Abre-se aí um leque de opções para a prostituição: todas as idades servem para consumo, todas as formas, de modo que aleijadas e vovós são tão queridas quanto pré-adolescentes, anãs e morbidamente gordas. Ninguém fica de fora dessa democracia. O requisito é o seguinte: propor-se a dar um tipo de prazer e cumprir com isso porque se aprimorou no treinamento para tal.
Por Paulo Ghiraldelli,
“Há vagas. Requisito: maior de 18 anos e experiência no
ramo”. É assim que o sustento de cada um que não é rico mostra sua cara. O
prato de comida diário é para quem já pagou algum prato de comida diário
fazendo o que pretende fazer. Experiência, exercício na função ou, de modo mais
apropriado, alguma performance. Ninguém
pode começar pelo começo em nossa sociedade.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no interior da ideia de
que o homem é construtor de sua própria humanidade, resolveu deixar de lado a
formulação de que o homem se autoproduz pelo trabalho (Marx) ou pela comunidade
de comunicação (Habermas) ou pela interação social (Dewey e outros
pragmatistas), e em troca afirmou que o homem se autoproduz pelo exercício. O
homem é homem em formação ou, melhor dizendo, em treinamento. O homem é o homem
que pratica sua prática. Sloterdijk diz: “prática é definida aqui como qualquer
operação que fornece ou melhora a qualificação do ator para a próxima
performance da mesma operação, se declarada como prática ou não”. Pode-se caracterizar o homem como “o ser
humano ético” ou “homo repetitivus, homo artista”. (1)
Sloterdijk deve ter lido placas de emprego ou ficado algum
tempo diante de “anúncios classificados” nos jornais. Quem é gente? Gente é
quem repete amanhã o que fez hoje de modo a fazer melhor. Até mesmo as
atividades humanas mais ligadas à criatividade e que, portanto, poderiam
parecer imunes ao exercício, à repetição, se fazem pela experiência em termos
de exercício e repetição de inúmeros procedimentos. É assim, por esse processo
que envolve um profundo ascetismo, como bem mapeou Nietzsche e a quem
Sloterdijk presta homenagem, que somos o que somos.
Essa tese de Sloterdijk pode nos ajudar a explicar muita
coisa. Uma delas, que ele próprio não explora: o ressurgimento da prostituição.
A liberação sexual dos anos sessenta desaguou em uma baixa
dos prostíbulos nos anos setenta em vários países. No Brasil, sem dúvida, os
anos oitenta chegaram a apontar para o que seria o fim da prostituição. Hoje,
ao contrário, convivemos com a explosão da ideia do “sexo por dinheiro”. Claro
que o filósofo britânico Roger Scruton (2) tem razão quando diz que a prostituição
está ligada à demanda por prazer sem o custo social e psíquico que envolve o
sexo com conhecidos, com parceiros etc. Em um mundo em que a realidade é dura,
fantasiar é algo que fazemos antes com o puro prazer que com o prazer puro.
Todavia, isso não basta para explicarmos a razão pela qual hoje os jovens de
classe média que podem ter a mulher que quiserem, voltam a procurar
prostitutas. Vivemos em um mundo bem diferente daquele dos anos cinquenta: a
virgem inexperiente não é mais atrativa. Pois o anúncio na vitrine é “Há vagas.
Requisito: maior de 18 anos e experiência no ramo”.
Não é a moral que evoluiu, e isso nós podemos sentir na fala
do jovem que admite a mulher “para casar” aquela que mentiu para ele dizendo só
fez sexo com dois namorados. Ou ainda na ideia do jovem que chama de “vadia”
aquela que faz sexo no primeiro encontro. O que mudou é que talvez agora, e por
isso Sloterdijk toma como um tipo de caracterização transhistórica do homem, a
prática enquanto exercício tenha adquirido uma universalidade e intensidade
maiores, saltando aos olhos.
