Entrevista especial com Paulo Suess
"Exige-se, hoje, um discernimento audaz. Mas a audácia
pode ser confundida com adaptações apressadas, com modernizações meramente
técnicas, com a corrida atrás do sempre novo, sem consciência histórica",
alerta o teólogo.
Tanto isto é verdade que “a Fraternidade Pio X percebeu
corretamente que o Vaticano II representa uma verdadeira reforma que inclui
continuidade e ruptura”
Por ocasião do 50º aniversário do início do Concílio
Vaticano II, o assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - CIMI,
descreve a gênese, a trajetória e as rotas do importante decreto Ad Gentes, que
redesenhou a missão da Igreja.
Segundo Paulo Suess, o Concílio Vaticano II instou "a
igreja a deixar a realidade do mundo e entrar na realidade do mundo. E essa
realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural da modernidade
secularizada e a dimensão da convivência concreta no mundo pluricultural".
Trata-se, continua Suess, "de construir duas pontes de
mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas do mundo
moderno, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, onde o povo vive, se
encontra e comunica".
Paulo Suess (foto) nasceu na Alemanha. É doutor em Teologia
Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou
o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora
da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o
título de Doutor honoris causa, das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e
Frankfurt (2004). É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário –
Cimi e professor no ciclo de pós-graduação em missiologia, no Instituto Teológico
de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, destaca-se Dicionário de
Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de
Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007).
Confira a entrevista.
Paulo Suess – A missão é estrela-guia na constelação dos 16
Documentos do Concílio que emergiram de demandas prático-pastorais. Práticas
litúrgicas, leituras bíblicas, convivência ecumênica, necessidades de uma nova
presença no mundo operário e indígena apontaram para a necessidade de uma
reconfiguração das relações entre Igreja, mundo moderno, culturas e humanidade.
Novas relações, sobretudo com os pobres e os outros, exigiram repensar as
linhas pastorais até então consideradas “legais” e forjaram, como fio condutor,
a missão voltada ao povo e ao mundo na perspectiva de aggiornamento e
encarnação. O aggiornamento à modernidade e a encarnação nos contextos
pluriculturais representam uma verdadeira “virada popular”. Virada popular
significa contemplar a Deus não em alturas abstratas, mas no rosto da
humanidade crucificada e ouvir a Sua voz através dos sinais de Deus no mundo.
IHU On-Line – O decreto Ad Gentes é o documento conciliar
que trata da atividade missionária da Igreja? Qual a gênese desse documento no
processo do Concílio?
Paulo Suess – Os impulsos elementares para a teologia da
missão e a pastoral missionária desabrocharam nas Constituições sobre a Igreja
(Lumen Gentium; Gaudium et Spes) e a Liturgia (SC), nos decretos sobre o
Ecumenismo (UR) e a Vocação dos Leigos (AA), e nas Declarações sobre a
Liberdade Religiosa (DH) e as Religiões Não Cristãs (NA). O “Decreto Ad Gentes
sobre a atividade missionária da Igreja” apenas sintetizou essas dimensões que
ganharam a sua força radical pela revisão da eclesiologia do Vaticano I. Nos
processos que levaram à redefinição da missão, observa-se um deslocamento de
uma Igreja que tem missões territoriais, pelas quais faz coletas e pede
orações, para uma Igreja na qual a missionariedade e a “natureza missionária”
dos batizados representam a orientação fundamental de todas as suas atividades.
O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do Apóstolo
Paulo, die 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem
um profundo significado simbólico. Data e lugar escolhidos pelo Papa João XXIII
apontam para uma igreja em estado de conversão “fora dos muros” da cristandade.
Foi pela primeira vez, na história da Igreja, que um
concílio sentiu a necessidade de elaborar um documento sobre a missão. Contudo,
parecia tudo muito fácil e, praticamente, já resolvido antes do Concílio. O
Cardeal Agagianian, prefeito da então chamada “Congregação pela Propagação da
Fé”, não se cansou de afirmar que no campo missiológico todas as questões
estavam resolvidas através das encíclicas missionárias dos últimos papas.
Missão e missiologia, que entraram no concílio como anexos ao campo da
pastoral, saíram do processo conciliar como teologia fundamental e núcleo
teológico-pastoral central do Vaticano II.
