Delze dos Santos
Laureano, advogada e professora
universitária, mestre em Direito Constitucional, apresentou na 1ª palestra do Seminário
“Prostituição feminina: encantos e armadilhas”, as implicações jurídicas da legalização
da prostituição.
Ela também é autora do artigo “Marias – diversidade que
liberta,” que a continuação transcrevemos
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando
pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque
se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos
séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia,
não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se
ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com
os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no
trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas –
essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem
dos tabus e dos preconceitos morais – as que melhor representam a emancipação
feminina, não podem esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos
companheiros2, dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e
machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista
desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação
frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação.
Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas
das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do
provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as
relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o
movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um
movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de
mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados
setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia
capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais
necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das
mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte
suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da
sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o
topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre
trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor
econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as
mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres
criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da
hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se
da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte,
dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas,
como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a
trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas
casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir
as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi
mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O
trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A
ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino
atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do
trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização
pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob
o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família
no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas
empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e
filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo
para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em
sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A
inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente
profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias
pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do
desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso.
Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do
narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem
suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo
o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas
formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes
as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso
hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos
individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os
cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do
lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas
forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo
para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou
pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e
ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a
destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços
de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós, as mulheres, submissas a esse sistema que tudo
coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros,
com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o
nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande
parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de
água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade
quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de
artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou
simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam
dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos
alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são
manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de
vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e
legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos,
nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros,
apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos… Vemo-nos reduzidas a essa
engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram
obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que
ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas
cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do
tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada,
nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e
na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um
lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver,
de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa
visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das
coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher
que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados
mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas
minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças.
Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser
possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas
de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro
mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos
afastemos muito, vamos de mãos dadas!
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