Esther Vivas, jornalista e pesquisadora de movimentos
sociais, políticas agrícolas e de alimentação, denuncia que “a busca do lucro a
todo custo, por algumas poucas multinacionais, é a explicação para que o
sistema produza mais alimentos do que nunca e, apesar disso, gere fome”.
Ela
afirma que “a crise econômica e ecológica estão intimamente relacionadas” e
considera que o capitalismo “se veste de verde” para nos fazer acreditar que a
tecnologia resolverá o aquecimento global. Em sua opinião, mudar de modelo não
é uma utopia, mas depende de um esforço coletivo: “Sozinho não é possível, com
amigos, sim”.
A entrevista é de Cristina Fernández, publicada por
Ecoavant, 20-03-2014. A tradução é do Cepat. Eis a entrevista.
Quem decide o que comemos?
Algumas poucas multinacionais, que controlam cada área da
cadeia agroalimentar: desde as sementes, passando pela transformação dos
alimentos, até sua distribuição e comercialização. A partir da chamada
revolução verde, ao longo dos anos 1950 e 1960, vimos como ocorreram algumas
políticas chamadas de ‘modernização da agricultura’, que serviram para
deixá-las nas mãos destas empresas e fazer com que o campesinato dependesse
delas, com o argumento de que assim seriam produzidos mais alimentos. Deste
modo, retiraram do agricultor a capacidade para poder decidir o que cultivava e
controlar sua produção, concedendo isso às empresas.
As sementes se tornaram um negócio nas mãos de companhias
como a Monsanto, DuPont, Syngenta ou Pioneer. No caso dos supermercados, isso é
ainda mais evidente. No Estado espanhol, sete empresas controlam 75% da
distribuição. Eles determinam o que compramos, o que comemos e que preço
pagamos pelo que consumimos. Possuem esta influência tão grande sobre nós, consumidores,
mas também sobre os camponeses, que para se conectarem conosco precisam cada
vez mais passar pelos canais da grande distribuição, com todos os
condicionantes que lhes são impostos.
Quais são as sete empresas que controlam 75% da distribuição?
Carrefour, Mercadona, Eroski, Alcampo, El Corte Inglés e as
duas principais centrais de compra, que reúnem outras cadeias: Euromadi e IFA.
Diante disso, emerge o conceito de soberania alimentar. O que isso
exige?
Implica em uma concepção totalmente antagônica ao dominante.
Reivindica o direito dos povos, das pessoas e das comunidades decidirem sobre
aquilo que se produz e sobre o que comemos. A demanda surge precisamente para
enfrentar o controle de algumas poucas multinacionais que antepõem seus interesses
particulares às necessidades da população. A busca do lucro a todo custo por
essas é o que explica que hoje o sistema produza mais alimentos do que nunca na
história e, apesar disso, gere fome; que acabemos nos alimentando com produtos
que venha de outra ponta do mundo; que se perca a biodiversidade agrícola e que
desapareça o campesinato...
Qual é a alimentação do futuro, impulsionada pelas grandes
multinacionais que controlam o setor?
Buscam uma alimentação mais uniforme. Ou seja, que comamos a
mesma coisa em todo o mundo. A própria FAO reconhece que cada vez são
produzidas menos variedades de frutas e verduras. Concretamente, durante os
últimos 100 anos, 75% destes alimentos desapareceram. Percebemos claramente
isso no momento de comprar no supermercado, onde existe uma grande diversidade
de alimentos para escolher, mas com as mesmas marcas, tanto em um
estabelecimento como em outro. Esta uniformidade também tem um impacto sobre
nossa saúde, porque se nossa alimentação depende de algumas poucas variedades
agrícolas e pecuárias, o que acontecerá se as mesmas forem afetadas por uma
praga ou uma doença? Na Espanha, por exemplo, 98% das vacas leiteiras são de
uma mesma raça, a frisona, que é a que se demonstrou mais produtiva. É a lógica
do modelo: promover as variedades que se adaptam melhor, os alimentos que podem
resistir uma viagem de milhares de quilômetros e chegar a nossa casa em
perfeito estado...