Ao texto definitivo de Ad Gentes precederam sete versões que
permitem acompanhar as lutas pelo novo significado do paradigma “missão” (cf.
P. Suess, Introdução à teologia da missão, 3ª ed., Petrópolis, 2011, p. 122 et
seq.). O lugar do “mundo”, da “missão” e da “liberdade religiosa” na Igreja foi
disputado até o último momento do Concílio. Finalmente, poucos dias depois da
promulgação da “Declaração sobre as religiões não cristãs” (NA, 28.10.65), na
quarta e última sessão e no último dia (7-12-1965), o “Decreto Ad Gentes sobre
a atividade missionária” foi promulgado por Paulo VI, junto com a “Constituição
Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo” (GS) e a “Declaração sobre a
liberdade religiosa” (DH). Ad Gentes recebeu 2.314 votos “sim” e apenas 5 votos
“não”.
IHU On-Line – Quais são os elementos ou conteúdos
fundamentais do decreto Ad Gentes?
Paulo Suess – Os conteúdos fundamentais do decreto Ad Gentes
não devem ser vistos isoladamente dos outros documentos do Concílio. O “pacote”
missiológico do Vaticano II pode ser resumido em alguns passos, revisões e
conversões de uma caminhada pós-colonial, sempre ameaçada por regressões:
– do eclesiocentrismo à centralidade do Reino de Deus;
– de uma identificação da Igreja com a hierarquia para uma
Igreja “Mistério”, “Povo de Deus” e “Instrumento de salvação”;
– de um laicato auxiliar e subordinado do clero para um
laicato que participa do sacerdócio comum dos fiéis (LG 34), do múnus profético
de Cristo (LG 12; 35,1) e do apostolado. O Povo de Deus é marcado por uma
igualdade constitucional (cf. LG 37);
– da opção abstrata pelo “homem” para sujeitos com rostos
concretos. O povo de Deus integra os pobres e tem uma missão pública,
histórica, profética e fraterna;
– De uma Igreja
= que olhou na celebração eucarística para a parede e falava
em latim
= que entendeu a sua teologia como explicação de dogmas e
= que em sua pastoral estava amarrada a padrões culturais da
Europa, para uma Igreja versus populum, que podemos chamar de “virada popular”;
– do território da missão à natureza missionária da Igreja
povo de Deus (desterritorialização da missão);
– do ter missões ao “viver em estado de missão” (AG 2; DAp
213);
– da missão ad gentes à missão intergentes (diálogo
inter-religioso, ecumênico e intercultural), que significa um passo da
unilateralidade entre doador e receptor dos benefícios da missão para a
reciprocidade nas relações missionárias;
– do monopólio salvífico à partilha da graça da salvação: se
Francisco Xavier e praticamente todos os missionários e missionárias até a
primeira metade o século XX eram obrigados, em nome da Igreja, a negar a
possibilidade de salvação para os não cristãos, o Vaticano II trouxe, no dizer
de Bento XVI, “alguma forma de descontinuidade”;
– da supervisão à inculturação. A “supervisão” nos afasta do
chão e dos rostos concretos dos pobres. A eficácia missionária não está nos
instrumentos utilizados nem na liderança em “nossas obras”, mas na coerência
entre a mensagem do Reino e sua contextualização, também através do nosso
estilo de vida.
A passagem da supervisão para a inculturação atinge,
obviamente, o campo onde o povo celebra sua vida, ou seja, o campo litúrgico.
Muitas reformas litúrgicas pós-conciliares, feitas por “supervisores” sem
conhecimento e participação do povo, estão caminhando para o distanciamento pré-conciliar.
A Missa Tridentina não é um sinal que aponta para uma Igreja autóctone
encarnada na vida do povo. A “virada popular” do Vaticano II clama por essa
Igreja autóctone que rompe com qualquer tipo de tutela colonial.
IHU On-Line – A partir do Concílio, entre avanços e recuos,
como o senhor avalia os passos dados pela Igreja na sua relação com o mundo?
