“São grandes os riscos de meninas e meninos acabarem
seduzidos, manipulados por dinheiro ou promessas risonhas. Crianças na rua,
fora da escola e desocupadas quando o país vai ser visitado por milhões de
pessoas, entre as quais pessoas que podem se aproveitar da situação, é um
risco”, Marta Santos Pais, especialista da ONU.
O dia 12 de junho de 2014, os olhos de milhões de pessoas
pelo mundo estarão voltados para a abertura da Copa do Mundo no Brasil, no
estádio do Itaquerão, na Zona Leste de São Paulo. Durante um mês, as principais
cidades do país viverão uma efervescente e atípica rotina, movimentada pela
presença de até um milhão de turistas estrangeiros e do deslocamento de três
milhões de brasileiros para acompanhar os jogos do mundial de futebol. Enquanto
a administração pública corre contra o relógio para tentar reverter a própria
incapacidade de entregar as obras de infraestrutura a tempo, são outros números
que despertam a atenção da ONG sueca ChildHood, especializada em proteção à
infância.
A instituição elaborou um estudo sobre o aumento de casos de
exploração sexual de mulheres e crianças em sedes de grandes eventos esportivos
nos últimos anos. O documento foi entregue à Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República em fevereiro. Segundo a ONG, na Copa da África do Sul,
em 2010, foram registrados 40.000 casos de exploração infantil (aumento de 63%)
e 73.000 ocorrências de abusos contra mulheres (83% a mais) nos dois meses
entre a chegada das delegações, os jogos e o término do evento. Quatro anos
antes, no Mundial da desenvolvida Alemanha, foram contabilizados 20.000 casos
contra crianças (aumento de 28%) e 51.000 contra mulheres (49% a mais). Nas
Olimpíadas da Grécia, em 2012, foram 33.000 casos contra crianças (87% a mais)
e 80.000 casos contra mulheres (78% de acréscimo). Se tomados a dimensão
territorial e os fatores socioeconômicos, tudo indica que o retrato não deverá
ser diferente no Brasil.
Dados da Secretaria de Direitos Humanos mostram que, no ano
passado, foram registrados 33.000 casos de exploração sexual de crianças e
adolescentes por meio do disque-denúncia. A cidade de Fortaleza, que ostenta a
vergonhosa reputação de capital brasileira do turismo sexual, contabilizou
1.246 em 2013. O perfil das vítimas: meninas com idade entre 8 e 14 anos. Em
junho, a cidade abrigará um dos jogos da seleção brasileira, contra o México,
na primeira fase da Copa. A expectativa do Ministério do Turismo é que 60.000
turistas desembarquem na capital cearense.
O alerta pela proteção de crianças e adolescentes na Copa
também foi feito pela Organização das Nações Unidas (ONU). "São grandes os
riscos de meninas e meninos acabarem seduzidos, manipulados por dinheiro ou
promessas risonhas. Ter crianças na rua, fora da escola e desocupadas quando o
país vai ser visitado por milhões de pessoas, entre as quais pessoas que podem
se aproveitar da situação, é um risco”, afirmou a portuguesa Marta Santos Pais,
responsável pela área de violência contra crianças da ONU, durante o último
Fórum Internacional de Direitos Humanos, realizado no Brasil.
Sem aulas – Em junho e julho, crianças e adolescentes terão
as aulas suspensas por recomendação da Fifa. A medida foi determinada pelo
Ministério da Educação (MEC) para tentar reduzir o trânsito nas ruas. O MEC
autorizou a mudança no calendário escolar e deixou a critério dos governos
locais a decisão de manter ou não as escolas abertas durante o mês de julho.
“Esse fator é um dos mais preocupantes, porque a escola é um
espaço de proteção da criança. Se ela fechar, essa criança ficará mais exposta
durante o evento”, diz Ana Maria Drummond, diretora da ChildHood. “Grandes
eventos esportivos agravam a vulnerabilidade: as crianças não estarão na escola
e ninguém cuidará delas. Além disso, tem o álcool, as drogas e os 'amigos' que
dizendo que o sexo com um estrangeiro pode transformar suas vidas."
