Parece tão simples discorrer
sobre a fé se apenas repetirmos o Catecismo que nos foi ensinado. A gente
decorava as verdades da fé e discorria sobre elas como aula bem aprendida. A
lembrança da fé como virtude teologal, como força dada por Deus para sustentar
nossa vida diária na linha do bem e da justiça fez parte da formação religiosa
de muitas pessoas. A fé tinha apenas caráter construtivo positivo, estava só na
direção do bem a todas as pessoas.
Entretanto, quando a pergunta vem depois de
muitos anos vividos as respostas do Catecismo, embora conservem sua
pertinência, já não fazem eco de nossa verdade, ou melhor, da verdade de minha
fé nos limites de meu hoje.
O que é mesmo fé para mim? Já não
tenho uma resposta ou uma definição precisa. Já não falo dela como algo seguro,
coerente e claro. Já não sei determinar seus limites nem sua profundidade ou
sua clara expressão. Constato apenas que esse algo que chamo ou que chamamos fé
habita no claro escuro de minha vida, na mistura e na contradição que sou e que
vivo. Habita o meu cotidiano, colada à minha pele e misturada às minhas
entranhas.
A fé ou a adesão que faço a
valores e pessoas não se expressa apenas nas coisas positivas e bonitas que
desejo que habitem nosso mundo. Não vem de um Cristianismo aprendido, aquele
que tinha respostas a todas as perguntas, embora as respostas fossem
incompletas e parciais. Mas, a fé hoje para mim é parecida com a constatação da
miséria e da grandeza humana, fé como acolhida da desproporção que nos habita,
que nos faz ser sempre maiores e menores do que pensamos ser. Fé expressa de
diferentes maneiras em tradições milenares de sabedoria humana que nos ajudam a
acolher a inconstância e a constância variada e criativa de nossa história.
Vem-me ao espírito um texto do
Evangelho em que Jesus denuncia aqueles que enxergam a palha no olho do outro e
não percebem a trave que está em seu próprio olho. Nessa linha, tenho percebido
nossa maior ou menor cumplicidade na construção da violência e da crueldade no
mundo, sobretudo quando apontamos em primeiro lugar para a irresponsabilidade e
a injustiça dos outros.
É quase espontâneo em nós
descobrir primeiro os culpados ou os inimigos que de certa forma perturbam a
justiça social que imaginávamos. Aqueles que não são como eu ou não pensam como
eu me incomodam. Até certo ponto essa atitude nos isenta da responsabilidade
social pessoal e da apreensão do pluralismo que nos caracteriza. É comum que
nos acusemos mutuamente de traidores ou de egoístas quando nosso bem próprio ou
nossas ideologias estão em jogo.
A fé tem a ver com a acolhida
dessa massa humana misturada da qual somos parte. Tem a ver com a limitada
realidade de nosso corpo marcado pela complexidade de sua constituição. A fé é
um ingrediente fundamental na complexa história de nossa vida. Está presente na
mistura de tudo com tudo… Na farinha e no fermento, na massa sovada, descansada
e finalmente levada ao forno. Está no pão partilhado, no pão falsificado, no
pão roubado. Está na lenha que se acendeu e assou o pão. Está no comércio do
pão e em todos que o comem.
Creio em nossa responsabilidade
coletiva na manutenção ou na tentativa de sanar o desejo de tirar proveito das
pequenas e grandes coisas. Os exemplos não faltam nas diferentes instâncias da
vida familiar e social. Quem nunca se aproveitou de uma situação em beneficio
próprio? Quem nunca atirou pedras sobre os outros, sabendo-se merecedor de
outras tantas? Quem nunca aceitou glórias e benefícios mesmo sabendo-se pouco merecedor?
Quem nunca mentiu para sair-se bem ou para ocultar uma situação embaraçosa?
Quem nunca usou do nome de Deus para esconder-se de si mesmo e dos outros?
Somos trevas e luz…
A fé está em nossa carne, esta
carne que se entrega às vezes às pequenas e grandes corrupções e às vezes a
grandes e pequenas causas. Move-se de muitas maneiras dentro de nós mesmos. No
fundo, nós e nossa fé somos um. Marcados por nossa história, nossos medos,
nossas paixões e nossos interesses.
Além disso, ela é também o grito
fundo que me acorda do torpor egoísta e me faz perguntar pelo outro, por meu
vizinho, por minha filha, pela criança caída na estrada… Outras vezes está na
pura beleza da aurora de um novo dia, ou no entardecer luminoso de certos dias
de outono ou num sorriso ou num olhar que desmancha nosso coração de prazer.
