
características deste tipo de trabalho, destaca-se a falta de vínculo empregatício entre as revendedoras e a empresa. Como
atividade é abordado na legislação?
Ludmila Abílio - A legislação do
Sistema de Vendas Diretas está amparada no seu reconhecimento como um sistema
de comercialização de bens de consumo e serviços. Assim, a relação com os
revendedores é juridicamente reconhecida como uma relação de compra e venda. De
forma que empresas como a Natura atuam inteiramente dentro da legalidade no que
concerne sua relação com os revendedores. Para os vendedores, a opção de saída da
informalidade em relação a esta atividade é o de se registrarem como
trabalhadores autônomos. Juridicamente, as consultoras Natura são “revendedoras
ambulantes”. O que legitima a falta de vínculo empregatício são fatores como
ausência de jornada de trabalho definida, ausência de local de trabalho
definido e também ausência de demanda de exclusividade. Ou seja, a vendedora
vende para qual(is) empresa(s) quiser, quando e onde quiser. No Brasil, a
Associação Brasileira das Empresas de Vendas Diretas foi criada em 1980 e está
ligada à Associação Mundial, estabelecida em 1978.
As empresas pagam o chamado
“imposto por substituição”, um pagamento antecipado, pois a empresa recolhe o
ICMS pelos revendedores antes que estes realizem a venda. Esta forma de
recolhimento é fruto de acordos entre as empresas e estados, o que garante a legalidade
do sistema.
Ou seja, não se trata de discutir
se a relação com as revendedoras é legal ou não, mas se ela se dá de forma
justa. O que está em jogo é que a relação de comercialização obscurece as
condições e a falta de proteções das trabalhadoras, que estão muito longe de
ser “pequenas capitalistas do comércio”, salvo raras exceções (há mulheres que
de fato conseguem estabelecer pequenos estabelecimentos informais que se tornam
centros informais de comercialização dos produtos e envolvem subcontratações e
outras relações de trabalho).
IHU On-Line - Quais as vantagens
e desvantagens desse sistema tanto para as vendedoras como para as empresas?
Ludmila Abílio - Parece-me que
pensar em termos de vantagens e desvantagens acaba por obscurecer as
contradições que embasam este sistema. Poderíamos perguntar: se há exploração,
por que um milhão de revendedoras se engajam nas vendas? É uma pergunta
importante, mas que tem de ser pensada a partir de motivações subjetivas do
mundo do trabalho na sua relação com as reestruturações, precarizações e ameaças
de desemprego. Assim como para a empresa, há uma série de vantagens que a
priori parecem indiscutíveis, mas para analisá-las teríamos de fazer um estudo
comparativo com outros meios de comercialização, como o das franquias, o que
não foi o objetivo desta pesquisa.
Contradições
O que podemos elencar são
questões importantes e que trazem contradições. Por exemplo, a flexibilidade
apresenta-se como um atrativo para as revendedoras e é também um facilitador
para a adesão às revendas: em um mundo do trabalho cada vez mais permeado pelos
mais diversos métodos de seleção e de eliminação, as revendas se apresentam
como uma atividade extremamente acessível, na qual revender parece depender
apenas das opções da própria revendedora. O que por outro lado não é bem assim;
o que constatei foi uma série de mecanismos que mantêm a revendedora ativa e,
ao mesmo tempo, uma concorrência que não para de crescer e que dificulta tanto
o trabalho como a geração de rendimentos.
A flexibilidade também permite a
mobilização das mais diversas redes de sociabilidade – o que a empresa
definiria de “cultivo das relações pessoais” -, o que também significa que
relações afetivas, de amizade, dentre outras, se tornam veículos para a
mercantilização dos produtos. Mas a questão que para mim era central é que esta
flexibilidade das vendas na realidade é também um veículo para uma
intensificação informal do trabalho - no sentido mesmo de não ter formas
definidas – e também de uma extensão do tempo de trabalho que são dificilmente
reconhecíveis politicamente.O fato é que uma parcela significativa das
revendedoras tem outra ocupação, e as revendas acabam preenchendo seus poros de
não trabalho e também se estendem para seu tempo livre. Ou seja, o que em
termos pessoais pode ser vivenciado como uma vantagem – “vendo Natura nas horas
vagas, durante o trabalho, nas festas de família” – também é um veículo –
difícil de ser problematizado – de mais exploração do trabalhador, questão, que
como disse anteriormente, permeia o trabalho tipicamente feminino, que aparece
como desimportante e sem medidas definidas.
