Diretora do filme, cineasta Ana
Muylaert.
"Que horas ela volta?” é
rotulado pela crítica como um filme de arte. Para a diretora Anna Muylaert,
entretanto, o longa precisa ser assistido também nas periferias do país. Nada
mais justo, já que o roteiro conta a história de Val (Regina Casé), uma
empregada doméstica que passou anos trabalhando na casa de uma família rica do
Morumbi [bairro rico de São Paulo] e tem sua vida alterada com a chegada de
Jéssica (Camila Márdila), sua filha, que foi deixada no Nordeste e está em São
Paulo para prestar vestibular.
Ganhador do Festival de Berlim e
com premiação também em Sundance [Estados Unidos], o filme é a representação
brasileira na disputa pelo Oscar. A escolha rompeu uma hegemonia masculina de
30 anos de indicações de diretores homens e acendeu um debate sobre o machismo
no cinema.
Mesmo com a agenda lotada, a
diretora recebeu o Brasil de Fato SP em sua casa, no último dia 12 de setembro,
à tarde, e falou sobre a repercussão do filme, que já ultrapassou 150 mil
espectadores. Confira a entrevista:
Brasil de Fato SP - Quando você
teve a ideia do filme, o objetivo era ter o foco no retrato das relações
humanas ou a ideia já era debater questões políticas?
Anna Muylaert – Eu não pensei em
política enquanto estava construindo o roteiro. Queria dar um destino melhor
para a filha da empregada. Na minha cabeça de dramaturga, eu queria tirar o
clichê da maldição da repetição. Durante muitos anos, o caminho era igual, a filha
vinha para cá ser cabeleireira e acabava como doméstica, assim como a mãe. Eu
determinei a mudar isso. A partir do primeiro dia em que apresentei a ideia, a
associação com o retrato do período pós- Lula foi imediata. O filme estava mais
enraizado na realidade do que eu achava.
Falando um pouco sobre essa nova
realidade, que foi alterada devido aos diversos programas sociais implantados
na última década, você acredita que houve uma mudança na autoestima do
brasileiro?
A partir do Lula, sem dúvida, houve
um trabalho de melhoria da autoestima, tanto pelo Bolsa Família e pelas cotas
raciais nas universidades, como também pela Copa do Mundo e Olimpíadas. Acho
que se há algo que o Lula fez foi subir a autoestima das classes menos
favorecidas. Mas isso é um pequeno começo, a questão da educação ainda está
muito atrasada em relação aos países europeus, por exemplo, que são,
socialmente, mais democráticos. Aqui, demos um pequeno passo para o direito à
cidadania.
Sobre a personagem Jéssica, como
você encara o fato de algumas pessoas interpretarem ela como uma pessoa
‘metida’, quando, na verdade, ela só quer ser tratada como os outros hóspedes
da casa? Como você pensou na personalidade dela?
Ela foi uma menina que teve
educação, apesar de não ter dinheiro. Além disso, ela não teve empregada,
portanto, nem conhecia essas rígidas regras separatistas. A minha ideia é que
ela chegaria com uma inocência. Mas, claro, que ao perceber aquelas relações,
ela simplesmente não acredita. Na cabeça dela, aquelas regras não significam
nada. Há quem ache ela arrogante e há quem ache ela maravilhosa. Dependendo do
que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.
Foram realizadas cabines [sessões
de teste com o público] só com empregadas domésticas. Como foi a reação delas?
E os patrões? Você chegou a ser vítima de algum discurso de ódio por causa do
filme?
Eu soube que, após a sessão,
rolou um desabafo de um grupo [das domésticas], com coisas que estavam presas
por muito tempo na garganta. Mas muitas ficaram bastante travadas. Esse jogo de
regras é um jogo invisível. O filme mexe muito com os dois lados. Tanto com o
patrão, que sai de lá e diz que vai aumentar o salário da empregada, quanto com
elas, que se enxergam no filme e ficam motivadas a deixarem de aceitar
humilhações. Eu esperava que eu fosse vítima [de discurso de ódio], mas,
estranhamente, ainda não houve. Os patrões usam o filme como um momento de revisão
de atitudes e valores. Mas já fiquei sabendo de duas mulheres que levantaram e
saíram da sala revoltadas em uma das cenas da Val, o que eu achei bem chocante.
