De acordo com o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, constata-se que o início das intervenções na direção desses projetos permite afirmar que a cidade avança em sentido oposto ao da integração social e da promoção da dignidade humana. Os impactos das intervenções urbanas são de grandes proporções e envolvem diversos processos de exclusão social, com destaque para as remoções.
“O direito de resistir ao Direito deve ser analisado, então,
em torno de questionamentos fundamentais: em que casos seria legítimo
desobedecer às leis? Dentro de quais limites? "
Entrevista especial com Natália Castilho
A expressão “direito de resistir ao Direito” se relaciona
com o conceito “direito de resistência” e deve ser aplicada diante dos limites
do exercício dos direitos, especialmente quando se trata de “violação de
direitos humanos, sob a égide do Estado Democrático de Direito no Brasil”,
assinala a pesquisadora Natália Castilho à IHU On-Line.
Mestranda em Direito Público, Natália explica que o direito
de resistir reflete uma “forma de compreensão das complexas dimensões que
envolvem a lutas por direitos humanos organizadas por movimentos sociais
populares”. Em sua avaliação, um dos temas que mais desafia o direito de
resistência é a moradia urbana, que está relacionada com diversos problemas
sociais, como “a concentração de terras e a distribuição exclusivista e
desigual do espaço urbano”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line,
Natália menciona o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro, que reúne dados do número de famílias que já tiveram suas terras
desapropriadas para viabilizar a construção de novos estádios e empreendimentos
por causa dos megaeventos a serem realizados no país. “Constata-se que o início
das intervenções na direção desses projetos permite afirmar que a cidade avança
em sentido oposto ao da integração social e da promoção da dignidade humana.
(...) Para além das remoções, estão em curso transformações mais profundas na
dinâmica urbana das cidades, envolvendo, de um lado, novos processos de
elitização e mercantilização da cidade, e, de outro, novos padrões de relação
entre o Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das
esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções
autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de
exceção”, aponta.
Natália Castilho abordará o tema desta entrevista na tarde
de hoje, na palestra “Direito de resistência”: a luta social pelo direito à
moradia urbana, que será ministrada às 17h30min, na sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros, no IHU.
Natália Castilho é mestranda em Direito Público pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, e graduada em Direito pela
Universidade Federal do Ceará – UFC. Participa do Núcleo de Direitos Humanos da
Unisnos e do Grupo de Estudos em Teorias Críticas do Direito na América Latina,
da UFC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como compreender o "direito de
resistência"?
Natália Castilho – O “direito de resistir ao Direito”
trata-se de uma expressão que se relaciona ao conceito de direito de resistência.
Refere-se a uma análise das possibilidades e dos limites de exercício desse
direito, nos casos de extrema violação de direitos humanos, sob a égide do
Estado Democrático de Direito no Brasil. Apesar de a pesquisa ter sido
realizada diante de um caso concreto específico, o conflito fundiário estudado
infelizmente representa a realidade de violações ao direito à cidade e à
moradia nos grandes centros do Brasil, nos quais a intensa especulação
imobiliária, a moradia precária e as políticas de higienização social do espaço
urbano engrossam o número de sem-teto, ano após ano.
As possibilidades de afirmação do direito de resistir ao
Direito estão relacionadas ao contexto social e político em que se insere o
sistema jurídico brasileiro. Emergem, assim, os altos índices de desigualdade
social, bem como o número de pessoas sem-terra, sem-teto, etc. As análises
jurídicas feitas no trabalho, em relação ao fenômeno da resistência, nascem da
confrontação dessa realidade com o conjunto de direitos humanos sustentados na
Constituição Federal, mais especificamente do acesso a terra e à moradia. O
estudo do caso concreto proporciona a reflexão acerca das contradições do
Judiciário brasileiro frente às violações de direitos humanos (e aos interesses
econômicos frequentemente envolvidos), o que enseja um olhar mais profundo e
crítico em relação ao fenômeno da resistência protagonizado pelas vítimas
dessas violações em tais casos.
A partir desse lugar, seria possível começar a falar de tal
concepção do direito de resistência – o que requer uma readequação de seu
significado histórico liberal. Essa possibilidade pôde ser concebida neste
trabalho como uma forma de atuação legítima de certos sujeitos coletivos, os
movimentos sociais populares, que em sua práxis conectam a luta por direitos
humanos à efetivação da democracia e da pluralidade política, princípios que
fundamentam o regime constitucional. Na maioria dos graves e históricos
conflitos sociais relacionados à luta por direitos humanos no Brasil é possível
a utilização desse “conceito”. Isso se dá exatamente porque neste contexto de
privações de direitos e de consolidação de um sistema jurídico-político
reprodutor e mantenedor de opressões e desigualdades, a resistência mostra-se
como último recurso, tanto como meio de pressão para a urgência na efetivação
dos direitos básicos desses sujeitos quanto para a proposição de uma prática
política orientada para a participação direta e popular no processo de
construção do sentido dos direitos humanos na sociedade.
