domingo, 19 de fevereiro de 2017

'Os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus'

Compreensão de pertencimento à Igreja como privilégio, que poucos puros podem gozar, engendrada por linguagens e posturas, é bastante nociva para a fé em todos os tempos.

Por Tânia da Silva Mayer*

A compreensão da Igreja como sociedade perfeita não reflete apenas um cenário do cristianismo dos séculos passados. E mesmo com o advento do Concílio Ecumênico Vaticano II, que resgatou a ideia da Igreja Povo de Deus, aberta ao diálogo com os povos, servidora da sociedade, em comunhão com as alegrias e tristezas, as angústias e esperanças de todas as pessoas, em muitas comunidades de fé, os batizados e batizadas compreendem o pertencimento à Igreja como um privilégio, que poucos puros podem gozar. Essa compreensão, engendrada por linguagens e posturas, é bastante nociva para a fé em todos os tempos.

A começar pelos evangelhos, Jesus é de uma estirpe não muito perfeita. Seu nascimento, conforme insistem os textos bíblicos, se dá o seio de uma família pobre, na esteira da rejeição e da perseguição. Sua missão contou com a ajuda de pessoas sem nenhum prestígio e com a de muita gente de vida errante e duvidosa. Acercado de pecadores e transviados, anunciou o Reino e sua força transformadora, mas nada ao seu redor poderia sugerir que quem estava em sua companhia assim o estava porque era melhor e mais perfeito que os demais. Felizmente, teologicamente a ideia da Igreja “sociedade perfeita” não se sustenta.

Se a fé narrada pelos Evangelhos não concorda com a compreensão de que os amigos e amigas de Jesus são moralmente melhores que os outros, tampouco no nível institucional. Os embates entre carisma e instituição tornam-se mais aguçados na pós-modernidade, que coloca em crise as instituições e suas burocracias. Se no plano nacional convivemos com a derrocada das instituições do Estado, pela massiva corrupção, desvios e lavagens de dinheiro, no catolicismo verificam-se sangrias semelhantes. Para além dos aspectos espirituais e de idade avançada que corroboraram a renúncia de Bento XVI, à época, a Igreja estava mergulhada no mar de lama de escândalos de corrupção no Banco do Vaticano e das denúncias dos crimes de pedofilia cometidos por membros do clero. Recentemente, o Papa Francisco, que tem sofrido as perseguições nefastas dos cardeais conservadores, criticou a prática de corrupção no Vaticano, endossando ser uma doença os abusos de crianças.

Se teologicamente não se pode alimentar um sentimento de superioridade moral dos cristãos com relação a si mesmos e aos outros, tampouco as mazelas da história da Igreja permitem posturas que segregam as pessoas entre puros e impuros, santos e pecadores. Há épocas, o Evangelho tem revelado que uma moral de aparências tende a esconder a verdade das posturas que cultivamos. Apontar o dedo e indicar que esse ou aquele está certo ou errado é apressar-se equivocadamente num julgamento que não nos compete. Aos cristãos e às cristãs compete cumprir a missão de Jesus, perseverando no mandamento que ele deixou aos que se propõem a seguí-lo, a saber, o Amor que supera fronteiras.

Tal como na parábola que Jesus conta aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo, é importante responder pessoalmente qual dos dois filhos fez a vontade de seu pai, se o primeiro que afirma ir trabalhar na vinha, mas não vai; se o segundo que afirma que não irá trabalhar, mas se decide e vai. Ainda hoje, a Palavra traz sua força interpeladora, nos mostrando que nem todo cristão e cristã que diz “Senhor, Senhor” entrará no Reino. Este é reservado àqueles que aderem a mensagem de Jesus, apensar das suas aparências e dos preconceitos que carregam socialmente. Se naquele tempo os coxos, cegos, aleijados, pobres, leprosos, mulheres e pecadores eram a porção adquirida por Jesus, em razão da Boa Nova que inaugurava, hoje, tanto mais os excluídos, os publicanos e as prostitutas nos precedem no Reino de Deus.

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. 


Fonte: Dom Total

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