Infelizmente, a imagem da mulher brasileira foi
historicamente ostentada no exterior como objeto de desejo sexual, inclusive
por campanhas institucionais que apresentavam mulatas seminuas e faziam
convites ao turismo sexual. Esse imaginário, sabemos, não se desfaz da noite
para o dia e, muito menos, sem uma imprensa e um poder público imbuídos da
responsabilidade de combater o machismo em todas as suas formas.
Por Mariana Martins
O Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou, no dia 27 de março, a pesquisa “Sistema
de Indicadores de Percepção Social (SIPS)”, que revela o entendimento de
brasileiros e brasileiras sobre a violência contra a mulher. De acordo com o
estudo, 58% dos quase 4 mil entrevistados responderam que “se as mulheres
soubessem se comportar, haveria menos estupros”. Já 82% disseram que “em briga
de marido e mulher não se mete a colher”.
A pesquisa comprovou questões latentes do dia a dia dos
brasileiros e das brasileiras. Feita no meio do ano passado, não poderia ter
sido divulgada em momento tão oportuno. Na semana passada, notícias alertaram
para homens presos em metrôs de grandes cidades brasileiras por estarem
“encoxando” mulheres nos transportes públicos. Desde adolescente, sei e senti
na pele o horror do ambiente machista e opressor que se tornou o transporte
público. Seja aqui ou na Índia, mulheres foram e continuam sendo estupradas nos
coletivos, não podem andar sozinhas à noite, não podem, não podem e não podem.
Somos socializadas na negação das nossas vontades e da nossa autonomia. Com
medo de um imaginário social e de uma violência física e simbólica.
Uma pequena amostra do quão esta pesquisa do IPEA é um claro
reflexo do pensamento majoritário da sociedade brasileira me ocorreu também
esta semana. Estava em um congresso acadêmico quando fui abordada por uma
professora que se revoltara ao ver algumas das estudantes voluntárias do
congresso acuadas atrás de uma bancada e transtornadas pelos comentários da
pessoa que as havia mandado para aquele lugar. Eram universitárias de vinte e
poucos anos que estavam no congresso usando “shorts” e que, por isso, “não
poderiam ficar circulando” pelas áreas do evento “para não provocar os
professores estrangeiros”. E, no caso, quem deveria se esconder? As meninas,
“lógico”, afinal elas estavam “provocando” os estrangeiros com suas roupas.
Aquele relato me deixou revoltada e, no dia seguinte, acabei
lendo a pesquisa do IPEA. Pela primeira vez, concordei com a frase: “imagina na
Copa!”. Tive um medo tremendo de como as mulheres brasileiras, já
culpabilizadas por tudo que fazem contra elas, podem ser mais uma vez consideradas
“algozes” das violências que sofrem. “Mas o que a Copa tem a ver com isso?”,
devem pensar os mais inocentes. Respondo: tudo! Infelizmente, a imagem da
mulher brasileira foi historicamente ostentada no exterior como objeto de
desejo sexual, inclusive por campanhas institucionais que apresentavam mulatas
seminuas e faziam convites ao turismo sexual. Esse imaginário, sabemos, não se
desfaz da noite para o dia e, muito menos, sem uma imprensa e um poder público
imbuídos da responsabilidade de combater o machismo em todas as suas formas.
Há muito pouco tempo, alguns aspectos da violência de gênero
vêm se tornando alvo de políticas públicas importantes como a Lei Maria da
Penha, mas precisamos ainda da revolução imagética e simbólica do lugar e da
autonomia da mulher. Para isso, dependemos sim de uma mídia responsável, não de
uma imprensa que não só não se posiciona contra o machismo e todas as formas de
violência e opressão, como também não se sente responsável pelo combate a todo
e qualquer tipo de violação de direitos.
Ainda hoje, assistimos, cotidianamente, a mulher ser
objetificada pela publicidade, ser estereotipada nas novelas, nas bancadas dos
telejornais, nas previsões do tempo, nos programas de humor. Vemos também as
dores de mulheres estupradas, agredidas, violentadas serem expostas e usadas
para alavancar audiência. O Big Brother Brasil, por exemplo, além de
objetificar e estereotipar as mulheres, foi capaz de negar o abuso sofrido por
uma participante alcoolizada. Na ocasião, também veio à tona a responsabilização
da mulher, que “bebeu mais do que deveria”. O apresentador Pedro Bial e a
própria rede de TV negaram a gravidade do fato, que teve apenas na internet um
espaço para amplo debate.
Esses veículos são os mesmos que negam a existência do racismo
no Brasil e insistem em defender que o machismo também é criação das
“feminazes”, do PT, do governo. Resta questionar: a quem interessa negar a
existência do machismo? De certo, aos que acham que podem comparar a
culpabilidade de um estupro a de um roubo, como fez o blogueiro da Revista
Veja, Felipe Moura Brasil. Pasmem, mas, nas palavras do blogueiro, “(…) é
perfeitamente compreensível o raciocínio de que se elas [as mulheres
brasileiras] não usassem roupas tão provocantes atrairiam menos a atenção dos
estupradores, assim como, se os homens não passassem de Rolex ou de Ferrari em
áreas perigosas, atrairiam menos a atenção de assaltantes. E nada disso seria
culpá-los dos crimes que os demais cometeram”.
As contradições das palavras de Felipe se desenrolam por
todo o texto, que tenta encontrar nas intenções políticas do governo e nas
mulheres a razão de ser do resultado da pesquisa do Ipea. Chega a ser irônico
que a mesma conclusão não seja usada para dizer que o homem que estava na sua
Ferrari ou com o seu Rolex é culpado por ter sido roubado, lógico! Por um
acaso, quando Luciano Huck teve seu relógio roubado, alguém na imprensa o
culpou? Nunca vi um homem ser culpado por ser roubado, mas o blogueiro da
revista de maior circulação do país diz ser perfeitamente compreensível o
raciocínio de que as roupas provocantes atraem a atenção dos estupradores.
Lamentável.
Essas e outras questões mostram, tanto de forma escancarada
como de forma sutil, que o machismo no Brasil ainda é muito forte, vai além das
diferenças salarias entre homens e mulheres e da quádrupla jornada feminina
(trabalho – casa – marido – filhos). O machismo no Brasil é sim um machismo
medieval, um machismo que além de violar os direitos e violentar as mulheres,
faz com que recaia sobre elas toda a culpa e responsabilidade pelos reflexos
desse machismo, que acaba sendo internalizado inclusive por muitas mulheres.
Afinal, o machismo não escolhe gênero e tem inumeráveis meios de propagação,
dentre eles a mídia, que se mostra, em sua maioria, conservadora e
preconceituosa, superficial e espetacularizada.
Por outro lado, há de se registrar e valorizar os meios que
insurgem no combate à violência contra a mulher, mesmo que em menor medida e
ainda de forma tímida. Posso citar aqui dois bons exemplos que, nesses últimos
dias, encheram-me de esperança: o Diário de Pernambuco e a Empresa Brasil de
Comunicação. Ambos publicaram em suas páginas eletrônicas, e o Diário de
Pernambuco também na sua edição imprensa, declarações de funcionárias e
funcionários que repudiavam os resultados desta pesquisa, ao invés de utilizar
oratórias demagogas para negar o óbvio e culpar, mais uma vez, nós, mulheres.
E mesmo a polêmica pesquisa do Ipea nos mostra que nem tudo
é retrocesso. Rafael Osorio, diretor de Estudos e Políticas Sociais do
instituto, explicou que outras formas de violência estão sendo percebidas pela
população. Segundo Osório, “Existe atualmente uma rejeição da violência física
e simbólica – xingamentos, tortura psicológica”. Quem sabe com uma impressa mais
preocupada e responsável pelo fim das desigualdades e que compreenda seu papel
nos processos sociais mais complexos e duradores, possamos sonhar com dias
melhores, com a autonomia e ações simples como escolher a roupa que se quer
vestir e não ser julgada ou estuprada por isso.
*Mariana Martins é jornalista, doutora em Comunicação Social
pela UnB e integrante do Intervozes.
Fonte: Blog do Intervozes / Carta Capital
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