O homem é homem porque se faz na prática, no exercício que
mostra performances melhores. A mulher é desejada se prova que se exercitou na
arte do sexo e que pode dar prazer sem cobrar nada que não seja o dinheiro. O
prazer não é fazer a mulher gozar (como a mulher diz querer, hoje em dia), o
prazer é poder gozar com quem, sinta ou não alguma coisa, faz gozar, tem boa
performance sexual. Os jovens não procuram mulheres mais velhas e experientes,
eles procuram a profissional do sexo porque ela tem algo interno à experiência:
o exercício. Elas são mulheres da repetição. São mulheres mesmo, de verdade.
Como o Homem de Sloterdijk se mostra o verdadeiro.
O sexo já vinha ganhando aspectos médicos, higiênicos, e
depois se associou ao visual do fitness. Agora, ele é o melhor se é o
equivalente da prática da academia de “malhação”. Gasto de energia em função de
uma cinestesia relaxante – isto é o sexo. De manhã, paga-se o personal
training, à noite, a sexual personal training, em outras palavras, a puta. Não
importa a idade, mas a experiência de quem faz o exercício e adquire então
carteira de habilitação para oferecer serviços. Para certos esportes, gente
muito jovem mostra a melhor performance. É como no anúncio: mesmo para começar,
é necessário experiência.
Abre-se aí um leque de opções para a prostituição: todas as
idades servem para consumo, todas as formas, de modo que aleijadas e vovós são
tão queridas quanto pré-adolescentes, anãs e morbidamente gordas. Ninguém fica
de fora dessa democracia. O requisito é o seguinte: propor-se a dar um tipo de
prazer e cumprir com isso porque se aprimorou no treinamento para tal.
Ninguém mais é o que qualquer “psicologia da intenção” possa
dizer. A melhor psicologia é a mais behaviorista possível. Somos o que nossos
corpos em comportamento fazem e dizem. Somos mais bem entendidos assim porque
decerto somos já isso mesmo. Subjetividades rasas, ontologicamente existentes
ou não, isso não importa. Importa que elas se apresentem por meio de
comportamentos e que, portanto, sejam de fato rasas enquanto o que se mostra
pelo comportamento corporal. Ninguém quer saber o que pensa um acrobata, quer
dele as acrobacias. Mesmo nas atividades em que o pensar é a própria acrobacia,
é assim que ocorre. Que o pensar se mostre, então, como o que pode ser como o
entretenimento: a dança ou o futebol se mostrando devem ser o modelo do livro
que chega à livraria ou a conferência universitária fora da universidade – ou
mesmo dentro.
Não à toa a disciplina Educação Física foi jogada às traças
na escola. Ninguém mais precisa fazer exercício em uma determinada hora se a
vida já é um exercício constante. Toda hora é hora de educação física. (2) Da
puta ao cientista, que se apresentem performances. Eu as consumo e também eu me
ponho nisso para que outros consumam o que mostro. Por isso essa sociedade dita
“de consumo” não é só uma sociedade de produtos materiais que viram mercadoria,
mas também de serviços que viram mercadoria. Serviços que se mostram. Serviços que
são produtos que já surgem fora das caixas. Produtos visíveis. Então, uma tal
sociedade do consumo é também, para ficarmos nos jargões, uma “sociedade do
espetáculo”. Há um mundo de voyeurismo se pondo importante. O êxito da
pornografia na Internet e o sucesso do reality show na TV podem nos dizer bem
isso.
© 2012 Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, cartunista e
professor da UFRRJ
1. [2009]
Sloterdijk. P. You must change your life. New York: Polity Press, 2013, pp. 4-1
2. Scruton, R. Sexual desire. London: Continuum, 2006.
3. Atentei para isso em um estudo anterior, publicado em
Ghiraldelli Jr, P. O corpo – filosofia e educação. São Paulo: Ática, 2007.
Fonte: www. filosofia.pro.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário