"O primeiro passo para evitar mais histórias como as de
Marco, Marcelo, Maria e Joana é a mudança do discurso. Diga às suas filhas que
elas são dignas e que seu corpo é só delas. Ensine seus filhos a respeitar as
mulheres e buscar o sexo como uma experiência mágica a dois. Não deixemos esse
movimento morrer. Eu lancei a pergunta, agora, a resposta é com vocês!", ...
escreve Nana Queiroz, 28 anos, autora do movimento "Eu
não mereço ser estuprada", publicado por BBC Brasil, 31-03-2014.
O movimento foi criado no Facebook na última quinta-feira em
resposta ao resultado de uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) segundo a qual 65% dos brasileiros acham que mulheres com roupas
curtas merecem ser atacadas. O movimento ganhou a adesão de 44 mil pessoas e repercutiu
em vários países.
Jornalista formada pela USP, Queiroz estuda desde 2009 o
sistema carcerário feminino do Brasil. A pesquisa dará origem ao livro
"Presos que Menstruam", a ser publicado até o fim de 2014.
Eis o artigo.
Desde que iniciei o protesto on-line "Eu não mereço ser
estuprada", na noite da última quinta-feira, recebi uma série de
depoimentos de mulheres, homens e adolescentes que foram vítimas de abuso
sexual. É incrível como essas histórias têm força, muito mais força que os
números. E o que vi é que o estupro geralmente não ocorre à noite, num beco
escuro. Ele ocorre, principalmente, em situações mais cinzentas.
No Distrito Federal, onde vivo, uma pesquisa publicada no
ano passado, por exemplo, indicou que 85,2% dos estupros acontecem dentro da
casa da vítima ou do agressor. Os números são chocantes, e me sinto na
obrigação de contar sobre alguns rostos por trás das estatísticas.
Todos os nomes a seguir são fictícios.
A funkeira Valesca Popozuda também participou da campanha
Não Mereço Ser Estuprada, que propõe que internautas tirem a roupa e se
fotografem segurando um cartaz contra a violência sexual. Valesca publicou uma
foto no Instagram na noite de domingo (30), na qual aparece nua segurando um
bastão de beisebol. Abaixo da imagem, lê-se a frase "De saia longa ou
pelada #não mereço ser estuprada". O protesto online é uma reação a uma
pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que revelou que a
maioria dos brasileiros acha que mulheres com roupas expondo o corpo merecem
ser atacadas Reprodução/Twitter
Joana foi abusada sexualmente pelo pai durante toda a
infância. O mais curioso é que ela só percebeu ter sido vítima de abuso na vida
adulta - e o pai dela não percebeu até hoje. Sabe por quê? Porque ele nunca a
penetrou. Enfiava a mão por dentro de sua calcinha, acariciava seus seios mas,
para ele, abuso sexual é penetração.
No entanto, segundo a Lei Ordinária Federal nº 12.015, de
2009, que alterou o Código Penal Brasileiro, o crime de estupro não se refere
somente à penetração, mas a qualquer ato de "conjunção carnal ou outro ato
libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a
livre manifestação de vontade da vítima".
Outra história. Certa noite, Maria estava entediada. Foi à
casa de um amigo em quem confiava muito para ouvir música e beber até cair.
Temerosa de dirigir para casa embriagada, ela pediu para dormir em seu sofá até
que o efeito do álcool se dissipasse. Acordou algumas horas depois com a bruta
inserção de um pênis em sua vagina. Ela gritou, protestou, exigiu que parasse.
Ele prosseguiu até não conseguir mais lutar contra ela. Argumentou que a culpa
era dela por ter dormido na casa dele.
Nesse caso, vale um raciocínio básico: na dúvida, é estupro.
Não tem certeza se ela está suficientemente consciente? É estupro. Não sabe se
álcool ou drogas afetaram sua capacidade de julgamento? É estupro. Ela está
semiacordada? É estupro. Devíamos nos concentrar em explicar aos homens como
não estuprar, e não em dizer às mulheres como não serem estupradas.
Marco foi estuprado aos cinco anos pelo irmão. Na vida
adulta, ele teve coragem de contar aos pais. Pressionado para dar explicações,
o abusador, que era bem mais velho que Marco, afirmou: "Eu já havia
percebido que ele era gay, imaginei que ele iria gostar, e ele gostou".
Mas crianças não podem "gostar" ou não de sexo.
Elas ainda não têm a maturidade e os critérios para definir se desejam ou não
uma relação sexual. A ONG Childhood, que trabalha com vítimas de pedofilia,
explica que "a natureza sexuada, inerente a qualquer criança, não pode ser
entendida no sentido genital, mas sim no contexto de uma série de experiências
psicológicas e físicas que vão, aos poucos, dando forma a seu pensamento e a
seu corpo, ao que ela pensa sobre seu corpo e como o sente".
Mais: vocês sabiam que mais de um terço dos abusadores de
crianças são também menores de idade? Ou seja, você que forçou seu primo ou
prima mais nova a ter envolvimento sexual com você também cometeu um abuso, mesmo
sendo menor de idade. Este é o caso de Marcelo, um belo homem que foi abusado
constantemente por um primo cinco anos mais velho durante a infância. Quando
enfrentou o abusador, apoiado pela família, na vida adulta, o abusador alegou:
"Eu também era menor de idade, portanto, não sou culpado". É, sim.
Mas, claro, deve ser tratado como um menor ofensor, que não tinha seu caráter
ainda completamente formado.
Finalmente, gostaria de dizer que tenho recebido e-mails de
pessoas que sugerem castração e pena de morte para abusadores. Não creio que a
solução esteja por aí. A lei brasileira já protege amplamente o abusado. Temos
que pedir que ela seja aplicada e não que endureça. O trabalho deve se
concentrar em educar os homens para que não estuprem, as mulheres para que
denunciem, os policiais para que não culpem as vítimas e os familiares para que
não acobertem os casos de abuso intrafamiliares.
O primeiro passo para evitar mais histórias como as de
Marco, Marcelo, Maria e Joana é a mudança do discurso. Diga às suas filhas que
elas são dignas e que seu corpo é só delas. Ensine seus filhos a respeitar as
mulheres e buscar o sexo como uma experiência mágica a dois. Não deixemos esse
movimento morrer. Eu lancei a pergunta, agora, a resposta é com vocês!
Fonte: BBC Brasil
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