segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Clara de Assis, mulher livre


É um “elogio da desobediência”, mais que uma biografia verdadeira e própria, o belo livro que Dacia Maraini dedicou à Clara de Assis. O que é fundamental para a escritora é a possibilidade de meditar sobre uma força de vontade tão tenaz para subverter regras que possam parecer indiscutíveis.

Até certo ponto, a rebelião de Clara é a consequência direta da de São Francisco, o seu grande modelo. Mas o “pequeno coração iluminista” de Maraini, reconhecido o fato, segue outra pista, relegando sua ligação com Francisco em segundo plano e considerando Clara do mesmo modo como um artista que confere ao material da sua vida uma forma original e inimitável.


É uma jornada em direção a mais total liberdade que se fundamenta em um desconcertante paradoxo: com a dureza de sua vida, Clara constrói uma prisão ainda mais dura do que aquela que compartilhava com toda a mulher do século XIII. Mas na clausura de São Damião, juntamente com suas irmãs, a sua existência é efetivamente inviolável. Afrouxam-se ao mesmo tempo os laços opressivos do masculino e da propriedade. A pobreza voluntária é definida por Clara com um daqueles adjetivos tão iluminados por substituírem tratados inteiros – “altíssima”: como o tapete mágico dos contos de fada, permite equilibrar-se acima da miséria do que está estabelecido, a que nos submetemos sem saber o porquê. Como para Francisco, para Clara, o significado profundo da pobreza é a liberdade de inventar seu próprio destino.

Com esse livro, cuja metade é um epistolário com uma misteriosa interlocutora, e a outra metade é um diário, Dacia Maraini juntou uma preciosa peça ao seu feminismo, tanto mais convincente quanto mais estranha às sirenes da abstração filosófica ou, ainda pior, política. Raciocinando como a escritora, ela está convencida de que as ideias, mesmo as mais justas, devem passar pelo buraco da agulha do indivíduo, e ali, nesse corpo dado e nessa mente, tomar aquela fisionomia individual particular, cuja deformação inconfundível torna-a crível.

É precisamente isto, no final das contas, a contribuição original que a literatura agrega aos outros saberes humanos. E de resto, que sentido teria para Maraini competir com textos históricos como aqueles insuperáveis de uma Chiara Frugoni, ou com as interpretações dos filólogos como Giovanni Pozzi? Não tem coisa mais insuportável do que o amadorismo do escritor que, acumulando certo número de notícias de livros “sérios”, lança-se em discutíveis e inúteis variações sobre o tema.

Também Maraini, obviamente, leu muitos livros sobre Clara e sobre seu tempo. Ler, confessa a certo ponto, é a alegria suprema da sua vida. Mas se se atreve a tratar um tema como esse, não esquece jamais que o seu tipo de conhecimento do mundo embasa-se sobre o aleatório, sobre o imprevisível, sobre a intuição momentânea. Seria tolice pensar que a literatura seja “superior” aos outros tipos de discurso sobre o mundo. Mais simplesmente, a literatura é aquele tipo de discurso em cujo interior, falando de Clara de Assis, o fato de sonhá-la tem o mesmo valor dos livros lidos sobre ela.

E a propósito desses últimos, sabe-se que, para um escritor, também a escolha de suas fontes, quando se aventura na escuridão do passado, deve ser conduzida com um certo espírito de fineza. Bem, no oceano bibliográfico com que se defrontou, Maraini escolheu os que mais se adequavam à sua narrativa. Trata-se dos atos do processo de canonização iniciado no dia seguinte à morte de Clara, ocorrida em 1253. Além de histórico, é um documento humanamente preciosíssimo, porque contém o testemunho direto das monjas que viveram dia após dia junto da santa, compartilhando com ela o sofrimento e a felicidade. Mas fica ainda melhor: desses testemunhos, não se conhece o original em latim, mas uma belíssima tradução do século XVI, feita por outra monja do claustro. É uma língua belíssima, que mais que a italiana era simplesmente definida como umbro.

Maraini não se limita a citar extensivamente essa obra de arte desconhecida, mas o marcheta em seu próprio modo de escrever com grandíssima sabedoria artística, fazendo-se contaminar por essa língua antiga, dura e infalível ao nomear as coisas que são a “poda da vinha” que preenchem o estrado com o colchão de palha de Clara ou a alma “sem mácula” da santa, que se encaminha “para a claridade da eterna luz”.

Fonte: Ihu

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