quarta-feira, 16 de abril de 2014

Semana (quase) santa

Avizinham-se os feriados. Para quem pode, paira uma excitação no ar: a corrida ao supermercado, o carro abastecido, a agência de viagens, a expectativa de dias felizes na praia, no sitio ou no exterior.
Na maioria, somos cristãos. Cristãos avulsos, sem vínculos paroquiais ou comunitários. Por isso, profanamos a Semana Santa.
Por Frei Betto

Em vez do lava-pés na Quinta-feira, lavamos a alma em dúzias de cervejas e o corpo em mares e piscinas. Em vez da memória do Senhor morto na Sexta-feira, o churrasco no quintal e a sofreguidão de quem acredita que felicidade é a soma de pequenos prazeres. Em vez de Páscoa, a mais importante festa cristã, um Domingo de lazer no qual se espera apenas que o sol ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a glória de seu brilho.

Temos perdido a memória das datas emblemáticas e dos ritos de passagem. Nossas crianças crescem no ateísmo prático, como se Deus fosse um camafeu guardado por suas avós numa coisa forrada de veludo. Se não há quem as leve à Igreja, faça-as participar do lava-pés e da procissão da cruz, e cantar aleluias pela ressurreição de Jesus, como esperar que cresçam com algum sentimento religioso?

Tornam-se, pois, neófitas da religião das novas catedrais: os shopping centers. Aprendem que a Semana Santa é apenas uma miniférias que demarca com nitidez duas classes de seres humanos: os que podem viajar e os que não de ficar. Se um dia elas forem relegadas à categoria dos que hão de ficar, sentir-se-ão humilhadas, reagindo segundo a única escala de valores que conhecem: a do status a qualquer preço.

Os fatos históricos celebrados pela Igreja na Semana Santa fazem parte dos arquétipos que regem a nossa cultura ocidental. Olvidar-se que, no século I, Jesus de Nazaré foi perseguido, preso, torturado e assassinado na cruz por "passar a vida fazendo bem", como sublinham as Escrituras, é perder a própria identidade. Sem paradigmas e referências, invertemos os valores. Trocamos a religião pelo consumo, abraçando inclusive uma religiosidade prêt-à-porter, de quem busca nos astros e nas cartas, nos búzios e no Iching o que convém à própria segurança psicológica. Nenhuma preocupação com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma entrega à oração. Fugimos de práticas comunitárias como o diabo da cruz. Inventamos uma religião individual, na qual somos fiéis e bispos, profetas e doutores. Por isso nos encanta a literatura esotérica que nutre nossa fantasia com manuscritos arcaicos e anjos cabalísticos. Nada disso exige que se cumpra o fundamental; amar o próximo como a si mesmo.

Abraçar o caminho de Jesus é ver no próximo a face de Cristo, sobretudo naqueles com que ele se identificou: "Tive fome ... tive sede... fui oprimido ..." que transtorno! Então terei de encarar essa criança da rua que estraga a paisagem da janela do meu carro como se visse o Menino Jesus? Terei de admitir, já que a vida humana se sobrepõe aos bens materiais, que os sem-terra agem na linha do Evangelho quando ocupam propriedades ociosas? Terei de visitar amigos doentes, assinar a carteira da faxineira e pagar melhores salários aos empregados?

Heloísa Vinhas, brasileira de 23 anos que tenta vida melhor nos EUA, em março de 97, passando uma rua de Los Angeles, quando foi atropelada pelo carro de um motorista irresponsável. Atirada no asfalto da via preferencial, corria o risco de ser morto por outros veículos. Porém, um jovem e famoso ator, Tom Cruise, que passava pelo local, manobrou seu Porshe de modo a proteger o corpo da moça e chamou a equipe de socorro. Em seguida, acompanhou Heloísa ao hospital e disse ao enfermeiro Jerrrey Furrows: "Sou Tom Cruisee quero que esta mulher receba o melhor tratamento possível. Eu pago a conta". A estimativa ultrapassa R$ 23 mil. Tom Cruise jamais deve Ter imaginado que, um dia, faria o papel, na vida real, de um dos mais destacados personagens bíblicos: o bom samaritano. Conta Jesus, no capítulo 10 do Evangelho de Lucas, versículos 25 a 37, que "um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos assaltantes, que lhe arrancaram tudo, e o espcaram. Depois foram embora e o deixaram morto (...). Um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão, recomendando: "Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais". Como imitar Tom Cruise e o bom samaritano se estamos perdendo a compaixão e a solidariedade?  Prefiro Jesus espetado no crucifixo da parede. Na vida real, ele e o bom samaritano questionam minhas fantasias egocêntricas.

É Páscoa, mas não passo. Fico na minha. Entregue ao ócio dos feriados e sem dignidade. Se possível, vendo TV um filme estrelado por Tom Cruise. E não me peçam que pare o carro caso encontre um acidentado na estrada. Sujaria tapetes e bancos, impressionaria as crianças, atrasaria a viagem. Exceto se a fatalidade fizer com que o acidentado seja eu.


Mt 25, 31.

Fonte: O Globo

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