Correu a notícia de que o papa Francisco pretende inserir
mulheres no Colégio Cardinalício. As reações foram as mais diversas. Para os
católicos conservadores ou tradicionalistas é o fim do mundo. Para os católicos
de mente aberta, sensíveis aos sinais dos tempos, uma resposta corajosa do papa
aos apelos de Deus.
Por José Lisboa Moreira de Oliveira
Em princípio a notícia não deveria causar surpresa, uma vez
que segundo o atual Direito Canônico (cân. 349) o Colégio de Cardeais tem três
funções básicas: 1) eleger o papa, ou seja, o bispo de Roma; 2) assessorar
colegialmente o papa, especialmente quando convocados para tratar de
determinadas questões; 3) assessorar o papa individualmente através de
determinados ofícios ligados principalmente ao cuidado da Igreja universal.
A maior dificuldade parece ser a questão da eleição do papa,
uma vez que, com o passar do tempo, esta tarefa foi sendo clericalizada. Os
cardeais são homens (varões) que devem ter pelo menos o sacramento da ordem no
grau do presbiterado (cân. 351). Como tais eles são considerados presbíteros da
Igreja de Roma, exceto os cardeais das Igrejas Orientais, que participam da
eleição do papa como titulares de suas sedes patriarcais (cân. 350 § 3). Mesmo
sendo bispos de outras Igrejas, os cardeais na condição de "presbíteros
romanos” participam da eleição do papa, mantendo-se assim o princípio de que o
bispo de Roma deve ser eleito por representantes da Igreja romana. Porém,
sabemos que essa pertença à Igreja de Roma é apenas formal ou fictícia, pois,
na verdade os cardeais são bispos de outras Igrejas. Essa praxe de dar a eles o
título de uma Igreja ou paróquia romana (cân. 350 § 1) é apenas uma medida que
visa formalizar uma pertença que não é real.
Se voltarmos às origens da Igreja, vamos ver que esse
impasse pode ser resolvido sem maiores problemas. Sabemos que na Igreja
primitiva a eleição dos bispos se dava através da intervenção direta do povo da
comunidade cristã local. Morto o bispo ou instituída uma Igreja local, o povo
(clero e leigos) se reunia, normalmente na Igreja catedral, para a eleição do
novo bispo. A coisa era tão séria que ninguém podia ser ordenado diácono,
presbítero ou bispo, sem que antes tivesse sido escolhido (eleito) pela
comunidade à qual ele ia servir. O concílio de Calcedônia (451 d. C.) decretou
que toda ordenação que não fosse precedida da eleição ou indicação do candidato
por parte do povo deveria ser considerada inválida. Sabemos de casos como o de
Santo Ambrósio (340-397 d. C.), aclamado pelo povo para ser bispo de Milão
(Itália), quando ainda era um simples catecúmeno que se preparava para ser
batizado. São Cipriano, bispo de Cartago, que viveu no III século d. C. no
norte da África, afirmava categoricamente que era vontade de Deus que o povo,
reunido em assembleia, escolhesse o seu ministro (diácono, presbítero e bispo).
São Cipriano dizia inclusive que, por direito divino, cabia também ao povo de
Deus destituir o ministro sacrílego ou indigno, deixando bem claro que a
escolha de um ministro ordenado que não contasse com a participação direta do
povo, era uma "escolha contra a vontade de Deus”.
Ora, existe um princípio da Tradição cristã que afirma ser
mais genuíno aquilo que está mais próximo e mais de acordo com as origens.
Assim sendo, se poderia usar esse princípio para justificar a presença de
mulheres no Colégio de Cardeais que elegem o bispo de Roma. Aliás, se poderia aproveitar
da oportunidade para rever as nomeações de bispos no mundo inteiro, envolvendo
mais o povo de Deus que se reúne numa Igreja local e que hoje tem o nome de
"diocese”. As mulheres cardeais seriam inseridas juridicamente na Igreja
de Roma e, enquanto tais, partícipes do conclave que elege o papa, na condição
de representantes da comunidade cristã romana. Quanto a isso o Direito Canônico
pode ser mudado sem maiores problemas. A não ser que se desse a elas algum
ministério ordenado, o que seria auspicioso. Mas para se chegar a tanto ainda
temos que fazer uma longa travessia, uma vez que numa Igreja machista e
andrógena o ministério ordenado para mulheres parece impossível ou até mesmo
uma grande heresia.