Com relação à empresa, não pensei
em termos de vantagens, mas de meios que lhe garantem tanto transferência de
riscos como redução de custos. Pensando que toda a produção está pautada pela
revenda, podemos afirmar que a produção da Natura praticamente funciona sob
encomenda – realizada por este exército de mais de um milhão de pessoas -, o
que nos evidencia a profunda relação entre informalidade e tecnologia da
informação neste caso. Pela perspectiva da redução do tempo de giro do capital,
a empresa está em condições ideais, pois consegue quase que encurtar a zero o
tempo da circulação. Pensando também no “salto mortal da mercadoria” como
define Marx, como o movimento necessário para que a mercadoria “prenhe de mais
valia” realize o valor na esfera da circulação, afirmo que no caso da Natura
seu salto é com rede. O que tece esta rede é a transferência de riscos da
circulação para as revendedoras. A empresa tem estoques mínimos; como
contabilizar os que se formam nas gavetas, armários e baús das revendedoras?
Ficam para as revendedoras os riscos de um capital adiantado que não
necessariamente voltará para elas, riscos que incluem “desovar” produtos que se
tornam obsoletos frente à inovação da empresa. Os riscos da inadimplência estão
bem cercados pela empresa e formalizados nos boletos bancários e suas altas
taxas de juros; quanto às revendedoras, os calotes são considerados parte de
seu trabalho, e para lidar com eles desenvolvem estratégias e negociações que
se dão em bases pessoais.
Há formas de redução de capital
constante que podem ser estimadas, outras não.
Não há custos com a estrutura
física para a comercialização dos produtos, há uma transferência impossível de
ser contabilizada; as revendas se apropriam do espaço da casa, de outros
trabalhos, etc. Uma espécie de terceirização irreconhecível do patrimônio
físico. No livro refiro-me às lojas instantâneas e difusas que são
estabelecidas pelas revendedoras; para o lado das revendedoras não há medida
possível, mas para a empresa isto claramente se traduz em redução de
determinados custos. Há redução dos riscos e também dos custos com estocagem,
como já analisei.
Promoção não paga da marca
Poderíamos pensar ainda em uma
promoção não paga da marca, também ela não contabilizável do lado das
revendedoras, mas que se traduz em custos não pagos com publicidade do lado da
empresa. As mulheres promovem a marca e garantem a entrada dos produtos nas
mais diversas esferas e situações. As próprias mulheres se tornam veículos de
propaganda. Ainda, a venda dos produtos tem um alcance que supera qualquer
desigualdade regional: das palafitas do Norte aos condomínios fechados das
capitais brasileiras, a venda está garantida.
Em termos de vantagens,
poderíamos aventar que empresas que trabalham com este sistema de
comercialização contam com sobrelucros em seu setor, na medida em que conseguem
ter uma redução de custos na produção e comercialização dos produtos. Mas, como
disse, esta é uma hipótese que demandaria o estudo de outros sistemas. Sendo um
tanto leviana, me chama bastante atenção o crescimento do Boticário nos últimos
anos; coincidência ou não, esta empresa adotou a venda por catálogo além da
comercialização por franquias. Atualmente desbancou a Natura e se tornou líder
do mercado brasileiro no segmento de perfumes.
IHU On-Line - Que relações
estabelece entre esse tipo de atividade das revendedoras com a sociedade do
consumo?
Ludmila Abílio - Prefiro pensar
em termos de sociedade do trabalho. É preciso pesquisar e evidenciar as
motivações subjetivas do mundo do trabalho, suas conexões com a injustiça
social e, mais ainda, entender como se constituem na especificidade no mercado
de trabalho brasileiro. Este consumidor hedonista movido pelos desejos
irrefreáveis do consumo é um trabalhador que trabalha mais do que dez horas por
dia, que vê progressivamente seus direitos e garantias serem postos na
berlinda, que sente cotidianamente o ataque às forças do trabalho, que lida
permanentemente com as ameaças do desemprego e da perda de reconhecimento
profissional e, além disso, desempenha atividades na esfera do consumo que se
realizam como trabalho. Entretanto, ele permanece engajado na luta cotidiana
pelo trabalho bem feito, como o define Cristophe Dejours. O trabalho é central
na constituição de sua identidade e na sua relação com o mundo. Ao tratar da
força da marca Natura no livro, centrei-me em sua relação com o trabalho; ao
analisar algumas propagandas de hoje, para mim o que se evidencia é a ameaça da
descartabilidade social operando como um vetor para o consumo. Mas a exploração
do trabalho se banalizou a ponto de já não reconhecermos sua centralidade na
constituição do social. No caso brasileiro, por exemplo, fala-se mais nas
geladeiras das Casas Bahia e menos na exploração do trabalho - nas suas formas
tupiniquins - que sustenta o que vem sendo denominado neodesenvolvimentismo.
IHU On-Line - O que sua pesquisa
demonstra acerca da tese de que há uma primazia do trabalho imaterial e a perda
da centralidade do trabalho? A partir desse ponto, quais são suas críticas à
compreensão de trabalho imaterial de André Gorz?
Ludmila Abílio - A perda de
centralidade do trabalho esteve no cerne de algumas teses que já não têm
sustentação objetiva para se manter. Estas se referiam a uma progressiva
desnecessidade do trabalho por meio do desenvolvimento tecnológico. Ainda que
as condições materiais apontem para esta possibilidade, o que se viu nas
últimas décadas foi o crescimento das formas mais antigas e precárias de
exploração do trabalho. Basta ver as disputas políticas e vergonhosas em torno
das regulações sobre o trabalho escravo na contemporaneidade. Ainda, a
flexibilização do trabalho nomeia – e também obscurece – as diversas
des-regulações e reconfigurações que se desdobram em intensificação do trabalho
e extensão do tempo de trabalho. Ou seja, parece haver um movimento de
ampliação da exploração do trabalho.
Já as teses do trabalho imaterial
têm outra densidade teórica e estão calcadas em desafios para a teoria do
valor, para o reconhecimento da exploração do trabalho e da própria classe
trabalhadora. São desafios teóricos e políticos; o reconhecimento das relações
de produção e de distribuição torna-se ainda mais intricado: é difícil mapear
quem trabalha para quem, de onde vem o lucro – da marca, das ações da bolsa ou
do operário chinês que literalmente se mata de tanto trabalhar? Enfim, há uma
série de reconfigurações que obscurecem as relações de trabalho e tornam muito
difícil entender também a acumulação capitalista.
As teorias que se apoiam no
trabalho imaterial fazem um giro politicamente perigoso. Elas não negam a
permanência de relações de trabalho extremamente precário que hoje envolvem a produção
material mundial. Apenas dão-lhes as costas, enfocando na primazia da ciência
sobre o trabalho vivo. Como analiso no livro, esta atualização do fetichismo do
conhecimento hoje está fortemente conectada com a “inevitabilidade” da
descartabilidade social. Minha análise vai no sentido oposto: é preciso
evidenciar que a descartabilidade social é extremamente produtiva e vem se
realizando como uma eliminação de freios ao capital que foram historicamente
constituídos.
André Gorz é um dos autores que decretam
a mudança de substância do valor. Para ele não seria mais possível pensarmos na
valorização por meio do trabalho abstrato e em termos de tempo de trabalho não
pago. Estaria em jogo um capital simbólico imensurável, que se expressa, por
exemplo, no valor das marcas. Para ele, haveria uma desvalorização do que
denomina capital fixo material e uma supervalorização do capital imaterial, a
qual não encontraria seu lastro no trabalho abstrato. Ainda, o envolvimento
subjetivo do emblemático colaborador toyotista traria novos elementos para a
produtividade do trabalho, os quais também não são mensuráveis. O autor faz uma
distinção importante entre saber e conhecimento; parece-me que o conhecimento
poderia estar associado ao que Marx pensa em termos de trabalho morto, ou seja,
o conhecimento socialmente produzido e incorporado no desenvolvimento
tecnológico capitalista. Já o saber, para Gorz, refere-se à mobilização de
atributos e experiências individuais, que existem apenas na “prática viva”,
como ele define.
