O que chama a atenção é a falta de discussão com a população. Trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente, muito violento. Esses processos das remoções têm tido um impacto muito grande nas relações sociais.
Entrevista especial com Sônia Fleury
A reestruturação urbana do Rio de Janeiro irá remover “cerca
de 30 mil pessoas, dando prioridade para investimentos empresariais e
negócios”, disse Sônia Fleury à IHU On-Line. Para ela, “trata-se de um processo
decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente muito
violento”.
Ao comentar os dados do documento Megaeventos e violação dos
direitos humanos no Rio de Janeiro, publicado recentemente, Sônia assinala que
haver uma “concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade, que não são
exatamente nas quais as pessoas estão morando. De certa forma, há um
deslocamento dessa população pobre para essas áreas mais longínquas das
cidades, o que representa perda em termos de transporte, horas e gastos para
essa população chegar aos locais de trabalho”.
Para a realização dessa reestruturação, assegura na
entrevista realizada por telefone, foi criado um “projeto de segurança pública
e de investimento nas favelas, especialmente nessas que têm uma interface maior
com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs”. A cientista política
acompanha a ocupação militar nas favelas e enfatiza que ela não está
“acompanhada de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania”.
E esclarece: “A suposta integração da população à cidade, na
medida em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do
comércio, ou seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços
formalizados”.
Sônia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, e doutora em Ciência Política pela mesma universidade.
Atualmente coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública, da Fundação
Getúlio Vargas – FGV.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as novidades apontadas no documento
"Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro"?
Sônia Fleury – A importância do documento é agregar várias
informações que a cidade não está tendo conhecimento, porque elas não têm sido
discutidas na mídia, a prefeitura não presta contas, e porque não há um
processo transparente e participativo. Então, a grande importância desse
relatório é mostrar como estão sendo feitas essas remoções e como esse tipo de
processo de reurbanização tem violado os direitos dos moradores e direitos em
geral, tais como os de participação, de informação e de propriedade.
IHU On-Line – Os dados do Comitê Popular da Copa e das
Olimpíadas revelam que o número de atingidos chega próximo de 30 mil pessoas.
Como está acontecendo o processo de remoção? Em que regiões há mais remoção e
para onde as pessoas foram removidas?
Sônia Fleury – Estão para ser removidas cerca de 30 mil
pessoas, sempre dando prioridade para investimentos empresariais, negócios, com
prejuízo para os próprios atletas, que estão tendo de deixar o país porque foi
fechada a Oficina do Delamari. Então, não se trata de uma lógica que beneficia
o esporte, a cidadania; é muito na esteira dos grandes empreendimentos
imobiliários.
Há todo um circuito que vai nessa linha do BRT, do transporte
rápido para a zona oeste, na Barra da Tijuca, e que tem envolvido várias
comunidades. Há contralaudos: as pessoas têm tentado resistir apresentando
outros laudos técnicos que a prefeitura não necessariamente aceita. É um
processo muito autoritário.
O que chama a atenção é a falta de discussão com a
população. Trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não
transparente e simbolicamente, muito violento. Os técnicos marcam com as
iniciais da Secretaria Municipal de Habitação as casas que terão de ser
removidas. Os órgãos públicos assim como alguns vereadores e o Ministério
Público têm tentado defender as populações de situações mais arbitrárias, mas
não têm sido muito efetivos.
IHU On-Line – A senhora mencionou recentemente haver um desrespeito
ao Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro por conta dos interesses
imobiliários. Pode nos explicar em que sentido este Plano Diretor é alterado?
Como são planejadas as reestruturações urbanas e como as remoções impactam no
planejamento urbano das cidades?
Sônia Fleury – A Constituição havia previsto os direitos à
moradia, nos itens dos Capítulo 182 e 183. Mais tarde, o Estatuto da Cidade, de
2001, reforçou esses itens, tomando o Plano Diretor como sendo o principal
instrumento de um planejamento participativo da cidade, o que não está
acontecendo. Ou seja, as decisões estão sendo tomadas sem nenhuma participação
da sociedade, como estava previsto na composição de Planos Diretores. A ideia
era de que a sociedade fosse ouvida, que fossem discutidas alternativas.
