Mesmo nas metrópoles, como São
Paulo, por exemplo, a cada tempo pipocam os casos de estrangeiros sendo
mantidos como escravos em vários tipos de negócio. Usar as pessoas como coisas
segue sendo uma prática muito comum.
Por Elaine Tavares
Sempre que se fala em escravidão,
vem à mente a cena do negro, acorrentado, vindo para a América nos navios
negreiros do século 17 e 18. Tudo era uma grande operação comercial destinada a
enriquecer uns poucos. Esse longo processo foi o responsável pela dizimação dos
povos originários no chamado "novo mundo”, nossa Abya Yala, e pela
desagregação comunitária nos espaços do continente africano.
Naqueles dias, durante o processo
de invasão e dominação dos territórios africanos e americanos, esse era o
grande negócio. Usar as pessoas como mão de obra barata para a acumulação de
riqueza.
Portugal e Espanha desbravaram os
novos espaços, destruíram as comunidades existentes e implantaram o saque. A
Inglaterra dominou a rota e o mercado do tráfico. E foi essa movimentação de
conquista de território e escravidão que deu força ao sistema capitalista. A
tal da revolução industrial, tão decantada pelos ingleses, nunca teria existido
se não fosse esse quadro de exploração, dor e miséria. Para que a Europa se
fizesse rica, a América e a África tiveram de ser destruídas.
Durante séculos se lutou contra a
escravidão e precisou muito sangue para que essa prática fosse abolida. E, na
verdade, quando o sistema escravista foi finalmente varrido das Américas, o
motivo foi igualmente econômico. O escravo passou a ser um problema para o
sistema capitalista que se consolidava. Os "donos” tinham muita despesa
com os escravos e ainda precisavam cuidar de suas "propriedades”. Melhor
mesmo é que as pessoas se virassem sozinhas.
Foi aí que veio a
"libertação”. Os escravos passaram a ser pessoas livres que, então,
poderiam vender sua força de trabalho. Assim, os fazendeiros e empresários não
precisariam mais ter qualquer despesa para sustentar a mão de obra. Cada um que
se sustentasse a si mesmo. Foi perfeito. Assim, nasceram as fábricas e a vida
urbana, com as levas de gente explorada formando vilas miseráveis próximas aos
locais de trabalho.
O tempo passou e a escravidão
virou apenas tema de filme e romance, como se fosse uma mera lembrança do
passado. Ledo engano. Nas entranhas do mundo, essa prática de vileza seguia
sendo usada. Ainda assim, sempre foi combatida pelos movimentos de direitos
humanos e não são poucos os episódios de "libertação” que são empreendidos
em fazendas ou empresas.
Mesmo nas metrópoles, como São
Paulo, por exemplo, a cada tempo pipocam os casos de estrangeiros sendo
mantidos como escravos em vários tipos de negócio. Usar as pessoas como coisas
segue sendo uma prática muito comum.
A escravidão institucionalizada
Mas, se esses casos,
aparentemente isolados, são denunciados e vistos como um ataque aos direitos
humanos, isso não significa que o sistema capitalista – que é um sistema de
exploração humana – não tenha encontrado outras formas de escravizar e dominar.
Na verdade, é como se a mesma história se repetisse ad infinitum.
Se no passado, as grandes
navegações, que exploraram novas terras, permitiram a invasão e o saque desses
lugares, hoje, as cruzadas antiterroristas cumprem o mesmo papel. Quem denuncia
essa situação é o jornalista Antony Loewenstein, no livro "Capitalismo do
desastre: uma radiografia da catástrofe”.
Segundo ele, toda essa política
de destruição dos países do Oriente Médio, iniciada na chamada "Primavera
Árabe”, nada mais é do que o novo jeito de garantir escravos para a
movimentação do sistema. Ele mostra que empresas multinacionais como a G4S,
Serco e Halliburton, angariam elevados lucros com a calamidade em países como o
Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Haiti e Nova Guiné. E qual é o negócio
dessas empresas? Prisões privadas para refugiados de guerra.
