Segundo o texto sagrado, a venda de pessoas manchou o povo
de Israel desde o seu nascedouro.
Por Dom Demétrio Valentini
A Campanha da Fraternidade vem despertando um novo interesse
pela Bíblia. O tema do tráfico humano já tinha surpreendido, pela amplitude do
fenômeno e pela assiduidade com que ele se verifica no mundo de hoje, apesar de
todas as providências tomadas para garantir os direitos humanos a todas as
pessoas.
Agora, buscando as referências bíblicas para o assunto, eis
que nos deparamos com outra surpresa. O fenômeno do tráfico humano é
corriqueiro na Bíblia.
O caso mais
emblemático é a história constrangedora dos filhos do Patriarca Jacó. O mais
novo deles, José, foi vendido por seus irmãos por vinte moedas de prata. Um
caso típico de tráfico humano, e praticado entre irmãos.
Verdade é que a história teve um “final feliz”, com o
sucesso obtido por José no Egito, e pelo reencontro com seu velho pai. Mas o
episódio não deixa de ser colocado nas origens do assentamento do povo de
Israel no Egito, onde acabaria caindo na escravidão, fruto indesejado da venda
de José, mesmo que fruto bastardo, amadurecido lentamente.
O fato é que o tráfico humano manchou o povo de Israel desde
o seu nascedouro, na época dos seus patriarcas.
Aí se coloca uma questão importante, que precisa ser bem
dirimida. Acontece que a Bíblia, ao longo de todo o Antigo Testamento, está
repleta de episódios violentos, de intrigas, de violências, de guerras, de
assassinatos, chegando até a situações de genocídios, com a matança de pequenas
populações que residiam na antiga Palestina, para ceder lugar aos israelitas,
que acabaram se impondo e dominando toda a região. E tudo isto, interpretado
como um sinal de bênção de Deus em favor do seu povo escolhido.
Dependendo de como é olhado, o Antigo Testamento pode ser
visto como um relato de violências, justificadas em nome de uma crença,
colocada a serviço da pretensa superioridade de um povo sobre os outros.
Essa visão levou muita gente, com sensibilidade humana
refinada, a descrerem da Bíblia, relegando-a a meros relatos tribais, sem
nenhuma relevância humana.
Que dizer disto, e como recuperar o valor transcendente da
Sagrada Escritura?
Em primeiro lugar, precisamos nos dar conta que a Bíblia não
se exime de sua dimensão humana. Ao contrário, ela a assume propositalmente,
para mostrar que ela se identifica com o lento caminhar da humanidade, dentro do
qual vai emergindo cada vez mais claramente o desígnio de Deus, “de formar um
povo que o conheça na verdade, e o sirva na santidade”. É essa humanidade, carregada de ambiguidades
e de perversidades, que Deus se propôs redimir e salvar “pela força do seu
braço”.
Em segundo lugar, é preciso dar-nos conta do valor simbólico
dos fatos relatados pela Bíblia. Quando, por exemplo, Deus prometeu a Abraão
uma numerosa descendência, e pediu que saísse de sua terra, e se dirigisse para
a terra que Deus iria lhe mostrar, a Bíblia não diz onde estaria essa
terra. Pois na verdade ela não estava em
lugar nenhum. A nova terra prometida a Abraão, não era um território
determinado. Era o símbolo da bênção que Deus queria conceder a todas as
famílias humanas. Essa era a “terra prometida”.
Se a promessa de uma nova terra não recuperar o valor
simbólico que lhe foi dado por Deus, permanecem os equívocos das disputas por
território, como infelizmente ainda se verifica hoje. Como Abraão, e como São
Pedro, nós também “esperamos novos céus e nova terra”, não na Criméia, nem em
Israel. Mas na prática da justiça e na vivência da fraternidade.
Fonte: Dom Total
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