Paulo Suess – Hoje, a Igreja Católica reúne vários setores
de mentalidades, práticas pastorais e teologias diferentes, o que torna difícil
falar de “passos dados pela Igreja”. Esses passos de setores espiritualistas e
realistas, fundamentalistas e movimentos militantes, de ordens religiosas e
novas comunidades se movem em direções diferentes. Segundo o respectivo setor,
podemos falar de recuos ou avanços ao mesmo tempo. Ultimamente observa-se certa
aversão do setor hegemônico contra a realidade concreta. Nossa metodologia do
ver-julgar-agir, que acompanhou a teologia indutiva latino-americana e que
ainda foi positivamente mencionada na Mater et Magistra (1961) de João XXIII
(MM 235), sofreu, desde Santo Domingo (1992), na maioria dos documentos,
restrições pela nova abordagem do “crer-ver-agir”. Em seguida, muitas vezes se
confundiu os níveis diferentes do crer, que é teológico, e do ver, que é sócio-histórico.
Mas a história nunca é linear. Muitas conquistas do Vaticano
II estão presentes em nossa realidade pastoral e nos documentos produzidos
nesse tempo pós-conciliar, apesar de certo descompasso entre documentos e a
própria prática missionária. Somos uma Igreja de apóstolos e mártires, hoje com
poucos profetas. Precisamos desinibir a “virada popular”.
Precisamos reescrever os tratados sacramentais – matrimônio,
penitência, sacerdócio –, que clamam por um aprofundamento que tome o Vaticano
II como ponto de partida. 70% das comunidades na Amazônia estão sem eucaristia
dominical. Aparecida cobrou à Igreja de “repensar profundamente e relançar com
fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e
mundiais” (DAp 11). “Fidelidade”, nessa reconstrução da “virada popular”, só
faz sentido se houver “audácia” na recepção e na projeção do Vaticano II. Sem
audácia, a tradição se torna tradicionalismo e prisão e não haverá tradução,
encarnação e comunicabilidade do cristianismo em novos contextos micro e
macroculturais.
Exige-se, hoje, um discernimento audaz tanto na assunção dos
múltiplos projetos de vida, que culturas regionais representam, como na
avaliação de conquistas da modernidade que, com sua dupla face de progresso e
violência, beneficiam e ameaçam a sobrevivência da humanidade. A audácia pode
ser confundida com adaptações apressadas, com modernizações meramente técnicas,
com a corrida atrás do sempre novo, sem consciência histórica. Missas e
ministros midiáticos, alinhados a padrões de marketing, podem destruir o
sagrado.
IHU On-Line – Como a Igreja latino-americana traduziu para a
sua realidade as decisões conciliares, sobretudo ao que diz respeito à Igreja
missionária?
Paulo Suess – A “virada popular” como aggiornamento
significa para a igreja deixar a realidade do mundo e entrar na realidade do
mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural da
modernidade secularizada e a dimensão da convivência concreta no mundo
pluricultural. Aggiornamento expressa a vontade de construir duas pontes de mão
dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas do mundo moderno,
e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, onde o povo vive, se encontra
e comunica.
O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação respeitosa
aos povos e ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “adaptação” (SC
37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) e da cultura,
“sinais do tempo” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13; UR 4), “encarnação” e
“solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada teológico-pastoral latino-americana
traduzimos essas palavras como “opção pelos pobres” e “libertação”, em Medellín
(1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base”, em Puebla (1979),
como “inserção” e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”,
“testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos
pobres, em Aparecida (2007).
Nenhuma dessas palavras descreve a totalidade do projeto
pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto representa uma síntese daquilo que
esse concílio queria ser: um farol da luz de Cristo no meio dos povos e do
mundo.
Algo significativo aconteceu na IV Conferência do Episcopado
Latino-Americano em Santo Domingo. O tema da “cultura cristã”, quer dizer, a
reflexão sobre uma cultura que não existe, foi substituída nas Conclusões por
“evangelização inculturada” (SD 292,3). E no decorrer dessas Conclusões
encontra-se o imperativo categórico da evangelização: “Toda evangelização há de
ser, portanto, inculturação do Evangelho. (...) A inculturação do Evangelho é
um imperativo do seguimento de Jesus e é necessária para restaurar o rosto
desfigurado do mundo” (cf. LG 8; SD 13).
