Propagandas que estimulam a
igualdade de gênero ganham espaço. Uma pesquisa inédita revela como o sexismo
ainda se insinua.
As mulheres indianas ganharam um
troféu inusitado: um pote de picles, artigo tradicional nas cozinhas da Índia.
A honraria simbólica foi conferida por uma campanha publicitária de absorventes
femininos. Ela incitava as indianas à ousadia de tocar a conserva de legumes de
suas casas, contrariando a crença local de que mulheres, quando menstruadas,
podem estragar a comida. A provocação – uma metáfora condimentada para
conceitos ultrapassados que dividem homens e mulheres na Índia – foi celebrada
por 2,9 milhões de pessoas que espalharam o desafio pelas redes sociais. A
campanha ganhou um troféu real em junho, na França, na premiação mais
importante da publicidade mundial, o Leão de Cannes. A propaganda, criada pelo
escritório da agência americana BBDO em Mumbai, levou o grande prêmio da
primeira edição do Leão de Vidro. É uma categoria especial para celebrar
anúncios que contribuem com a diminuição das diferenças sociais entre homens e
mulheres.
“Que porcaria, isso é uma coisa
machista” diz garotinha sobre ter de usar roupas cor de rosa
O Leão de Vidro, cujo júri foi
presidido pela publicitária britânica com pendores feministas Cindy Gallop, é o
símbolo de uma transformação que começa a se fazer visível na publicidade. Os
profissionais da área percebem, não sem algum atraso, que não funcionam mais
com tanta eficiência as campanhas que retratam homens e mulheres em papéis
tradicionais. Na visão envelhecida, a mulher só tem o papel de beldade sedutora
de homens e de mãe-e-dona-de-casa multitarefa. Ao homens, cabem os papéis de
garanhão, provedor do lar e atleta vencedor. A insistência nesses padrões pode
irritar os consumidores e prejudicar a imagem de marcas e empresas. “Os
consumidores estão mais exigentes e as empresas perceberam a oportunidade de se
diferenciar”, diz a economista Adriana Carvalho, assessora da ONU Mulheres,
entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero.
Homens feministas
Na publicidade brasileira também
surgem sinais da necessidade de mudança. O segundo quesito campeão em
reclamações no Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) é
o que engloba formas de discriminação, como a de gênero. No ano passado, 14%
das reclamações estavam nessa categoria. “As agências e os clientes estão
aprendendo na tentativa e erro”, diz Carla Alzamora, diretora de Planejamento
da agência de propaganda brasileira Heads. A empresa fez uma pesquisa para
entender melhor o problema.
A análise de 2,8 mil comerciais,
veiculados durante uma semana em dois canais de televisão, sugere que os
anúncios andam meio vintage, no mau sentido. A divisão de homens e mulheres em
papéis sociais rígidos continua a existir. Quase metade dos comerciais – 45% –
recorrem a comportamentos caricatos (leia o quadro abaixo). São elas as mais
afetadas: 15% abusam da sexualização das personagens femininas, tratam-nas como
incapazes de tomar decisões próprias ou apelam para a figura manjada (e irreal)
da mulher que trabalha-cuida-da-família-é-sexy-à-noite. Tudo com um sorriso no
rosto. Os homens sofrem menos, mas não passam incólumes: em 8% das propagandas
são os encarregados por consertos em casa ou encarnam o machão descerebrado que
só pensa em mulher. “O homem tradicionalmente ocupa uma posição de poder, mas
isso significa que eles também sofrem pressão”, afirma Marisa Sanematsu,
diretora de conteúdos do Instituto Patrícia Galvão, de defesa dos direitos da
mulher.
Até comerciais que tentam
desfazer essas imagens cometem deslizes: 5% acabam estereotipando um gênero
para enaltecer o outro. Foi o que aconteceu com uma campanha polêmica de um
produto de limpeza. Depois que o comercial estreou na TV aberta, em agosto, 15
homens denunciaram o comercial ao Conar porque se sentiram discriminados. O
texto da campanha dizia que toda mulher é uma diva e todo homem, “diva-gar”. Em
setembro, o Conar não considerou as reclamações procedentes e decidiu arquivar
o caso. “É fácil cair na armadilha de inverter o balanço de poder,
ridicularizando os homens para exaltar as mulheres”, diz Carla, da Heads.