Superado esse obstáculo não haveria mais problemas, uma vez
que as outras duas funções do Colégio de Cardeais não apresentam dificuldades
jurídicas consistentes. Temos hoje na Igreja muitas mulheres competentes que
poderiam prestar excelente assessoria ao papa nos mais diversos campos. Não
vejo porque organismos da Cúria Romana, como o Pontifício Conselho para os
Leigos, o Pontifício Conselho para a Família, o Pontifício Conselho para a
Cultura e a Pontifícia Comissão "Justiça e Paz” tenham que ser presididos
por homens e por bispos. Os leigos e as leigas dariam conta tranquilamente de
funções como essas, mesmo lá dentro da Cúria Romana. Considero um verdadeiro
absurdo que, por exemplo, o Pontifício Conselho para a Família seja presidido
por um celibatário, alguém que nunca experimentou na própria carne as alegrias,
as esperanças e também as angústias da vida a dois e da responsabilidade de
educar filhos. Por isso, na maioria das vezes, os documentos e as normas que
são emanadas por esses Dicastérios da Cúria Romana perdem-se no abstracionismo
e no vazio: porque são elaborados por quem não experimenta e não vive a
realidade sobre a qual falam.
Também aqui o princípio da Tradição mencionado anteriormente
pode nos ajudar. Se voltarmos ao Novo Testamento, encontraremos mulheres, que
junto com os apóstolos, exerciam funções muito significativas nas comunidades
cristãs primitivas. Bastaria mencionar, por exemplo, o caso de Lídia que, pelo
contexto do texto, devia ser uma animadora de comunidade da Igreja de Filipos,
cidade importante da então Macedônia e que tinha status de colônia romana (At
16,11-40). Ao que tudo indica a casa (em grego: oíkos) de Lídia era a sede da
comunidade. E como não se faz menção a nenhum homem que presidia essa casa,
pode-se deduzir que, segundo o costume cristão da época, Lídia, enquanto a
senhora da casa, presidisse também essa comunidade que lá se reunia e rezava
(At 16,13). Pode-se chegar a pensar que, após ser batizada, Lídia tenha
permanecido líder dessa comunidade, presidindo inclusive a ceia do Senhor que
lá certamente era celebrada.
Há outro caso que nos ajuda a reforçar a certeza de que os
leigos ocupavam funções de destaque na Igreja nascente. Trata-se do casal
Priscila e Áquila, os quais, em Éfeso, se tornam os catequistas de Apolo (At
18,24-26), que se tornou depois um grande expoente da Igreja primitiva. Apolo
não era uma pessoa qualquer, mas alguém versado nas Sagradas Escrituras. No
entanto, é o casal Priscila e Áquila que expõe a Apolo "o Caminho de Deus”
(At 18,26). Convém notar que todas as vezes nas quais o autor dos Atos dos
Apóstolos faz referências a esse casal, o nome de Priscila é mencionado antes
daquele do marido Áquila. Considerando a cultura androcêntrica de então, se
pode crer que ela tinha uma função altamente importante na comunidade, a ponto
de seu nome ser nomeado por Lucas antes do nome do marido.
Podemos, então, concluir que uma possível inserção de
mulheres no Colégio Cardinalício é não só oportuna para os tempos atuais, mas
está em plena sintonia com o cristianismo das origens. Não há razões para se afirmar
que se trataria de uma heresia, de uma coisa que iria destoar do que há de mais
genuíno na Tradição cristã.
Ter mulheres assessorando diretamente o papa, ocupando
funções de presidência na Cúria Romana, com certeza ajudaria a combater a
esclerose eclesiástica que toma conta da cúpula da Igreja Católica. Mulheres no
Vaticano abririam muitas janelas e permitiriam que novos ares afastassem aquele
cheiro de mofo que toma conta de nossa Igreja. A condição, porém, é que sejam
chamadas para tais funções mulheres de mente e de coração aberto. Pois, há nos
círculos conservadores de nossa Igreja certas mulheres e certas teólogas que
introjetaram de tal forma o machismo, a ponto de se tornarem mais
tradicionalistas, mais retrógadas e mais autoritárias do que os homens. Eu
conheço algumas. E Deus salve a Igreja de criaturas assim.
Fonte: adital
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