Estes não podem ser “assimilados
ao capital fixo”, o qual também não encontraria equivalência monetária, sendo
inseparável de seu portador. Um exemplo na prática seria: como quantificar a
capacidade de liderança de determinado “colaborador”, a qual contribui para a
produtividade da empresa? Uma terceira questão para Gorz: o desenvolvimento da
ciência hoje mais destruiria valor – dada sua possibilidade de eliminar a
necessidade do trabalho vivo – do que o geraria. Sendo o conhecimento hoje o
cerne da valorização, sendo este impossível de mensurar, estaria em jogo uma
mudança qualitativa na substância do valor. O que estaria em ato é um
funcionamento fictício do capital imaterial, o qual se valoriza não pelas
“unidades abstratas” de trabalho, como diz Gorz, mas pela privatização do
acesso. Os cercamentos contemporâneos sobre bens comuns seriam o cerne da
acumulação. Então o capitalismo hoje se assentaria fundamentalmente na obtenção
da renda e menos na extração de mais valia.
Críticas a Gorz: “é preciso se desfazer de um ‘eco aritmético’”
As teorias do imaterial deveriam
ater-se não só a Os Grundrisse - que embasa a definição, central para elas, de
intelecto geral -, mas também aos três livros do Capital. É no Capital que
entenderemos a relação intrínseca entre renda e extração de mais valia, a
autonomização do capital portador de juros que é também permanentemente
vinculada ao capital produtivo, dentre outros elementos que contribuiriam para
clarificar os termos do debate. Estas questões recorrentemente desaparecem das
análises.
Partindo do Capital podemos
estabelecer algumas críticas a Gorz e, de forma geral, às teorias do imaterial.
Primeiramente, é preciso se desfazer de um “eco aritmético”, como definiu
Henrique Amorim: a extração de mais valia, assim como o trabalho abstrato, não
podem ser calculados na ponta do lápis; na realidade, tal pretensão elimina uma
das maiores riquezas da teoria marxiana: as determinações são sociais,
historicamente constituídas e nunca abstratamente matemáticas, a não ser para
fins didáticos. A segunda crítica refere-se a uma separação entre trabalho
manual e intelectual que também está muito distante da abordagem de Marx. O
dispêndio de energia que se traduz em trabalho abstrato hoje é confundido com a
repetição mecânica do apertador de parafusos taylorista. Separação esta que
também obscurece a violência da subsunção da força de trabalho na teoria
marxiana. A subsunção do trabalho é a subsunção de corpo e alma do trabalhador;
ainda, é também a subordinação de seu saber como trabalhador e do conhecimento
coletivamente produzido. É preciso voltar para a definição de força produtiva
social do trabalho, quando Marx pensa em termos do trabalhador social. A força
produtiva social do trabalho não tem medida, não é quantificável. Há uma frase
de Marx, no livro I do Capital, que põe em xeque o fundamento das teorias do
imaterial: “O capitalista portanto paga o valor das 100 forças de trabalho
independentes, mas não paga a força combinada dos 100”; ou seja, a subsunção do
trabalho é também a subordinação da cooperação entre os trabalhadores, algo que
não é contabilizável, e que está no cerne da brutalidade desenvolvida da
dominação capitalista”.
Uma outra passagem, do Livro III,
também nos ajuda a compreender que o envolvimento subjetivo do trabalhador é
constitutivo da própria exploração capitalista, e para isto não há medidas: “Só
a experiência do trabalhador combinado descobre e mostra onde e como
economizar, como efetivar de modo mais simples as descobertas já feitas, quais
os obstáculos que precisam ser superados na efetivação da teoria”, ao que ele
completa, “o trabalho em comum supõe a cooperação direta dos indivíduos”.
As teorias que pensam na mudança
de substância do valor e em uma transformação da força de trabalho apoiam-se na
lei da queda tendencial da taxa de lucro, tal como pensada por Marx. Muito
simplificadamente, o movimento tendencial capitalista é o de sua própria
eliminação, na medida em que luta permanentemente para reduzir o tempo de
trabalho necessário para a produção, eliminando sua própria fonte de
valorização. Mas então precisamos também estar atentos ao que Marx denominou
“contratendências”, que têm direções opostas à “força centrípeta” do capital, e
giram em torno do aumento da produtividade do trabalho/extensão do tempo de
trabalho não pago sem o relativo aumento do investimento em capital constante.