Numa entrevista à jornalista
estadunidense Amy Goodman, Loewnstein contou como isso acontece. "Essa
empresas montam enormes armazéns nas zonas de guerra, que servem como centros
de detenção de refugiados e requerentes de asilo. Quando os holofotes se
apagam, e as ONGS deixam de ajudar para passar à próxima catástrofe, essas empresas
aparecem, com funcionários recebendo gordos salários para institucionalizar a
escravidão. Chegam com a promessa de recuperar os países e o fazem com a
indústria da escravidão”.
Segundo o jornalista, armazenar
refugiados está sendo um dos negócios mais lucrativos do século. Um exemplo
dado por ele é o da empresa Transfield Services, que administra - com dinheiro
do governo da Austrália - um centro de detenção na Papua Nova Guiné. Lá, perto
de 90% dos presos são refugiados, que vivem em condições desumanas, mulheres
são violadas e ninguém pode entrar para ver as condições dos prisioneiros. Eles
vivem em situação de escravidão e prestam serviços. Ou seja, seu trabalho vira
lucro para a empresa, enquanto eles apenas sobrevivem, nas piores condições.
Ele também observou esse mesmo
sistema em prisões dentro dos Estados Unidos, como uma do estado de Geórgia,
que é administrada pela empresa Corrections Corporation of America. O sistema é
o mesmo. Centenas de presos – no geral negros e pobres - servindo como
escravos. "E lá dentro é o inferno. Direitos Humanos não existem”.
E, para a sociedade, esse sistema
parece ser perfeito, pois uma boa parte apoia. Tanto que o atual candidato à
presidência dos EUA, Donald Trump, fala abertamente que é necessário que os EUA
se livrem de 11 milhões de imigrantes em situação irregular. E aí, a indústria
da prisão privada parece ser a solução perfeita.
Conforme Anthony, empresas como a
CCA e a GEO Group, que administram prisões privadas nos EUA e fora deles,
tiveram lucros de mais de 40 milhões de dólares nos últimos anos. Para se ter
uma ideia do volume do negócio, nos Estados Unidos, são detidos 34 mil
refugiados a cada noite. Agora imaginem esses exércitos trabalhando e
produzindo lucro, sem receber salário. É perfeito e legal!
Agora, no mês de outubro, durante
uma grande marcha contra a violência policial realizada na cidade de Nova
Iorque, outro jornalista, Chris Hedges, que recentemente lançou um livro
chamado "O império da ilusão: o fim da alfabetização e o triunfo do
espetáculo”, também denunciou essa nova fase da escravidão moderna concretizada
nas prisões privadas. Segundo ele, a lógica que está colocada para o mundo é a
do fim da alfabetização para os pobres, a retirada do direito à educação, para
que eles venham a se tornar os potenciais "usuários” das cadeias privadas,
servindo assim de mão de obra para a geração de lucros.
"Há maridos e esposas
separados, às vezes para sempre, de seus cônjuges. Há irmãos e irmãs que foram
dilacerados, mães e pais que estão trancadas atrás das grades, cujas vidas
minúsculas foram destruídas, e crianças cujas infâncias foram roubadas”.
Na sua fala aos nova-iorquinos
ele insistiu: "Clamamos por todos os que se tornaram invisíveis, os que
desapareceram por trás dos muros da prisão, que se tornaram presas do estupro,
da tortura, do espancamento, do isolamento prolongado, da privação sensorial,
da discriminação racial, das gangues de cadeia, do trabalho forçado, da comida
podre, sem cuidados médicos, crianças presas com adultos, prisioneiros forçados
a tomar medicamentos para induzir letargia, pouco ou nenhum aquecimento e
ventilação, com décadas penas para crimes não-violentos e violência endêmica.
Há que condenar um Estado que perpetua esse abuso”.
Ele também insiste que o
encarceramento hoje é um negócio extremamente lucrativo e não são apenas as administradoras
de presídios que ganham com o trabalho dos presos. Há as que fazem as chaves,
as empresas de telefonia, de aparelhos de segurança, de alimentos, de roupas de
cama, enfim, tudo o que gira em torno dos complexos.
