A segunda palestra do Seminário organizado pela Pastoral da
Mulher de Belo Horizonte foi a cargo da Dra. Patrícia Mattos. Ela é professora do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e coordenadora da
Pós-Graduação em História. Coordena o Núcleo de Estudos de Gênero (NEGE/UFSJ).
"A profissão de prostituta não é, na maioria dos casos, uma escolha propriamente dita dessas mulheres. Essa escolha, como diz Pierre Bordieu, é apenas aparente, constituindo-se, na verdade, em uma “escolha pré-escolhida”, na qual as prostitutas são inclinadas a orientar suas condutas a partir de alternativas previamente definidas pelo contexto de vulnerabilidade e precariedade do universo familiar."
Reproduzimos aqui o artigo que elaborou para o Jornal “O
Grito Mulher” com motivo deste evento comemorativo dos XXX anos da Pastoral da
Mulher de BH
Provavelmente, não existe tema mais perpassado por estigmas,
enganos e preconceitos do que o tema da prostituição. Ao mesmo tempo em que é
repulsiva, também é fascinante. A figura da prostituta fascina por ser a
promessa de intensidade sexual e satisfação imediata e ilimitada do desejo
masculino. Com ela, a separação entre ativo e passivo, entre sujeito desejante
e objeto de desejo, que está por trás da construção social das subjetividades
masculina e feminina, fica manifesta. É
por isso que o estigma social contra a prostituta expresse, de modo aberto
porque estigmatizado, toda uma violência simbólica dirigida, de modo velado e
nunca admitido, às mulheres como um todo. Enquanto os homens da ralé, quando
taxados de “delinquentes”, são sempre “ativos” (ladrões, bandidos,
traficantes), isto é, praticam as ações criminosas como sujeitos de sua própria
vontade, a designação mais comum de delinquência
feminina está ligada à passividade, à utilização de seu corpo para servir à
vontade de outrem. O homem delinquente é, ainda que de forma ambígua,
reconhecido em seu meio como viril, forte, corajoso, destemido, enfim, como
detentor de todas as virtudes ligadas a um “código de honra”, enquanto a mulher
delinquente é vista e julgada apenas de maneira negativa como “mulher de vida
fácil”.
O desafio a que me
proponho é mostrar como essa tensão é vivida pelas próprias prostitutas, isto
é, como as condições materiais e sociais precárias de existência constroem
subjetividades precarizadas, com baixa autoconfiança e autoestima, que irão
cumprir o seu destino inexorável de viver uma vida “sem saída, sem
reconhecimento social”. O que se procurará deixar evidente, ao contrário do que
pretende as abordagens “politicamente corretas” sobre o assunto, é que a
profissão de prostituta não é, na maioria dos casos, uma escolha propriamente
dita dessas mulheres. Essa escolha, como diz Pierre Bordieu, é apenas aparente,
constituindo-se, na verdade, em uma “escolha pré-escolhida”, na qual as
prostitutas são inclinadas a orientar suas condutas a partir de alternativas
previamente definidas pelo contexto de vulnerabilidade e precariedade do
universo familiar.
O que há de comum
na história de vida das mulheres entrevistadas é um tipo de socialização
familiar disruptivo, que irá impedir a transmissão afetiva de valores como
disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, num contexto familiar
marcado pela ausência da figura paterna e pela presença de relações
instrumentais de todo tipo, a começar pela frequência e naturalização de abusos
sexuais sofridos na infância por essas mulheres. Além da carência, em qualquer
medida significativa, de conhecimento resultante de um capital escolar
incorporado, essas mulheres em sua infância nunca foram percebidas como “um fim
em si mesmas”, como crianças com desejos, sentimentos, aspirações, medos e
angústias que necessitavam de cuidado, proteção e afeto. Será essa falta de
“segurança afetiva” que irá produzir um exército de “perdedoras”, sem qualquer
chance na competição social por recursos escassos. Essa falta de uma “economia
emocional” marcada pelo autocontrole não produz apenas pessoas banidas da
função de trabalhadoras úteis, que constitui a base do reconhecimento
intersubjetivo da dignidade, mas também impossibilitada de desenvolver uma
dimensão expressiva de sua existência, para além dos clichês sociais, dos
modelos sociais que chegam a elas como “modelos prontos”, prêt-à-porter.
Flávia e
Marluce são dois tipos-ideais dentre dezenas de prostitutas entrevistadas por
mim no Rio de Janeiro entre 2006 e 2008. O tipo ideal, como nos ensina Marx
Weber, é a seleção dos aspectos mais característicos de um papel social de modo
a enfatizar os aspectos essenciais e a descartar os secundários.