IHU On-Line – Após 50 anos, como o senhor analisa a
atualidade do Concílio, sobretudo na perspectiva da Igreja em Missão?
Paulo Suess – Como evento histórico, o Concílio é ponto de
partida. Reinterpretações fazem parte da fidelidade aos seus documentos e da
audácia da caminhada pastoral que a história exige (cf. DAp 11). Podemos
distinguir diferentes “convivências” com o Vaticano II:
1º: a não recepção pelo grupo em torno da chamada Fraternidade
Pio X. Esse setor percebeu corretamente que o Vaticano II representa uma
verdadeira reforma que inclui continuidade e ruptura;
2º: a recepção modernizante, porém essencialmente
conservadora, sem assunção dos questionamentos do mundo moderno, que o Concílio
fez;
3º: a recepção conclusiva, como se o Vaticano II fosse um
ponto final ou uma trincheira que nos permite, em pleno inverno eclesial,
esperar tempos mais favoráveis. Esse setor procura salvar afirmações
fundamentais do Concílio – o “máximo” alcançável, o “sustentável” – sem a
dinâmica histórica que o considera como ponto de partida;
4º: a recepção seletiva e estratégica pelo setor de
movimentos pentecostais e fundamentalistas, que grosso modo dispensaram a
“iluminação” conciliar, por confundirem com ilustração; sinais importantes
deste setor são a emocionalidade, a visibilidade através de eventos de massa e
o personalismo de um líder sedutor, popular e populista ao mesmo tempo. Sua
presença maciça na mídia se explica pelo alinhamento sistêmico e político, por
promessas milagrosas e pelo esquecimento da cruz. Esse setor reforça a
alienação das massas populares e as afasta do mistério pascal;
5º: a recepção dinâmica na linha de uma pastoral de
libertação e participação dos pobres, assumida por Medellín e as conferências
seguintes. Bandeiras como CEBs, inculturação, Igreja autóctone com teologias e
liturgias diferenciadas, diálogo, liberdade religiosa, macroecumenismo só terão
futuro e serão hasteadas nessa perspectiva da historicidade do evento Vaticano
II. Quem quer “segurar” o Concílio como ponto de chegada destrói suas intenções
profundas.
IHU On-Line – À luz do Concílio Vaticano II, o que significa
ser Igreja missionária hoje?
Paulo Suess – Ser Igreja missionária, hoje, significa ser
Igreja. Não existe uma Igreja não missionária. E ser Igreja significa ser Povo
de Deus, povo messiânico, profético, sacerdotal e testemunhal em estado
permanente de conversão institucional, pessoal e estrutural; significa assumir
de perto a opção pelos e com os pobres e os “outros”, com os quais trabalhamos
e convivemos com o cultural e o materialmente disponíveis para colaborar na
construção de um mundo para todos. Ainda estamos longe de fazer do lembrete
“natureza missionária”, que o Concílio nos deixou, uma realidade pastoral.
Ainda estamos longe de ver na missão não apenas uma “tarefa opcional”, mas de
assumi-la como “parte integrante da identidade cristã” (DAp 144).
Missão é visão do horizonte utópico da libertação. A
libertação é possível. A justiça de Deus não é a justiça da estátua com olhos
vendados. Deus ouve o clamor dos pobres, vê o sofrimento dos migrantes e
convoca com a sua palavra os que a confusão babilônica dos macrodiscursos excluiu
do convívio social.
Missão é visão acoplada à ação. Com nossa indignação
profética percebemos que tudo pode ser diferente.
A partilha e a opção pelos pobres apontam para tarefas
básicas neste mundo: a redistribuição dos bens feita pelos pobres e o reconhecimento
dos outros e das outras em sua alteridade. Essa visão se transforma em ação
através da presença no meio dos outros pobres e através de palavra, profética e
misericordiosa, ao mesmo tempo.
A Missão produz sinais de justiça e cria imagens de esperança.
No mundo, onde os privilegiados perdem o sentido de vida e os excluídos perdem
a visão de um horizonte e a força de resistência, o querigma missionário
elementar é a esperança que emerge da presença e da solidariedade.
Fonte: Ihu
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