Hedges denuncia também que são os
lobistas de empresas como a Corrections Corporation of America, os que escrevem
as leis que asseguram penas mais longas para crimes comuns, tudo isso para
encher as prisões.
"Nesse pool de empresas
estão as que chamamos de cumplices da nova escravidão: Chevron, Bank of
America, IBM, Penney, Sears, Wal-Mart, Eddie Bauer, Wendy, Procter &
Gamble, Johnson & Johnson, Motorola, Caterpillar , da Microsoft, Texas
Instruments, Pierre Cardin e Target”.
O Brasil entra no jogo da nova escravidão
Quem vê na televisão os debates
sobre a redução da maioridade penal pode pensar que há uma grande preocupação
nacional com relação à segurança das pessoas, mas não é nada disso. Todo esse
debate está ligado à lógica da nova escravidão. Tanto que na rabeira dessa
proposta vem também a ideia dos presídios privados, afinal, como alegam alguns:
"bandido tem que trabalhar para pagar o estado”.
Muito poucos se importam em saber
se os que estão na prisão são de fato, bandidos.
No Brasil, segundo dados do
Ministério da Justiça, existem mais de 600 mil encarcerados (a quarta maior
população carcerária do mundo), 200 mil a mais do que o próprio sistema
suporta. Esse número cresceu 80% nos últimos dez anos, o que mostra uma
política cada vez mais forte de penas de reclusão. Notem que 41% dos presos
estão em situação provisória, ou seja, sem julgamento. E, conforme informações
Conselho Nacional de Justiça, pelo menos 20 pessoas podem estar presas por puro
"esquecimento”, ou seja, já cumpriram a pena, mas o sistema não liberou.
Os dados da Infopen são claros:
67% dos presos são negros, 56% são jovens e 53% não concluíram o ensino
fundamental. Três únicos delitos são os responsáveis pela prisão de mais de 59%
deles: tráfico (27%), roubo (21%) e furto (11%). Ou seja, os verdadeiros bandidos
ou são poucos ou não foram pegos.
E é justamente a tal da
superlotação do sistema carcerário que tem levantado a ideia das prisões
privadas. Tudo feito no jogo de cena do legislativo, com discursos bem
articulados de defesa do cidadão. Desde 2012 que se vem tentando passar uma lei
que permita a criação desses armazenamentos privados de pessoas, ainda sem
sucesso. Ainda assim já existem experiências como a da Penitenciária Industrial
do Paraná, que é administrada como uma empresa desde 1999.
Conforme informações da Pastoral
Carcerária Nacional, outras 29 unidades já atuam de maneira privada dentro da
proposta das PPPs, as Parcerias Público-Privadas, um eufemismo criado para
respaldar a nova escravidão. Ou seja, a administração é pública, mas os demais
serviços são privados. E o consenso que a mídia cria sobre isso é de que lá, os
presos trabalham e são produtivos. Ah, que bom, dizem os bons cristãos!
É fato que as prisões são hoje
mero depósito de gente, sem chance alguma de ressocialização, e esse tem sido o
principal argumento a favor da "profissionalização” dos presos. Mas, o que
não se problematiza é justamente o reconhecimento sobre quem é o preso e porque
ele está encarcerado.
Conforme as denúncias levantadas
e comprovadas pelos jornalistas estadunidenses, em nível mundial a lógica que
comanda a proposta de privatização dos presídios é a da geração de lucros para
algumas empresas, com o uso de mão de obra escrava. Por isso, em boa parte dos
países se legisla na defesa de novas leis, penas longas e, principalmente, na
constituição de novas "figuras” que precisam ser tirada das ruas por
oferecem risco à sociedade: refugiados, imigrantes e terroristas (que são os
militantes sociais). Tudo isso articulado para que se encham as prisões.
Não bastasse isso, ainda há o
sistemático processo de emburrecimento das gentes com o fechamento de escolas e
a privatização da educação.
Ou seja, voltamos aos velhos
tempos em que apenas a aristocracia se ilustrava, enquanto gerenciava seus
escravos.
Fonte: Adital
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