Flávia
acostumou-se a transformar, como diz Bordieu, “necessidade em virtude”. É seu
pai que a abandonou e não a procura, e ela diz que é ela que não tem vontade de
procurá-lo atualmente, que não vê razão para isso. Desde pequena teve a
necessidade de se “virar” sozinha, não podendo contar com ninguém a não ser com
ela mesma, e hoje, afirma não precisar de ninguém como se isso fosse uma
escolha sua, uma qualidade ligada à firmeza de seu caráter. A “dureza” fruto do
abandono e do descuido se transforma em autonomia, em virtude moral.
É com
naturalidade que Flávia introduz o tema da experiência de abuso sexual sofrida
por ela dos 8 aos 10 anos, período em que sua mãe e ela moraram na casa de uma tia, irmã de sua
mãe, com o marido desta e sua filha recém-nascida. Seu tio foi o seu abusador
durante esse tempo.
Flávia sabia
intuitivamente que sua mãe não a protegeria caso soubesse do abuso. Um
acontecimento como esse, longe de ser inesperado e surpreendente para sua mãe,
parece ser comum, um destino natural dessa classe desde tempos imemoriais. Isso
constitui, assim, o enredo de uma história que se repete, que passa de mãe pra
filha como um legado, na qual as mulheres desde
muito cedo aprendem efetivamente que devem ser instrumentos para vontade
sexual de outrem, primeiramente e, acima de tudo na dimensão sexual.
Dando lastro a
essa hipótese, é na estrutura familiar que se inicia o aprendizado da
instrumentalização de si mesma, do seu corpo e de todos os seus desejos e
projetos e, por consequência, a instrumentalização dos outros, que constitui
uma das principais disposições de Flávia.
A
justificativa econômica para a “escolha” da profissão será dada por grande
parte das prostitutas entrevistadas. E, mais uma vez, a dimensão econômica das
desigualdades sociais serve para recalcar, inclusive na perspectiva da vítima,
toda a gênese das condições sociais e modos de vida que produzem o desvalor
social atribuído e vivido pelas prostitutas. O que fica de fora desse tipo de
explicação é exatamente o drama moral e existencial vivido desde a mais tenra
idade por essas mulheres.
Marluce não se
engana em relação à sua família. É com um realismo surpreendente que revela sua
dor pela falta de amor e cuidado na infância.
Comenta
procurar ser aberta ao diálogo e disciplinadora com seus filhos, aplicando-lhes
castigos, quando é preciso, ao contrário de sua mãe, cujos ensinamentos
restringiam-se a tarefas domésticas e a frases vazias de sentido. Seus esforços
se concentravam na propagação de uma espécie de “ética negativa” da
sexualidade- “se você der, eu vou te colocar na rua”.
Sem jamais
poder articular conscientemente a situação da mulher da ralé, mas sentindo os
efeitos da vulnerabilidade feminina nesse meio, onde, como disse uma
informante, “mulher sozinha é toco de cachorro mijar”, sua mãe intui que a
única chance de uma mulher ter um homem ao seu lado é a tática da “preservação”
do corpo. A sexualidade para as meninas da ralé constitui um jogo de “vida ou
morte”, em que seu “bem” mais desejado, seu corpo, ao ser tocado, desvaloriza
sua dona, reduzindo-a a um “pedaço de carne”, como várias outras do mercado
sexual.
É no trabalho
como faxineira na Prefeitura do Rio de Janeiro que Marluce irá sentir a linha
tênue que separa uma trabalhadora “honesta” de uma prostituta. Além de fazer o
seu trabalho duro de faxineira, ela ainda tinha que “atender sexualmente” seus
superiores. Na medida em que o tempo foi passando e esse tipo de medida
tornou-se recorrente em sua vida, Marluce então se decidiu pela prostituição
aberta. Aqui se coloca, possivelmente, o principal drama oculto, o “não dito”
vivido pelas mulheres da ralé em geral – a probabilidade de serem exploradas
não só com “massa muscular” para serviços pesados, mas também para fins sexuais
não só dos homens de sua própria classe, mas de outra classe social. No fundo,
não existe uma fronteira tão clara entre a mulher “pobre e honesta” e a pobre
“pobre e delinquente”, como as mulheres dessa primeira categoria tentam, de
maneira compreensível, desesperada demarcar.
O entrelaçamento da trajetória de Flávia e Marluce se dá,
uma vez que ambas são presas da ideologia da meritocrática que faz com que elas
próprias imagem a “queda” na prostituição como uma escolha. Na verdade, ela é
produto de uma socialização familiar de classe que transforma as mulheres,
antes de tudo, em instrumentos do desejo masculino, ainda que só algumas delas
possam vender o seu corpo com sucesso no mercado sexual.
Não perceber essa construção social é não perceber a gênese
e o destino comum de toda essa classe explorada como corpo, da qual a
prostituta é a metáfora perfeita.
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