O direito de resistir
O direito de resistir nessas bases serviria, então, como uma
forma de compreensão das complexas dimensões que envolvem a lutas por direitos
humanos organizadas por movimentos sociais populares. A luta da comunidade
Raízes da Praia, protagonizada pelo MCP, movimento que atua na cidade de
Fortaleza-CE, foi analisada, dentre outros motivos, porque representou um longo
processo de organização e resistência popular frente não só a determinadas
decisões judiciais no decorrer do processo movido pelo grupo econômico (antigo
proprietário do terreno), mas também às tentativas de despejo ilegal
protagonizadas por uma milícia privada, composta inclusive por policiais
militares, contratada pelo proprietário.
O processo de resistência resultou na desapropriação de um
dos lotes do terreno pelo poder público municipal, o que representou uma
vitória para a concretização do direito à moradia daquelas pessoas frente ao
alegado direito de propriedade exercido em um terreno que se encontrava
abandonado há 25 anos, em uma área de intensa especulação imobiliária da
cidade. Um dos elementos revelados na pesquisa, por meio de entrevistas e da
observação participante, foi o de que a continuidade da resistência não teria
sido possível se aquelas pessoas não estivessem organizadas no movimento
popular.
Nesse sentido, o exercício do direito de resistência, nos
casos e situações descritas no estudo, relaciona-se com a capacidade de
articulação e organização popular. Mais ainda, está diretamente ligado ao nível
de conscientização política e social dos sujeitos daquele processo de luta. O
engajamento naquele processo de resistência, como apontou a pesquisa,
significou um crescimento político e intelectual para alguns, além de
representar uma forma de aquisição de cidadania. A resistência representou
igualmente a construção do significado do direito à moradia, que passou a
adquirir uma dimensão maior e mais profunda do que o sonho individual da casa
própria. A organização e a participação política proporcionaram a construção de
uma dimensão desse direito que envolve a luta pelo bem-viver de uma comunidade,
pela permanência no lugar de onde vieram seus ancestrais e pela condição de
moradia que priorize as instâncias de organização comunitárias, o que extrapola
até mesmo a interpretação constitucional desse direito. Na disputa de
concepções e discursos efetuada no ambiente de pluralidade política,
verifica-se a necessidade de fortalecimento dos movimentos sociais populares
como espaços fundamentais à construção democrática e plural da cidadania e do
próprio sentido dos direitos humanos.
IHU On-Line – Em que consiste o "direito de resistir ao
Direito"? Qual é o embasamento, a fundamentação dessa resistência?
Natália Castilho – É a história da formação do Estado e do
conceito de Estado de Direito que elabora os aportes para o conceito de direito
de resistir ao Direito, entendido o “Direito” como ordem legal. Historicamente,
as reflexões em torno da existência de um direito a resistir ao Estado, em
termos gerais, associam-se às condições de legitimidade do governante quanto
aos seus atos políticos e jurídicos. Assim, questiona-se sobre a “qualidade” do
ordenamento jurídico, se é ou não justo. Nesse sentido, as origens da
fundamentação do Estado, principalmente em relação ao contrato social e à
origem do poder político, são fundamentais para contextualizar o estudo do
fenômeno da resistência e da desobediência às leis. O direito de resistir ao
Direito deve ser analisado, então, em torno de questionamentos fundamentais: em
que casos seria legítimo desobedecer às leis? Dentro de quais limites? E,
principalmente, por parte de quem?
A evolução histórica do direito de resistência para o
Direito Constitucional é um elemento importante a ser analisado, tendo em vista
o processo de constitucionalização do Estado, fruto das revoluções sociais
ocorridas nos séculos XVIII e XIX. A resistência a governos autoritários e
injustos é inserida no bojo do constitucionalismo moderno. Entretanto, nos
últimos duzentos anos, o direito de resistência foi perdendo espaço na maioria
parte das Constituições modernas.
