Mesmo no amor, a
distância permanece. O outro é um mistério e nós somos um mistério para nós
mesmos. O outro deve trazer o que eu não espero. Não devemos
instrumentalizá-lo, esperando que ele traga o que esperamos. Aí é que está a
riqueza da relação.
O Prof. Dr. André Wenin, durante a 10ª programação de Páscoa
do IHU - Ética, Arte e Transcendência, proferiu uma palestra sobre o feminino
no livro do Gênesis.
Para fazer sua análise, o professor se baseou nos versículos
de 18 a 25 do capítulo 2 do livro do Gênesis, que falam sobre como Deus criou a
mulher para fazer companhia ao homem.
Wenin inicia sua fala dizendo que não considera adequado
falar na criação da mulher, de Eva, pois isso deixa supor que Adão, o macho,
surgiu antes dela. “Meu objetivo é mostrar, ao fazer a releitura deste trecho, que
não foi isso que aconteceu”, propõe.
O versículo 18 (Então o Senhor Deus declarou: “Não é bom que
o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda”),
segundo Wenin, traz a constatação do personagem divino de que algo não está certo,
que seria o abandono à solidão. “A vida humana é, por definição, relacional. Da
concepção à morte somos seres de relações”, argumenta o professor. Então, Deus
providencia um socorro: a companhia face a face. Na tradução apresentada pelo
biblista na palestra, havia a expressão “face a face”, muito importante para
compreender justamente a relação de igualdade entre homem e mulher.
Wenin esclarece que esse ser humano criado inicialmente por
Deus não era um homem macho. Adão seria um humano no sentido genérico,
indiferenciado, algo como um andrógeno, para citar a mitologia grega.
E aqui entra o outro trecho destacado pelo professor, que
seriam os versículos 21 e 22:
“Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e,
enquanto este dormia, tirou-lhe parte de um dos lados, fechando o lugar com
carne. Com este lado que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e
a levou até ele”.
O primeiro destaque sobre essa passagem é em relação ao
“sono profundo”, que pode ser entendido como um momento de perda de
consciência, adormecimento, fazendo com que esse humano não saiba o que Deus
fará com ele. “Nenhum humano sabe de suas origens, seu fundamento. Essa é uma
questão antropológica importante. Nenhum humano domina seu próprio começo”,
defende.
Em seguida, continua o professor, Deus se fez cirurgião, e
fechou a ferida da carne aberta para tirar um lado do homem. “Aqui temos uma
falta, pois foi tirado um pedaço do humano – e a cicatriz mostra isso. Estar em
uma relação pressupõe uma perda. Cada um será um lado, uma parte. Toda relação
humana é afetada por essa perda. No fundo, o outro é a parte que não tenho, que
não sou. Ele me lembra que não sou tudo. Se não consentir com essa perda, não
há uma relação plenamente estabelecida. É na relação com o outro que o ser
humano admite seus limites”, explica.
André Wenin vai adiante na sua interpretação ao ler com o
público o versículo 23:
Disse então o homem: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e
carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada”,
esclarecendo que os termos homem (ish) e mulher (ishah) formam um jogo de
palavras no hebraico.
Segundo ele, no Gênesis, o homem, nesse momento, não se
dirige à mulher, apenas a toma como sua, falando sobre ela na terceira pessoa.
Ele sequer menciona a ação de Deus, pois ignora o que aconteceu no seu sono.
“Ele acredita saber quem é a mulher, mais isso é só no Antigo Testamento”,
brinca, rindo. E continua: “O homem não a trata como sujeito, mas se refere a
ela como sendo dele, pois foi tirada dele, de algo que falta nele. É como se
ele dissesse ‘sou eu fora de mim’. Como se a alteridade não fosse constitutiva
da mulher”.
O importante, destaca o exegeta, é entender que homem e
mulher são tomados do ser humano. Cada um é um lado, uma parte. Mas aos olhos
do homem, a mulher é tomada dele, que se coloca no centro, retomando sempre a
mulher como seu bem. Ele dá a impressão de que deseja controlar o que lhe
escapa, a estranheza da situação. “Na verdade ele tenta preencher uma dupla
falta: do que lhe foi tirado e da ausência de conhecimento sobre como isso foi
feito”, explica, acrescentando que o ser humano tem medo da diferença e que a
falta e a alteridade sempre trazem insegurança e são difíceis de lidar.
O próximo versículo analisado é o de número 24:
Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua
mulher, e eles se tornarão uma só carne.
Essa afirmação, na concepção de Wenin, é a tentativa do
homem em preencher uma brecha para superar sua angústia diante do desconhecido.
“Daí inventamos a alma gêmea. Quando nos apaixonamos, achamos que o outro
preenche nossas faltas. Na verdade, o que amamos é a sensação de não sentir
mais falta de nada”. Segundo esse pensamento, deixar o pai e a mãe representa
deixar o mundo conhecido e tranquilo para se unir a alguém que escapa do seu
mundo, mesmo que a primeira impressão não tenha sido essa.
A partir da concepção de “carne”, em hebraico, como pessoa
única e singular, o que pressupõe fragilidade e vulnerabilidade, Wenin
acrescenta ainda que se o humano decide se unir a uma mulher, ele está
assumindo sua vulnerabilidade e sua singularidade.
O último trecho destacado na palestra foi o versículo 25:
O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha.
“Harmonia perfeita? Não acreditem nisso”, provoca o
professor, que explica que eles não sentiam vergonha, pois não se viam na sua
diferença. Ainda estavam lado a lado, mas não face a face.
E Wenin encerrou sua fala com a seguinte reflexão: “Mesmo no
amor, a distância permanece. O outro é um mistério e nós somos um mistério para
nós mesmos. O outro deve trazer o que eu não espero. Não devemos instrumentalizá-lo,
esperando que ele traga o que esperamos. Aí é que está a riqueza da relação”.
Fonte: Ihu
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