Espero que…
Por isso espero… Que o coração
humano não seja soberbo e ganancioso. Que nos eduquemos para não desequilibrar
a instável balança de nossa vida, para não destruir a beleza que nos rodeia,
para não ficar indiferente à dor alheia, para não sermos os únicos a participar
do banquete de maravilhas que a Terra azul nos oferece. Minha fé e minha
esperança se encontram, se dão as mãos, se assemelham, se misturam, se atraem,
se conflitam, vivem uma da outra.
O que espero não são os novos
céus e nova terra. O que espero não é a visão beatífica e a vitória total do
bem… O que espero não é a Justiça total. Isto me deixaria até embaraçada, pois
não sei qual seria esse Bem maior ou essa Justiça total imaginada por tantos.
Prefiro evitar os totalitarismos do bem, assim como tentamos evitar os
totalitarismos do mal.Sei que ‘céus’, ‘terra sem males’, ‘bem absoluto’ são
imagens tecidas de culturas passadas. Sei que são linguagens a serem sempre
decifradas de novo, visto que nutriram e nutrem os segredos de vida e as
esperanças de muitas e de muitos.
Piso no chão, nas ruas
empoeiradas, respiro a poluição, ouço lamentos e gargalhadas de prazer. Como
agrotóxicos e bebo água imprópria para o consumo. Caio em armadilhas
inesperadas. Tenho frio e muito calor. Tenho fome e excessos de gorduras. Vivo
nesta carne e é dela que espero algo porque é nela e dela que vivo. Esta carne
que somos nós, corpo da terra, animal, vegetal, marinha, humana é o lugar de
minha esperança.
Esperança em pequenas coisas, em
pequenos gestos capazes de revolver a terra seca que nos tornamos, de fazer
voltar carne e músculos e ternura nos corações de pedra que construímos.
Crianças saciadas, gostando de ler e escrever, alfabetizadas e letradas.
Adultos vivendo para além da ganância e da competição… Fim da produção de
armamentos… E há ainda tantas outras boas coisas!
Será que dizendo isso estou
fugindo do concreto, tirando os pés do chão, levitando nos ares? Creio que um
pouco, sim…
Esperar para além de toda a
esperança é próprio dos seres humanos. O impossível inclui o possível. E, a
poesia é uma forma de esperar para além das esperanças, de comparar o azul do
céu aos olhos da amada, o vento balançando as folhas do coqueiro aos cabelos da
morena, o lobo e o cordeiro comendo no mesmo prato. Sem essa dose de esperança
louca para além das esperanças, a humanidade deixaria de ter sonhos e de fazer
poesia. A humanidade deixaria de ter fé na sua capacidade de destruir as armas
de guerra e torná-las pás e arados para preparar a nova semeadura, deixaria de
apostar de novo no amor e na justiça apesar dos muitos enganos.
Sim eu creio, tenho fé e espero…
No pão partilhado de cada dia, na acolhida ao estrangeiro, no cuidado ao órfão
e ao velho, ao drogado e ao alcoólatra, às vítimas de tantas guerras… Eu creio,
apesar do real escurecido que meus olhos veem hoje…
Espero que as portas de alguns
juízes iníquos se abrirão para atender as viúvas, que alguns governantes
abraçarão o direito e a justiça e algo será um pouco melhor nas relações
humanas. Eu creio e espero que o calafrio que atravessa meu corpo quando capto
a distância entre o que sou e o que faço me convidem sempre de novo a renovar a
difícil unidade entre eu e eu mesma. Calafrio incômodo e salutar ao mesmo
tempo, pois abre a possibilidade da conversão, do aproximar-se de novo, do
acreditar uma vez mais que o coração humano é apenas um frágil músculo de
carne.
Os nomes que essas experiências
recebem segundo as diferentes tradições religiosas e filosóficas não têm muita
importância. Os dogmas, as teorias, as grandes sínteses do pensamento, as
grandes "revelações divinas” compiladas em livros sagrados não poderão nos
ensinar nada se nosso coração não for capaz de enternecer-se diante de um homem
faminto, de uma criança chorando de abandono, de uma mulher violada, de um
estrangeiro buscando um lugar para viver.
O provisório da vida é o chão que
pisamos e, é nele, que a fé e a esperança crescem. Por isso, a fé e a esperança
nas coisas pequenas e aparentemente insignificantes nutrem a minha vida, fazem
minha vida, sustentam minha vida.
Fonte: Adital
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