Por outro lado, a busca por uma delimitação desse direito –
ou mesmo a investigação em torno das possibilidades de sua existência ou não,
seja ligado a uma ideia de direito positivo ou ao estabelecimento de uma noção
de legitimidade política e social – encontra-se também relacionada ao regime
democrático, principalmente às possibilidades de aplicação dos princípios
constitucionais de cidadania e da dignidade da pessoa humana. Esse viés vem à
tona quando se verifica o processo de exclusão e marginalização social,
vinculado ao quadro de uma profunda violação institucional de direitos humanos
na sociedade brasileira.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios na luta social
pelo direito à moradia urbana?
Natália Castilho – No âmbito social e político, os desafios
estão relacionados a uma problemática que se encontra no âmago de diversos
outros problemas sociais: a concentração de terras e a distribuição
exclusivista e desigual do espaço urbano. O modelo de desenvolvimento urbano
privou as classes de menor renda da urbanidade, da inserção e fruição efetiva
da cidade. O crescimento acelerado da população urbana reforçou um modelo de
desenvolvimento socioeconômico desigual. De acordo com a professora Raquel
Rolnik, a população urbana no Brasil em 1940 era de 31%, e em 2000 passou para
81,2%. Ou seja, em 60 anos, o percentual de pessoas vivendo em cidades mais do
que duplicou, quase triplicou. Uma mudança vertiginosa num espaço de tempo
muito curto. A autora aponta ainda que o referido modelo de urbanização, além
de excludente, foi também concentrador: 60% da população urbana vive em 224
municípios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 94 pertencem a aglomerados
urbanos e regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes. Sendo
assim, a forte concentração da renda e da posse da terra, o gradual
empobrecimento da população e a fragilidade da regulação da expansão das
metrópoles brasileiras favoreceram a formação de espaços contraditórios, que se
expressam na paisagem.
Expansão urbana desigual
O problema da expansão urbana desigual se manifesta em
níveis diversificados, mas pode ser visualizado principalmente a partir da
lógica de especulação imobiliária, de segregação da pobreza nas cidades (excluindo
cada vez mais a população pobre dos centros urbanos, em áreas longínquas que
não possuem espaços de lazer, de educação, geração de trabalho, transporte
público adequado, etc.) e do tratamento policial que é dado aos conflitos
fundiários por acesso à terra urbana. Nesse sentido, a questão do direito à
moradia é bastante complexa, especialmente porque envolve a lógica das relações
de poder que determinam e estruturam a cidade e seu desenvolvimento. Outro
desafio fundamental, especialmente para o campo jurídico, consiste em
visualizar o direito à moradia como uma condição de dignidade (e não somente a
obtenção de um teto, um produto imobiliário), essencialmente atrelada à
vivência do espaço urbano, ou seja, ao acesso aos serviços básicos, à saúde, ao
transporte, à educação, ao lazer, etc.
Esse quadro fica ainda mais claro quando analisamos a
política brasileira de incentivo à realização de grandes eventos, como a Copa
do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. As consequências desse modelo de
urbanização, atrelada aos grandes investimentos em infraestrutura, são
agravadas ainda mais. A gestão urbana encontra-se em um duelo constante entre
os interesses sociais e das grandes empresas e, no caso dos grandes eventos,
gerou-se uma situação extraordinária na qual grandes projetos urbanos
capitalistas encontram uma ocasião especial para se impor, a despeito dos
regulamentos urbanísticos e ambientais e dos interesses sociais.
IHU On-Line – Qual é a importância dos movimentos populares
na reivindicação de direitos como o da moradia, por exemplo?
Isso pode ser constatado a partir da luta da comunidade
Raízes da Praia. Em certo momento da luta, foi proposta para uma parte da
comunidade a participação no Programa Minha, Casa Minha Vida, e a maior parte
deles foi contra em primeiro lugar porque o este programa abriria possibilidade
de descaracterização da comunidade, pois a venda do imóvel é permitida, o que
poderia fazer com que pessoas que não participaram da trajetória da comunidade
adquirissem imóveis com base nas leis de mercado, explorando as dificuldades
financeiras de alguns. A comunidade respondeu que, se as famílias tivessem
optado pela lógica de mercado do Minha Casa, Minha Vida teriam nele se
inscrito; não o fizeram porque optaram pela lógica da organização e da luta
para conseguirem efetivar seu direito constitucional à moradia através de justo
investimento do poder público. Verificou-se também durante a pesquisa que, para
os moradores, não haveria possibilidade de resistência e de conquista do
direito à moradia sem o processo de organização e conscientização proporcionado
pela participação no MCP.
Fonte: Ihu
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