O perigo para as crianças não se restringe ao turismo: a ONG
descobriu casos de exploração sexual pelos operários que passam quase um ano
nos canteiros de obras da Copa e da Olímpíada do Rio de Janeiro, em 2016.
Lei e impunidade - Em fevereiro, o Senado aprovou um projeto
de lei que torna hediondo o crime de exploração sexual de crianças e
adolescentes. A proposta seguiu para apreciação da Câmara dos Deputados. Se os
deputados chancelarem o projeto, os condenados por esse tipo de crime não terão
direito a indulto, não poderão pagar fiança e a pena terá de ser cumprida em
regime fechado, com progressão mais lenta.
Pelo Código Penal, a pena para crimes de exploração sexual
estipula prisão de quatro a dez anos e multa. Atualmente, o estupro de
vulnerável já é considerado crime hediondo. Isso significa que quem tem
relações sexuais ou comete ato libidinoso contra menores de 14 anos é punido
com pena de oito a quinze anos de prisão.
A punição dos envolvidos em casos de exploração de menores,
entretanto, é rara, segundo Karina Figueiredo, secretária-executiva do Comitê
Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes,
órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Ela afirma
que a maior parte dos casos denunciados levam três anos para serem julgados.
“As Varas da Infância no Brasil não julgam o abusador. O caso segue para uma
Vara comum e cai nas mãos de juízes que lidam com toda a sorte de crimes."
Karina diz ainda que muitos juízes também abrandam as
punições por preconceito. “Quando é um caso de estupro de menor, todos ficam
imediatamente comovidos, mas quando é uma menina se prostituindo na rua, ela é
vista como safada. Alguns juízes e promotores têm um pensamento completamente
machista perante essa criança. Dizem que a culpa não é do adulto que abusa, mas
da menina, que não está na escola porque não quer. Se falarmos de meninos
travestis, então, a punição é praticamente inexistente”, afirma.
Combate – O estudo aponta que medidas de repressão contra o
uso de hotéis pelos turistas acompanhados por menores de idade forçam os
exploradores a usar os motéis. Taxistas, donos de motéis e até a polícia
"pertencem a uma máfia que fornece crianças para sexo com estrangeiros”,
diz o relatório.
A Secretaria de Direitos Humanos diz que vai investir 47
milhões de reais em ações de proteção à criança – 5 milhões de reais a mais do
que no ano passado. O governo afirma ainda que implantará comitês de
atendimento especial nas cidades-sede. Outra ação é o lançamento de um
aplicativo para celular que localiza equipamentos públicos de proteção à
criança, como conselhos tutelares, com base em dados de GPS.
O Ministério do Turismo afirma que realiza uma campanha
especial para a Copa com cartazes, folhetos e guias em três idiomas espalhados
em aeroportos do país. No mês passado, a presidente Dilma Rousseff escreveu em
sua conta no Twitter que o Brasil "está feliz em receber turistas que chegarão
para a Copa, mas também está pronto para combater o turismo sexual".
Apesar das palavras da presidente, a principal ferramenta de
combate ao turismo sexual é falha. O site de VEJA testou o serviço do
disque-denúncia na última semana. Na quarta-feira, às 15h, a mensagem de que
“no momento todos os nossos atendentes estão ocupados" se repetiu 33 vezes
em dez minutos. Duas horas depois, o mesmo aviso foi ouvido nove vezes. Além da
dificuldade em encontrar um atendente na linha, a burocracia também dificulta a
denúncia: como o sistema é nacional, é exigido, por exemplo, o CEP exato do
local onde o abuso foi flagrado. Ao final, quem consegue registrar seu caso
pelo telefone ainda corre o risco de ficar somente com um número de protocolo –
é o próprio denunciante quem tem que correr atrás para saber se a denúncia foi
mesmo apurada.
Fonte: Veja
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