Na manhã da quinta-feira (30) aconteceram as palestras “Tráfico de seres humanos para fins de exploração
sexual: realidade no Brasil” – proferida pela Ir. Roseli Consoli, integrante da
Rede Talitakun e da Rede “Um Grito pela Vida” – Rede Brasileira de Religiosas
contra o tráfico de pessoas, e “Tráfico de pessoas: lugar teológico, clamor
ético, missão da Igreja”, proferida pelo Dr. Elio Gasda - Doutor em Teologia e
Professor da Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia.
Reproduzimos aqui o artigo que elaborou para o Jornal “O
Grito Mulher” com motivo deste evento comemorativo dos XXX anos da Pastoral da
Mulher de BH
TRÁFICO DE PESSOAS: OLHAR DA FÉ E EXIGENCIAS ÉTICAS
Élio Estanislau Gasda
O tráfico de pessoas é um espelho das mazelas do capitalismo
global e está conectado aos mecanismos globais derivados de uma estrutura
política e econômica injusta e violenta. Atinge cerca de 2,5 milhões de
vítimas, movimentando, aproximadamente, 32 bilhões de dólares por ano.
Estima-se que 700 mil mulheres e crianças são traficadas passando todos os anos
pelas fronteiras internacionais. Isso sem contabilizar o tráfico interno, no interior
de cada país . A indústria e o mercado do sexo intensificaram-se nos últimos
anos a partir de quatro atividades: prostituição, tráfico, comércio de mulheres
e pornografia. O Brasil é a maior fonte latino-americana de mulheres destinadas
ao mercado do sexo.
Neste contexto, a Igreja tem manifestado sua preocupação com
este crime. O Concílio Vaticano II (1962-65) apontava para a escravatura, a
prostituição, a venda de mulheres e crianças, e as condições de trabalho
indignas em que as pessoas eram tratadas como instrumentos de ganho e não como
pessoas livres e responsáveis, como “infâmias” que “envenenam a sociedade
humana, aviltam os seus perpetradores” e constituem “uma suprema desonra para o
Criador” (Gaudium et Spes, 27). João Paulo II dizia que o mercado de seres
humanos constitui uma ofensa chocante contra a dignidade humana e uma grave
violação dos direitos humanos fundamentais . Recentemente, Bento XVI pediu que
a comunidade internacional combatesse o turismo sexual, o tráfico de pessoas
com este fim ou para transplantes de órgãos, e a exploração de menores .
O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de
miseráveis com a omissão da sociedade e a cumplicidade do sistema financeiro.
Ao aceitar o dinheiro do tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a
pessoas indefesas. Dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias,
mansões, fábricas tailandesas, garimpos de Serra Leoa, do algodão das lingeries
da Victoria’s Secret, das grifes da Zara, dos tablets da Apple/Foxconn, etc. Quanto
mais os traficantes enriquecem, mais se empenham em traficar, mais querem
aumentar suas contas na Suíça, Bahamas, Londres, Wall Street. O capitalismo
serve-se dos miseráveis para aumentar seu poder. Em nome do lucro, se negociam
pessoas. A que tribunal pedir conta da cumplicidade dos paraísos fiscais e dos
grandes bancos para com o trafico de seres humanos?
Todo cristão é um abolicionista
A pregação de Jesus na sinagoga é uma grande proclamação: “O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a
recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, e para
proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). O cristão é ungido no
batismo para ser abolicionista como Jesus. Ungido para proclamar e defender a
liberdade e levar a Boa Notícia da libertação para todas as vítimas da
escravidão. É missão divina que deve ser assumida com a consciência de que o
alcance da escravidão vai além dos milhões de vitimas do tráfico. É toda a
sociedade que precisa ser libertada das estruturas enraizadas no pecado da
idolatria. A interrupção do tráfico de seres humanos aparece como uma das
causas da queda do império romano: “Caiu, caiu Babilônia, a grande” (Ap 18,2):
Os mercadores da terra choram e se enlutam por ela, porque ninguém mais compra
seus carregamentos de ouro, prata, linho e púrpura... vinho e óleo, flor de
farinha e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e prisioneiros (Ap
18, 11-13).
Trabalhar em conjunto para parar o tráfico humano. Este é o
título da declaração das Comissões Europeias Justiça e Paz (Assembleia-geral de
Belgrado (Sérvia), 2008). A Conferência das Comissões Europeias Justiça e Paz
compromete-se a combater este crime em todas as suas formas, incluindo o
trabalho forçado, a exploração sexual, a escravatura e a remoção ilegal de
órgãos. Prevenir o tráfico de seres humanos, apoiar as comunidades e as pessoas
afetadas, reabilitar as vítimas do tráfico e favorecer sua reinserção na sociedade:
estas são as diretrizes da ação da Igreja diante da praga do tráfico humano,
destacadas na Conferência Internacional sobre o Tráfico de Seres Humanos
organizada pelo Pontifício Conselho da Justiça e pela Conferência Episcopal
Inglesa. No mundo, os católicos são 1,1 bilhão e a Igreja pode contar com suas
redes globais para lutar contra a chaga do tráfico de seres humanos. Também a
Igreja no Brasil assumiu de forma oficial o combate ao tráfico de pessoas: “O
serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana (...) Atenção
especial merecem também os migrantes forçados pela busca de trabalho e
moradia...; c) as vítimas do tráfico de pessoas” (CNBB. Diretrizes Gerais da
Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015, n.107-111).
A Igreja nos convoca a resgatar dos calabouços do
capitalismo a imagem viva de Deus refletida no rosto das vítimas: Eu estive
preso (Mt 25, 35). É contemplar seu rosto no rosto de todo prisioneiro clamando
por libertação (Mt 25, 35). Em todo ser humano está a imagem viva de Deus
esperando para ser amado e acolhido como tal, pois “Cristo é tudo e está em
todos” (Col 3, 11). Enfrentar o tráfico de seres humanos significa muito mais
do que uma ação pastoral. É fazer a vontade do Pai assim na terra como no céu.
É profissão de fé levada às últimas consequências, é assumir a “causa de Deus”
e combater o bom combate (2Tm 4,7)
É agir em memória de
Jesus. O compromisso com as vítimas está intrinsicamente vinculado ao memorial
da Páscoa de Jesus, agir em conformidade com o Senhor comungando de seu mesmo
destino e missão. Deus tanto amou o mundo que enviou seu Filho Único, a fim de
que “o carrasco não triunfe e as vítimas não caiam no esquecimento”. O combate
ao tráfico de seres humanos, como memória do Seu ministério libertador (Lc 4,
16), é expressão da eficácia salvadora da Eucaristia. É culto agradável a Deus
(Heb 13, 16; Rom 12, 1).
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