"Onde existe, a gangue
representa – para alguns jovens – um modo de vida, um modo de existência e
reprodução social. É uma dinâmica que se estabelece num horizonte de destinos
de masculinidade hegemônica... A mulher fica subsumida, comporta-se de modo
semelhante, embora com uma contradição, porque é um sujeito portador de outra
dimensão sexual e, portanto, muitas vezes, as mulheres são objeto de estupro,
de alguma forma tolerado."
Mauro Cerbino é doutor em Antropologia Urbana pela
Universitat Rovira i Virgili. Coordena o Programa de Estudos Internacionais e
Comunicação, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Equador, e
dirige a revista Iconos, que a própria faculdade edita. Há anos, pesquisa
assuntos sobre organizações juvenis de rua, juventudes e violência. Como
diretor do Observatório dos Meios de Comunicação, além do discurso informativo
que se constrói sobre este fenômeno, estuda a relação entre governos e meios de
comunicação e, neste marco, a midiatização da política.
Sua pesquisa se configurou nos cursos e seminários
conferidos em diversas universidades da América Latina e Europa e em numerosos
livros e artigos como “El lugar de la violência” (Taurus-Flacso), “Más allá de
las pandillas, violencias, juventudes y resistencias en un mundo globalizado”
(Flacso) e “Jóvenes en la calle, cultura y conflicto” (Anthropos), entre
outros.
É italiano, mas desenvolveu sua principal trajetória
acadêmica no Equador. Aí, dedicou-se a pesquisar a origem das gangues juvenis,
as motivações para a sua formação e as relações que estabelecem com o Estado.
Aqui, esmiúça suas conclusões e adverte sobre o papel dos meios de comunicação.
A entrevista é de Natalia Aruguete, publicada no jornal
Página/12, 20-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que representa o
lugar da gangue para jovens que estão desprovidos de todos os tipos de
direitos?
Onde existe, a gangue representa – para alguns jovens – um
modo de vida, um modo de existência e reprodução social. Além disso, é uma
forma de se proteger de uma insegurança que é prévia a estas organizações. Essa
insegurança se deve ao fato de que alguns bairros não são aptos para a vida,
porque foram abandonados pelo mundo adulto, que decidiu ter um projeto de vida
que não leva em conta a construção do laço social, mas se conforma a viver
fechado – tanto no lar, como no trabalho – ou, inclusive, a levantar grades na
precária construção de seu lar, com o desejo de ter a sensação de estar seguro.
Nesses bairros “dormitório” é muito difícil que a vida social seja possível:
não há pessoas nas ruas porque o bairro não tem lugares para a diversão, o
espairecimento, a reprodução social. E os jovens e adolescentes precisam de
maiores condições de sociabilidade, desse trânsito pelo espaço público, uma
vida social mais ampla do que aquela que os adultos gostariam de ter. Em muitas
cidades latino-americanas, os jovens buscam um modo para se apropriar – ou
reapropriar-se antropologicamente – destes espaços.
Você estabelece uma
relação entre o imperativo da violência e o respeito. Que significado tem o
respeito, em uma organização violenta?
O respeito é o que estrutura as relações, principalmente, as
relações intra e inter gangue. É homem de respeito aquele que se faz respeitar
por aquele que está fora da gangue, em outra gangue, ou por outros jovens que
podem estar ao redor. Fazer-se respeitar supõe que o outro tenha medo de você,
que entenda e possa baixar a cabeça quando um jovem passa por aí. Será uma
pessoa de respeito aquele que conseguir causar medo nos outros. É uma dinâmica
de olhares para baixo, de submissão, de interiorização, de superioridade de um
para com o outro. Estas questões, que saem dos relatos dos garotos, surgem da
falta de condições que permitam a reprodução social. A condição de respeito
substitui estes vazios, porque constrói o reconhecimento. É o oposto ao
respeito da forma como o concebemos, a partir da educação cívica.
É o oposto porque a
única possibilidade de respeito passa pela violência?
E pelo medo. O respeito é um dos elementos presentes na
modernidade, uma condição que permite que nos reconheçamos e possamos estar
juntos. Neste caso, baseia-se no medo e não porque seja experimentada a
necessidade de que para estar juntos precisamos nos respeitar. São sujeitos que
sofreram uma falta de respeito.
Ao analisar as
gangues juvenis, por que você inclui uma “dimensão coletiva da violência”?