As propagandas que questionam os
desgastados papéis de gênero são apelidadas, em inglês, de femvertising (junção
das palavras “feminino” e “anúncio”). Há exemplos em países tão díspares quanto
Índia, Estados Unidos e Uruguai (leia o quadro abaixo). No Brasil, o tema é
prioritário em algumas agências. A Heads
se comprometeu, no ano passado, a
seguir os princípios de valorização feminina da ONU Mulheres. As publicitárias
Thaís Fabris, Larissa Vaz e Maria Guimarães abriram em fevereiro uma
consultoria especializada em campanhas que promovem a igualdade de gênero, a
65/10. “Depois da revolução digital, essa é a nova revolução da publicidade”,
diz Thaís. O nome da consultoria faz alusão a dois números que as sócias
consideram significativos: 65% das mulheres não se identificam com a
representação que veem nos comerciais, conclusão de uma pesquisa do Instituto
Patrícia Galvão, e apenas 10% dos profissionais de criação das agências são
mulheres, segundo levantamento de Thaís e suas sócias.
Nos EUA, a situação é semelhante.
“O fato de apenas 3% das diretoras de criação serem mulheres contribui para o
legado dos estereótipos na publicidade”, diz Samantha Skey, responsável pelo
marketing do SheKnows Media, um portal feminino. A empresa americana criou um
prêmio este ano para incentivar campanhas pela igualdade de gêneros. “As
mulheres são consumidoras poderosas e a publicidade terá de se esforçar para
conquistá-las. É uma mudança gradual”, diz Samantha. É a vez de os
publicitários saírem de seus papéis tradicionais e tentarem algo novo.
Garotas propaganda
As campanhas que viraram exemplos
de valorização da mulher na publicidade
SEREI O QUE QUISER Produto roupas de ginástica País EUA l Ano 2015 A top Gisele Bündchen
briga simbolicamente com comentários verdadeiros, bons e maus, escritos sobre
ela nas redes sociais. Passa a ideia de que é preciso ter garra para vencer rótulos
impostos (Foto: reprodução)
As campanhas que viraram exemplos
de valorização da mulher na publicidade (Foto: reprodução)
2 - COMO UMA GAROTA
Produto: absorvente feminino
País: EUA l Ano 2014
Mostra a interpretação –
pejorativa – que as próprias mulheres fazem da expressão “como uma garota”. Foi
ao ar na final do campeonato de futebol americano, o espaço publicitário mais
caro dos Estados Unidos
3 - TOQUE O PICLES
Produto: absorvente feminino
País: Índia l Ano 2014
Encoraja as meninas a desafiar um
símbolo da impureza feminina. Há um mito que prega que mulheres menstruadas
estragam a comida. Foi o grande vencedor do prêmio especial do Festival de
Publicidade de Cannes
4 - É PRA MIM
Produto: maquiagem
País: Brasil l Ano 2015
A campanha desafia antigos
padrões femininos de beleza (“batom vermelho não é pra mim” e de comportamento
(“comprar camisinha não é pra mim”) e convida as mulheres a riscar o “não” de
suas vidas e a pensar diferente
5 - ESBOÇOS DE BELEZA VERDADEIRA
Produto: produtos de beleza
País: EUA l Ano 2013
Um desenhista faz dois retratos:
um com a descrição que uma mulher faz de si e outro com base num relato de uma
pessoa. As mulheres são mais críticas – e belas – do que acham
6 - FELIZ DIA, HOMENS
Produtos: anticoncepcional
País: Uruguai l Ano 2015
O comercial lembra aos homens as
conquistas que a igualdade de gênero também trouxe para eles. E, com ironia,
sugere como muitas delas estão longe de ser verdade na prática (como acontece
com as mulheres) (Fotos: reprodução)
Fonte: Revista Epoca
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