Avizinham-se os feriados. Para quem pode, paira uma
excitação no ar: a corrida ao supermercado, o carro abastecido, a agência de
viagens, a expectativa de dias felizes na praia, no sitio ou no exterior.
Na maioria, somos cristãos. Cristãos avulsos, sem vínculos
paroquiais ou comunitários. Por isso, profanamos a Semana Santa.
Por Frei Betto
Em vez do
lava-pés na Quinta-feira, lavamos a alma em dúzias de cervejas e o corpo em
mares e piscinas. Em vez da memória do Senhor morto na Sexta-feira, o churrasco
no quintal e a sofreguidão de quem acredita que felicidade é a soma de pequenos
prazeres. Em vez de Páscoa, a mais importante festa cristã, um Domingo de lazer
no qual se espera apenas que o sol ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a
glória de seu brilho.
Temos perdido a memória das datas emblemáticas e dos ritos
de passagem. Nossas crianças crescem no ateísmo prático, como se Deus fosse um
camafeu guardado por suas avós numa coisa forrada de veludo. Se não há quem as
leve à Igreja, faça-as participar do lava-pés e da procissão da cruz, e cantar
aleluias pela ressurreição de Jesus, como esperar que cresçam com algum
sentimento religioso?
Tornam-se, pois, neófitas da religião das novas catedrais:
os shopping centers. Aprendem que a Semana Santa é apenas uma miniférias que demarca
com nitidez duas classes de seres humanos: os que podem viajar e os que não de
ficar. Se um dia elas forem relegadas à categoria dos que hão de ficar,
sentir-se-ão humilhadas, reagindo segundo a única escala de valores que
conhecem: a do status a qualquer preço.
Os fatos históricos celebrados pela Igreja na Semana Santa
fazem parte dos arquétipos que regem a nossa cultura ocidental. Olvidar-se que,
no século I, Jesus de Nazaré foi perseguido, preso, torturado e assassinado na
cruz por "passar a vida fazendo bem", como sublinham as Escrituras, é
perder a própria identidade. Sem paradigmas e referências, invertemos os
valores. Trocamos a religião pelo consumo, abraçando inclusive uma
religiosidade prêt-à-porter, de quem busca nos astros e nas cartas, nos búzios
e no Iching o que convém à própria segurança psicológica. Nenhuma preocupação
com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma entrega à oração. Fugimos de
práticas comunitárias como o diabo da cruz. Inventamos uma religião individual,
na qual somos fiéis e bispos, profetas e doutores. Por isso nos encanta a
literatura esotérica que nutre nossa fantasia com manuscritos arcaicos e anjos
cabalísticos. Nada disso exige que se cumpra o fundamental; amar o próximo como
a si mesmo.
Abraçar o caminho de Jesus é ver no próximo a face de
Cristo, sobretudo naqueles com que ele se identificou: "Tive fome ... tive
sede... fui oprimido ..." que transtorno! Então terei de encarar essa
criança da rua que estraga a paisagem da janela do meu carro como se visse o Menino
Jesus? Terei de admitir, já que a vida humana se sobrepõe aos bens materiais,
que os sem-terra agem na linha do Evangelho quando ocupam propriedades ociosas?
Terei de visitar amigos doentes, assinar a carteira da faxineira e pagar
melhores salários aos empregados?
Heloísa Vinhas, brasileira de 23 anos que tenta vida melhor
nos EUA, em março de 97, passando uma rua de Los Angeles, quando foi atropelada
pelo carro de um motorista irresponsável. Atirada no asfalto da via
preferencial, corria o risco de ser morto por outros veículos. Porém, um jovem
e famoso ator, Tom Cruise, que passava pelo local, manobrou seu Porshe de modo
a proteger o corpo da moça e chamou a equipe de socorro. Em seguida, acompanhou
Heloísa ao hospital e disse ao enfermeiro Jerrrey Furrows: "Sou Tom
Cruisee quero que esta mulher receba o melhor tratamento possível. Eu pago a
conta". A estimativa ultrapassa R$ 23 mil. Tom Cruise jamais deve Ter
imaginado que, um dia, faria o papel, na vida real, de um dos mais destacados
personagens bíblicos: o bom samaritano. Conta Jesus, no capítulo 10 do
Evangelho de Lucas, versículos 25 a 37, que "um homem ia descendo de
Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos assaltantes, que lhe arrancaram tudo,
e o espcaram. Depois foram embora e o deixaram morto (...). Um samaritano, que
estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão. Aproximou-se dele e
fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em
seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte,
pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão, recomendando:
"Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a
mais". Como imitar Tom Cruise e o bom samaritano se estamos perdendo a
compaixão e a solidariedade? Prefiro
Jesus espetado no crucifixo da parede. Na vida real, ele e o bom samaritano
questionam minhas fantasias egocêntricas.
É Páscoa, mas não passo. Fico na minha. Entregue ao ócio dos
feriados e sem dignidade. Se possível, vendo TV um filme estrelado por Tom
Cruise. E não me peçam que pare o carro caso encontre um acidentado na estrada.
Sujaria tapetes e bancos, impressionaria as crianças, atrasaria a viagem.
Exceto se a fatalidade fizer com que o acidentado seja eu.
Mt 25, 31.
Fonte: O Globo
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