Há várias manifestações de institutos de arquitetos e de
engenharia discutindo quais são as soluções não necessariamente para as
remoções, mas, por exemplo, se se decide fazer um píer em “Y”, vários
urbanistas, arquitetos e institutos mostraram que isso será muito prejudicial
para a cidade, porque os transatlânticos que vão aportar aí nesse local vão
aportar a vista da baía. Eles apresentaram uma proposta alternativa, mas ela
não foi levada em consideração. Não há um processo a ser seguido e não estou falando
só das remoções, mas de todas as decisões da cidade.
IHU On-Line – Nesse processo de reestruturação da cidade, há
a possibilidade de se criar novas favelas?
Sônia Fleury – O dossiê mostra que há uma concentração das
obras do PAC em certas áreas da cidade que não são exatamente nas quais as
pessoas estão morando. De certa forma, há um deslocamento dessa população pobre
para essas áreas mais longínquas das cidades, o que representa perda em termos
de transporte, horas e gastos para essa população chegar aos locais de
trabalho.
Em alguns lugares estão sendo feitas obras do PAC dentro das
próprias comunidades, mas na zona oeste há um deslocamento de populações para
áreas mais longínquas. Está ocorrendo uma limpeza urbana, às vezes de forma
totalmente injustificada. Por exemplo, no Morro da Providência, onde tem o
projeto do Porto Maravilha, algumas famílias foram removidas para um
teleférico, mas outras foram removidas para áreas que têm casas sólidas, áreas
que não possuem nenhum risco.
IHU On-Line – Como acontece a distribuição dos recursos?
Existe algum critério? Em que regiões do Rio de Janeiro se concentram os
maiores investimentos da Copa do Mundo?
Sônia Fleury – Tanto na zona oeste como na área do porto.
Nesta última, há investimentos de alto vulto que melhoram a cidade em vários
aspectos, tal como a área central, que era deteriorada. Não há a menor dúvida
de que é a recuperação de uma área importante. Agora, que tipo de recuperação
está se discutindo? Ali é uma área que tem história. Vai se preservar essa
história? Por exemplo, ali há a Pedra do Sal, onde surgiu o samba. Vamos cortar
essa história como foi feito com a urbanização na reparação do porto na cidade
de Buenos Aires, que não tem nenhuma conexão com o resto da cidade e se criou
um bairro de milionários?
A nossa ideia era de que, se se pudesse ter uma
reurbanização, então que se preservasse essa característica. Não parece que
isso vai acontecer. A área de terras públicas, como mostra o dossiê, será
ocupada com grandes apartamentos, enquanto poderia ter sido usada para
reassentar populações de favelas que vivem em áreas de risco. Mas, ao
contrário, é uma área pública que está sendo cedida para investimentos
empresariais. Grande parte daquelas terras do centro, das áreas onde irão ser
construídos investimentos imobiliários, são áreas que o governo federal
repassou para a prefeitura e agora serão vendidas.
IHU On-Line – Além dos problemas de habitação, quais são os
principais impactos sociais das obras da Copa para as cidades que sediarão os
jogos?
Sônia Fleury – Para a realização disso, criou-se um projeto
de segurança pública e de investimento nas favelas, especialmente nessas que
têm uma interface maior com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs.
Estou acompanhando esse processo em algumas favelas e o que se vê é que há um
projeto de tomada do território pela Polícia Militar, mas isso não vem
acompanhado de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania.
Então, a suposta integração da população à cidade, na medida
em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do comércio, ou
seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços formalizados.
A população não está sendo preservada, ela não pagava quase
nada por esse serviço, porque usavam “gatos” e, de repente, tem acesso a esses
serviços sem ter os direitos correspondentes. O saneamento é precário, as
escolas e os serviços de saúde são precários e não há um projeto social
correspondente ao mesmo investimento que está tendo no projeto de segurança.
Esses processos das remoções têm tido um impacto muito
grande nas relações sociais. Por exemplo, ao tratar cada problema de realocação
de famílias ou de qualquer outro tipo como um problema individual de cada
morador, esses órgãos, de certa forma, estão desmontando o que foi o capital
social dessas comunidades, ou seja, a capacidade delas em se organizar e
resistir ao clientelismo, às remoções anteriores, ao tráfico. Não sei se irão
resistir a esse processo que está acontecendo agora, porque ele está minando o
principal capital dessas comunidades, ou seja, a organização comunitária. De
certa forma, o governo está desmontando isso.
Fonte: Ihu
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