E os transgênicos...
Há uma aposta clara da indústria pelos mesmos, e por um
modelo agrícola adicto aos fitossanitários e aos pesticidas químicos, que
possuem um impacto muito negativo sobre o meio ambiente, além de apresentarem
claras interrogações sobre seu efeito em nossa saúde. Há relatórios como o do
doutor Gilles-Éric Séralini que demonstraram em ratos de laboratório o impacto
dos transgênicos na geração de tumores cancerígenos. Portanto, acredito que há
elementos suficientes sobre a mesa para que prime o princípio de precaução, que
de fato é o que se aplica na maior parte dos países da União Europeia, onde os
transgênicos estão proibidos. Não, aqui, no Estado espanhol, pois é o único
país da União Europeia que cultiva o milho transgênico em grande escala, o
MON810 da Monsanto, principalmente na Catalunha e Aragão. O problema é que
consumimos transgênicos de maneira indireta, por meio da carne e derivados,
porque penso que tudo o que alimenta os animais é transgênico.
Que alternativas há ao modelo dominante?
Vivemos em uma sociedade onde tendemos a menosprezar o que
consumimos, que não valoriza a alimentação e que promove o bom, bonito, barato
e rápido. Portanto, em primeiro lugar, teríamos que nos questionar sobre o que
há por trás do que comemos, revalorizar a alimentação e aqueles que produzem os
alimentos, aos camponeses que, em geral, foram estigmatizados como ignorantes
para justificar que se deixem as decisões nas mãos de algumas empresas que
acabam fazendo negócio com nosso direito de nos alimentar.
Após tomar consciência, devemos nos perguntar, ser críticos
e tentar ver para além do discurso hegemônico que nos diz que esta agricultura
é a melhor, que os transgênicos são a solução para a fome no mundo. E se
consideramos que carecemos nos alimentar de outra maneira, é preciso passar à
ação, e isto implica em apostar em um consumo de alimentos de proximidade, de
temporada, ecológicos, fazer parte de iniciativas coletivas que promovam estas
práticas, como grupos e cooperativas de consumo, e em comprar diretamente dos
agricultores.
O consumidor está preparado para a mudança? E já se iniciou?
Os horários de trabalho, muitas vezes, são incompatíveis com
a vida pessoal e familiar e tornam difícil a dedicação de tempo para cozinhar,
alimentar-se bem. No entanto, em definitivo, também é uma questão de
prioridades. Muitas vezes, critica-se a agricultura ecológica por ser cara,
quando na realidade tudo depende do lugar em que você compra os alimentos,
porque no grupo ou cooperativa de consumo não são tão caros. E, por outro lado,
não levamos em conta este argumento quando precisamos renovar o vestuário ou
comprar um novo gadget tecnológico. Acredito que, pouco a pouco, as coisas
estão começando a mudar, embora seja necessário passar deste interesse
individual por uma refeição sadia para outro mais coletivo e político.
Que papel a crise ecológica e climática desempenha nos movimentos
sociais atuais?
O movimento social mais importante dos últimos anos, e que
significou um ponto de inflexão no contexto político e social atual da crise,
foi o do 15-M, que emergiu no dia 15 de maio de 2011 com a ocupação de várias
praças por toda a Espanha e que nos devolveu a confiança em nós, em que a ação
coletiva pode mudar as coisas. E que integrou alguns elementos de crítica ao insustentável
modelo de produção atual.