É uma dinâmica que se estabelece num horizonte de destinos
de masculinidade hegemônica, outro elemento do horizonte simbólico discursivo
que dá sentido à ação da gangue, junto com o respeito. Esse horizonte da
masculinidade hegemônica é o que os adolescentes e jovens, sobretudo de certos
setores populares, vão aprendendo em suas famílias e no colégio, assim como em
outros espaços onde permanentemente estão expostos. Para ser homem é preciso
ser homens de respeito. Torna-se homem a partir do momento em que se
inferioriza o outro. A masculinidade é um discurso potentíssimo, que não apenas
tem a ver com a questão do varão, mas que sustenta uma concepção das relações
sociais. Nós a chamamos de hegemônica porque está presente em muitos estratos.
E a mulher?
A mulher fica subsumida, comporta-se de modo semelhante,
embora com uma contradição, porque é um sujeito portador de outra dimensão
sexual e, portanto, muitas vezes, as mulheres são objeto de estupro, de alguma
forma tolerado. Entretanto, ao mesmo tempo, as mulheres se comportam como os
homens: podem ser protagonistas das mesmas cenas de violência das quais os
homens são portadores ou protagonistas. Por terem que se afirmar como parte da
gangue, elas se comportam de modo semelhante aos homens. Aí há outro aspecto
sexual que é bastante sórdido.
Qual?
Há estupros; as mulheres são mulheres do líder..., situações
deste tipo. Porém, as mulheres reproduzem o mesmo discurso que os varões, que,
além disso, é sustentado pelas mães. Lembro que a mãe de um dos garotos me
disse: “Eu estranhei muito quando me disseram que meu filho era dos... porque
ele não sabe brigar”. Essa ideia da necessidade de saber brigar provém da mãe e
não somente do pai.
Que análise você faz
a respeito da lógica das políticas públicas, do papel do Estado, frente à
violência juvenil?
Em primeiro lugar, não há política pública de juventude, ao
menos no Equador. E não houve política pública de jovens migrantes na Espanha.
No caso da Espanha, sob a raiz de uma norma de reagrupação familiar, os
adolescentes e os jovens do Equador iam se reagrupar com seus pais, e isso era
tudo em termos de marco normativo. Há normas que facilitam que as famílias se
reagrupem, mas, em seguida, o Estado é incapaz de pensar o que fazer com estes
jovens. Pode oferecer-lhes uma possibilidade de entrar no colégio, mas, ali,
encontram uma montanha de problemas e discriminações. Não há uma política de
integração.
Quais consequências,
essa ausência de política de integração, acarretam?
O prevalecimento das relações cara a cara, altamente
discriminatórias. A reprodução de todo tipo de discriminação e humilhação.
Portanto, muitos destes jovens – também na Espanha, onde se esperaria que
estivessem em outras condições – talvez, estejam nas mesmas ou piores condições
que deixaram no Equador. E quando sabem que existe uma organização que se
reúne, que fala o mesmo idioma e que, além disso, fala forte, não fala
“suavezinho”...
O que significa “não
falar ‘suavezinho’”?
Significa que não fala submisso como a mãe, que já assumiu a
inferioridade porque tem um projeto de vida diferente, uma estratégia de vida
diferente que a permite processar a submissão. Eles não têm um projeto de vida,
já que muitas vezes foram se agrupando sem ter o desejo de concebê-lo. Nesses
espaços, encontram novamente a reprodução, a proteção, o sentido da vida, o
gozo, a diversão.
Na relação
gangues-Estado, como você percebe a responsabilidade legal que o Estado
deposita nestes jovens e adolescentes?
Retomo a ideia de que não há uma política pública. No
Equador, há uma lei de juventude, mas nunca se efetivou regulamentos e
dispositivos para a sua aplicação. Portanto, não há uma política pública para a
prevenção de um fenômeno como este. O que o Estado faz para prevenir o
bullying? (N. do R: o bullying é um ato de conduta agressiva para,
deliberadamente, causar dano a outra pessoa, de maneira física ou psicológica.)