Se atentarmos para o trabalho sem forma de trabalho que se dá na esfera do
consumo, podemos pensar neste sentido; se olharmos para as revendedoras como
trabalhadoras da distribuição, também podemos analisar a economia em capital
constante, entre muitos outros exemplos.
Fazer todas essas críticas não
significa negar uma reestruturação significativa nas relações de produção e na
organização do trabalho.
Mas importa não perder de vista a
relação, intrínseca na teoria marxiana, entre modernização e precariedade,
relação que se atualizou de forma espantosa. Ao perder isto de vista, a própria
teoria contribui com a banalização da exploração do trabalho, reafirmando
permanentemente que grande parte da população mundial dá o sangue em trabalhos
que se tornaram desimportantes e até mesmo descartáveis. Isso não significa
negar a lei tendencial que também orienta horizontes políticos, mas também
estar atento às formas de exploração do trabalho que vão na direção oposta a
este movimento.
IHU On-Line - No seu livro,
também assinala uma atualização da racionalidade taylorista, a qual foi
deslocada para o setor de serviços. Pode esclarecer melhor essa ideia?
Ludmila Abílio - Uma forte
contraposição às teorias do imaterial é a constatação de uma atualização da
racionalidade taylorista e seu deslocamento para o setor de serviços. Talvez o
trabalhador mais emblemático deste movimento seja o operador de telemarketing
(ocupação também predominantemente feminina). A operadora de telemarketing
aperta parafusos imateriais, em que sentido? Sua subjetividade está sendo
mobilizada permanentemente em seu trabalho? Claro que sim. Seu trabalho conta
com seus saberes e diversos atributos? Claro que sim. Seu tom de voz, a forma
como estabelece o diálogo, a capacidade de lidar com agressões, dúvidas, etc.
são definidores de sua produtividade em certa maneira. Entretanto, sua
produtividade é gerenciada por um controle permanente em torno do tempo, tal
como o típico operário taylorista. Há uma relação estabelecida com a máquina,
um determinado ritmo da produção, quanto tempo deve durar a ligação, quais
frases utilizar, qual o procedimento padrão que será repetitivamente repetido,
etc. Não é porque sua produção seja completamente intangível e sua esteira seja
invisível que a racionalidade não é taylorista. Na realidade, estamos
atualizando uma discussão dos anos 1970: Harry Braverman se opôs fortemente às
teses da sociedade pós-industrial, evidenciando que o setor de serviços se
apoiava nas mesmas formas de controle e gerenciamento do trabalho.
Não são questões óbvias nem
fáceis de ser definidas. O que é o McDonalds, por exemplo? Uma grande fábrica
de hambúrgueres? Certamente, a qual tem controle sobre a produção terceirizada
de seus fornecedores. Se observarmos o atendente da lanchonete, que varia de
postos fritando batatas, montando os sanduíches, se observarmos como a feitura
e venda dos sanduíches está organizada no espaço, veremos a racionalidade
taylorista em ato, mas com sanduíches em vez de carros. A questão que hoje
torna o debate ainda mais complexo é que esta racionalidade também se faz presente
em atividades a priori compreendidas como da esfera do consumo. Fazer fila para
comprar o hambúrguer, escolher o sanduíche padrão no tempo certo, comer no
tempo mínimo, limpar a mesa e descartar o então lixo pode ser mais uma volta do
parafuso da produção desta enorme fábrica mundializada e difusa.
Fazer compras na C&A, estudar
na faculdade fast food: nossa experiência social está sendo permeada pelo que
George Ritzer denominou McDonaldização; a lógica fast-food, que na realidade é
uma atualização da racionalidade taylorista, está fortemente presente em nossa
vida, e não só enquanto trabalhadores. Mas para entendermos a complexidade das
relações de trabalho, é uma racionalidade que hoje se realiza pondo a
subjetividade do trabalhador a serviço da produção. Não que isto não
acontecesse antes, mas agora ela é permanentemente mobilizada, e antes aparecia
suprimida, ainda que a separação entre capital e trabalho seja sempre uma
espoliação do conhecimento do trabalhador individual e social.
Fonte: Ihu
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