Entretanto, é certo que, hoje, a agenda ecológica e
ambiental praticamente não tem presença em boa parte dos movimentos sociais
mais importantes de nosso entorno. Isto se deve à ofensiva de cortes em nossos
direitos mais elementares. A crise econômica e social é tão profunda que se
acaba priorizando a cobertura de uma série de necessidades básicas como não
perder o trabalho, não perder a moradia, para que não cortem a saúde e a
educação. Os temas mais gerais, como os ambientais, não são percebidos como
imediatos e parece que ficam muito, mas muito distantes, quando, na realidade,
a crise climática é o elemento diferencial desta crise múltipla do sistema
capitalista em relação a outras anteriores. Porque, justamente, é a que coloca
em manifesto que: ou mudamos o modelo de produção, distribuição e consumo, ou
as perspectivas de futuro são muito negativas. A mudança climática coloca
claramente em xeque a continuidade da vida, tal e como a conhecemos hoje, no
planeta.
A economia verde ajuda a abrandar a mobilização?
Diante da crise ecológica e climática há uma ofensiva por
parte do capital e das grandes multinacionais para abordar o problema do ponto
de vista tecnológico. São oferecidas soluções técnicas para um problema que,
definitivamente, é político. O capital acaba mercantilizando as emissões de
gases de efeito estufa por meio dos mercados de carbono, diz-nos que é preciso
produzir petróleo verde e, portanto, apostar nos agro ou biocombustíveis... O
capitalismo se veste de verde e deseja nos fazer acreditar que a tecnologia nos
permitirá evitar este precipício em que nos vinculamos, quando na realidade é
totalmente ao contrário.
O que podemos fazer para não cair nele?
Em primeiro lugar, seria importante que os movimentos
sociais incorporassem à sua agenda os temas que tem a ver com a crise ecológica
e alimentar. E, além disso, são necessárias mudanças políticas. Em geral, o
discurso das instituições faz com que a responsabilidade recaia sobre o
consumo, a reciclagem, no indivíduo. Assim é que percebemos nos meios de
comunicação, campanha após campanha, quando o problema é o de modelo. Não tem
sentido que para sair da crise o que se faz é subsidiar a indústria do
automóvel, sendo que isso gerará mais impacto ambiental. Seria preciso apostar
no transporte público. Contudo, percebemos a forma como em um contexto de crise
econômica se aposta na indústria automobilística, enquanto se encarece de uma
maneira cada vez mais aberrante o preço do transporte coletivo. Tudo isto nos mostra
como a crise econômica e ecológica estão intimamente relacionadas e que aqueles
que estão nas instituições basicamente buscam fazer negócio beneficiando o
setor privado.
Muitos taxam seus ideais de utópicos...
Muitas vezes, todos aqueles que querem mudar as coisas são
chamados de utópicos, mas, talvez, seja mais utópico pensar que aqueles que nos
conduziram a esta crise nos tirarão da mesma, que o banco que nos levou a esta
situação de bancarrota coletiva renunciará a seus privilégios para nos tirar
dela. Os que fazem negócio com esse empobrecimento generalizado não renunciarão
a uma série de políticas econômicas e sociais que lhes estão proporcionando
grandes benefícios.
É otimista em relação ao futuro?
Sim, e acredito que é necessário ser. E ser otimista não
quer dizer ser ingênuo. É preciso analisar a crise: quem sai ganhando, quem sai
perdendo e, a partir disso, ver o que podemos fazer. É necessário que nos
organizemos, pensar em alternativas a partir da base e também propor
alternativas políticas para desafiar aqueles que há muitos anos utilizam a
política como uma profissão em função de seus interesses. É necessário ser
otimista porque a resignação, a apatia e o medo são justamente o que busca o
sistema... É imprescindível a confiança em nós, não resignarmos, perder o medo
e, sobretudo, atuar coletivamente. Cada um de nós, por conta própria, não pode
mudar nada, mas, como se dizia no programa de televisão La Bola de Cristal, “se
sozinho não é possível, com amigos, sim”. É justamente um dos argumentos que
deveríamos ter presente nesta crise.
Fonte: Ihu
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