É uma coisa absurda em nossos colégios, há jovens que cometeram suicídio em razão
de reiterados assédios ou linchamentos. Aquele que aguenta é o jovem que não
quer entrar na dinâmica do mais forte, estando à margem disso, converte-se no
objeto daqueles que sempre almejam ser os mais fortes, que necessitam
identificar alguém como frágil. E o que o Estado faz? A maior parte das
gangues, no Equador ou em outras partes do mundo, nasce nos colégios. O sistema
educativo não apenas é incapaz de gerar condições para uma maior circulação,
uma melhor articulação da população, como também se transforma no oposto: faz
com que os jovens se sintam continuamente humilhados, muitas vezes, o professor
contribui para isso.
Como?
No Equador, nós temos vários exemplos de professores que
abonam esse horizonte de masculinidade hegemônica. Não há uma política pública,
exceto normativa repressiva, uma ação policial e punitiva terrível... A
inconsistência do Estado de bem-estar, muitas vezes, vem compensada pela
condição abusiva da polícia, que é a única cara visível de um Estado
inconsistente. Estes jovens populares se sentem atraídos em ser policiais,
porque isso faria com que se mostrassem fortes, porém, por sua vez, borram-se
de medo diante da polícia: possuem esse amor-ódio. Eu poderia contar histórias
dos mais obstinados líderes que me chamavam, à noite, para que lhes dessem uma
mão, pois um policial estava levando-os. Choravam como crianças.
Em seu livro “El
lugar de la violencia”, você destaca que os meios de comunicação são
“reprodutores de um discurso maior”. Que papel cumprem os meios de comunicação
no relato deste tipo de violência? Acredita que “reprodutores” é a expressão
mais adequada?
Claro que os meios de comunicação não são apenas
reprodutores, também, são os que produzem o discurso maior, que pretende ser
objetivo e inquestionável. Tanto na Espanha como no Equador, a única visão que
o comum das pessoas leigas possui é a visão dos meios de comunicação... Os
meios de comunicação se encarregam de representar simbolicamente e alimentar o
imaginário dos cidadãos, fazendo o “trabalho sujo” por conta do Estado.
(sorri). As violências grupais juvenis não podem ser assimiladas à violência
criminal das gangues organizadas..., não, ao menos, em um primeiro momento,
depois, algumas destas gangues podem se transformar em outra coisa, como ser
capturadas por gangues organizadas, mas esse é outro fenômeno.
Insisto com a
pergunta, os meios de comunicação apenas reproduzem esse discurso ou disputam
poder simbólico com outros atores sociais?
Os meios de comunicação trabalham diretamente com a
constituição da opinião pública, são alimentadores dos funcionários, aqueles
que dão as chaves interpretativas da realidade. Encarregam-se de sustentar a
tese de que estes grupos são os que se desviaram da norma... Encarregam-se de
desresponsabilizar o Estado e dizer: “não, o que ocorre é que os jovens são
assim, naturalmente violentos”. Essencializam a condição juvenil, e com isso
poupam um grande trabalho ao Estado.
Como?
Eles conseguem fazer com que a opinião pública não veja o
Estado como um dos maiores responsáveis, e também ao conjunto da sociedade, por
não questioná-lo, por ser passiva frente a estes assuntos. Efetivamente,
insensibilizam a opinião pública, já que por esse processo de naturalização
parece óbvio que os jovens atuam do modo que atuam. Contribuem para
invisibilizar as condições que tornam possível esse fenômeno. Não
contextualizam, não historicizam, não fazem uma investigação com fontes
primárias, mas recorrem ao “monofontismo” (usar uma única fonte de informação)
da polícia, tribunais de justiça, atores que também fazem o trabalho sujo por
conta do Estado.
O que é que os meios
de comunicação encobrem, a partir de uma “notícia dramatizada” (onde há bons e maus,
ganhadores e perdedores, como num conto), quando fazem a cobertura deste tipo
de fenômeno?
Cobrem com a objetividade dos fatos... Isso não existe. E
encobrem as condições de possibilidade da existência deste fenômeno. Tornam os
jovens os únicos responsáveis de sua ação, quando evidentemente a
responsabilidade é, no mínimo, compartilhada. Além disso, contribuem – e isso é
o pior – para piorar as coisas, pois apresentam estes como sujeitos
descartáveis.
Em seu livro, você
sustenta que os meios de comunicação “não possuem agenda própria” e relacionou
isto com a perspectiva daqueles especialistas que olham os meios de comunicação
como “atores políticos”. No contexto atual, latino-americano, onde se nota uma
relação conflitiva entre meios de comunicação e governos, como se constrói essa
agenda sobre a violência juvenil, a partir dos meios de comunicação que já não
se aliam tão claramente com a palavra do Estado?
