Na semana do Dia da Criança, neste sábado, 12 de outubro, o
colunista Frei Betto, alerta para o que chama de "robotização da infância"
e critica o consumismo que cerca a data, criada pelo comércio para alavancar
vendas de brinquedos, roupas infantis e demais produtos criados para esse
público.
Por Frei Betto
Todos nós já vimos uma menina dar de beber à boneca, embora
ela saiba perfeitamente que bonecas não bebem, assim como meninos conversam com
cães como se estes fossem capazes de responder na mesma linguagem.
É imprescindível à nossa saúde psíquica desfrutar ao máximo,
na infância, o nosso universo onírico. Embora bonecas não bebam o suco que lhes
é oferecido, nem cães possam estabelecer diálogo com uma criança, esta atribui
à boneca e ao animal estados emocionais que são próprios de seres humanos.
Toda criança é uma atriz, capaz de desempenhar múltiplos
papéis. A menina é mãe, babá, irmã, professora e médica da boneca. Há uma
interação entre as duas. A boneca, graças à projeção onírica da criança,
responde, chora, come, bebe e faz manha.
A fantasia é o recurso mimético que permite à criança
transportar, à sua maneira, o universo dos adultos ao seu mundo e, ao mesmo
tempo, é o complemento da sabedoria infantil, provedora de sentido e animação
ao que, aos olhos adultos, carece de sentido e permanece inanimado.
O menino, montado no cabo de vassoura, sente-se confortável
em seu cavalo. Dê a ele um cavalo de brinquedo, com arreios e crina, e é bem
provável que, dias depois, ele abandone o presente para voltar à vassoura – que
dialoga com a sua imaginação.
Exaurir a infância de tudo que ela tem de próprio, como
atividades lúdicas, brincar de roda, de esconde-esconde, e enturmar-se com os
amiguinhos, é essencial para o futuro saudável do adulto.
Hoje em dia essa exigência se torna mais difícil. A rua é,
agora, lugar perigoso, ameaçado pela violência e pelo trânsito. As crianças
ficam retidas em casa, confinadas em apartamentos, entregues a jogos
eletrônicos, TV e internet.
A diferença com as gerações passadas é que, agora, o
protagonista da fantasia não é a criança. É a animação do desenho virtual, como
se a tecnologia "soubesse” por ela. A criança é relegada à condição de
mera espectadora. A fantasia não brota dela, resulta do aplicativo ou do
desenho animado ou filme projetado na TV e na internet.
Na missa de domingo vi duas crianças compartilhando um
smartphone, enquanto seus pais participavam da liturgia. Passaram todo o tempo
atentas ao homem-aranha arrasando seus adversários.
O que esperar de um adulto que, quando criança, divertia-se
com a violência virtual e passava horas praticando assassinatos via bonequinhos
eletrônicos? E de uma menina que, aos 4 ou 5 anos, se maquia como adulta, fala
como adulta, manifesta desejos de adulta, padecendo a esquizofrenia de ser
biologicamente infantil e psicologicamente "adulta”?
A puberdade, momento crítico para todos nós, é mais
angustiante para essa geração que não exauriu seu potencial de fantasias. O
medo do real é mais acentuado, assim como a dependência familiar, que mantém
jovens de 25 e 30 anos ao abrigo do lar paterno.
Essa insegurança frente ao real é a porta de entrada para a
vulnerabilidade às drogas. O traficante, graças a uma perversa intuição
profissional, oferece de graça sua mercadoria aos adolescentes, como se
advertisse: "Você já não pode sonhar com a própria cabeça. Mas não tema.
Há outro jeito de fugir da realidade e "viajar” legal. Só que agora
depende da química. Experimente isso”.
Preocupam-me também as crianças robotizadas que cumprem,
além da escola, agendas apertadíssimas, com aulas de idiomas, natação etc., sem
tempo para brincar com outras crianças e, assim, se educar nos códigos da
sociabilidade, como saber admitir seus próprios limites e reconhecer o direito
dos outros.
Talvez essa robotização explique um fenômeno tão comum nas
grandes cidades: adolescentes e jovens que, em ônibus e metrô, se fazem de
cegos ao ver, de pé, idosos, portadores de deficiência e mulheres grávidas, e
permanecem tranquilamente sentados, se lixando para a mais elementar educação.
Fonte: adital
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