Agora que você apresenta isso, ocorre-me pensar que, há mais
de cinco anos, os meios de comunicação no Equador já não se ocupam deste
fenômeno. Ou o fenômeno desapareceu ou perdeu o interesse, pois os meios de
comunicação já não possuem no Estado, nem no governo, uma fonte para fazer o
trabalho sujo.
No entanto, dependem
exclusivamente dessa fonte para fazer o “trabalho sujo”?
Sim, porque dependem da polícia. Em Madri, tive uma contenda
com um repórter do jornal El País porque ele queria se desresponsabilizar do
que esse jornal tinha escrito sobre os Latin Kings, dizendo que no fundo eles
apenas reproduziam a polícia e que, em última instância, o problema estava na
fonte. Você se dá conta da barbaridade que ele dizia? Um jornalista pode
afirmar que o problema está na fonte e não nele? A primeira coisa que me ocorre
lhe dizer é: “muda de fonte”, “diversifica”. Havia um policial que lhe disse:
“Eu sou fonte, mas você está escrevendo a nota”. Foi uma cena emblemática. Às
vezes, os meios de comunicação servem para sustentar algum interesse da parte
de um partido político, que aproveita essa representação midiática da violência
juvenil para justificar a “necessidade” de uma ação repressiva. No Equador,
existe uma discussão sobre a redução da maioridade penal para os 16 anos.
Precisam preparar a opinião pública para assimilá-la e, em seguida, justificar certo
tipo de legislação, o aumento de guardas particulares.
Por que estudar os
Latin Kings? Que traços os faziam interessantes para você?
Que pergunta boa! Esta organização nasceu nos anos 1940, em
Chicago, formada por imigrantes, principalmente, porto-riquenhos, cubanos e
mexicanos. A partir dos anos 1980, começam a se definir como uma nação. Essa
definição de nação sempre me atraiu muito.
Por quê?
Após refletir muito, comecei a ver que efetivamente era uma
organização, que possuía tal envergadura na quantidade de membros e que ia
configurando uma nação dentro de outra, uma nação no lugar de outra. Isto é o
que (Erving) Goffman maravilhosamente define como a transformação do estigma em
emblema, quando fala da carreira do criminoso. Estes grupos são objetos de
constante humilhação e estigmatização. São tidos como pessoas desadaptadas e é
provável que acabem realizando isto do modo mais espetacular possível. É como
se dissessem: “Se o outro me condena a ser criminoso, serei o melhor criminoso
possível”. Então, o estigma de ser latinos se converte no emblema de ser
latinos, mas, reis. Há coroas e há superioridades e beneficência. Essa coisa da
nação me chamava muito a atenção, pois todas as gangues possuem um nome, mas
eles se chamavam nação.
Quais elementos
faziam deles uma nação?
Eles têm uma Constituição, e possuem elementos que criam uma
nação, talvez, não o idioma, mas, sim, uma regra, um vocabulário... Dois reis
que não se conhecem, reconhecem-se pelo modo como atuam ou por um gesto que os
tornam reconhecidos. Eu estive muito perto deles. Uma vez, em Madri, ao final
de uma conversa e vendo que compartilhávamos alguns saberes, esse garoto me
perguntou: “Mas, você que chapa tem? Que King é?”. É claro que eu não tenho
nenhuma (chapa), mas sabia muito em razão da minha pesquisa. Contudo, eles se
reconhecem, possuem um universo simbólico compartilhado, algo que tem a ver com
o linguístico, o gestual. Compartilham minimamente um território que se
translocaliza. Outro elemento que me atraia muito é o caráter transnacional:
são uma nação, mas são transnacionais. Eles dizem que começa a existir a nação
quando se coloca a bandeira. Eles têm o ato de constituição da nação no lugar
em que se coloca a bandeira. Terão esta data para recordá-la, da mesma forma
como são recordados os acontecimentos que fundam a nação. Era tão potente essa
nação, com uma Constituição, manifestos, propósitos e leis, que era capaz de se
refundar cada vez que fosse necessário. Não eram as pequenas gangues de 20 ou
25 pessoas, como as estudadas há muitos anos. Há pessoas que hoje possuem 40
anos e continuam sendo Latin King... porque eles dizem que um rei é para
sempre, embora já não sejam um King.
Fonte: IHu
Nenhum comentário:
Postar um comentário