Você costuma brincar que o seu
filme é um filme de "nadas”, porque os principais pontos estão
relacionados a situações do cotidiano, que só têm importância pelo contexto,
como é o caso da problemática em relação às personagens com a piscina da casa.
Como foi essa construção do roteiro?
Eu estava girando atrás de uma
solução quando, em agosto de 2013, seis meses antes da filmagem, minha
fotógrafa, a uruguaia Bárbara Alvarez, me deu um livro do Cortázar [escritor
argentino Julio Cortázar] com o conto "Casa tomada”. Assim, achei uma
solução para a Jéssica. Ela viria inocente das regras e iria quebrando essas
regras, até ser expulsa de volta. Quando a patroa entra na cozinha e a Jéssica
está tomando sorvete, a cena é quase de um filme de terror. Mas a tensão está
justamente na percepção das pessoas. Não há nada demais no fato de uma
adolescente estar tomando sorvete.
Você optou por retratar uma
família em que a mulher é protagonista e tem um papel mais autoritário. Teve
algum motivo específico para a escolha?
Não foi uma opção consciente.
Isso foi baseado na minha visão. Eu acho que os homens estão muito fragilizados
perante as mulheres, atualmente. Acho que as mulheres estão muito fortes. Eu,
por exemplo, sou cineasta e criei dois filhos sozinha. Trabalhei com os meus
dois braços, enquanto boa parte dos homens trabalha com um braço só, já que
chegam em casa e dormem. Acho que, na América Latina, é muito forte esse
conceito do homem não ajudar em casa. Apesar de estarmos poderosas, a gente
ainda não quebrou o tênue fio dessa regra machista. Nós, mulheres, precisamos
dizer: ‘estamos fazendo o serviço, então, não manda em mim’. Porque os homens
não fazem, aí as mulheres fazem, e, no final, eles chegam e tiram a foto ao
lado do prefeito. Isso acontece em todas as classes e em todos os países. Eu
acho que a nova onda feminista é a missão da mulher dizer para o homem que ele
está agindo de maneira ridícula.
A atriz Regina Casé protagoniza o
filme como a empregada doméstica Val.
Tenho quase 25 anos de carreira.
No começo, eu podia fazer o serviço, mas não podia receber o crédito. E eu não exigia.
Acho que a mulher tem um excesso de humildade, enquanto o homem um excesso de
arrogância. Isso precisa ser equilibrado. As mulheres acabam errando também
porque há um conjunto de regras que dizem que o homem deve estar à frente e a
mulher atrás. Depois passei para uma condição onde eu levava o crédito, mas
ainda ganhava menos do que o homem, e achava normal. Há sempre uma valorização
do masculino e desvalorização do feminino. Foram muitos anos para eu perder
esse excesso de humildade, que, na verdade, é uma subserviência. Humildade é
bom, subserviência não. Autoestima é bom, mas arrogância não. Quando meu filme
começou a ter visibilidade, comecei a sofrer um bullying que nunca tinha
sofrido antes, de parceiros meus dizendo que, se eu cheguei lá, era por
responsabilidade deles. Hoje, com esse filme, eu alcancei um patamar do cinema
onde só há homens como Walter Salles, Fernando Meirelles, Padilha e Hector
Babenco.
Como foi a relação com a Regina
Casé? Você havia pensado nela desde o início do projeto?
Eu decidi que a Regina (Casé)
interpretaria a protagonista quando assisti o filme "Eu, tu, eles”. Depois
disso, não pensei mais em outra pessoa para o papel da Val. Nosso processo de
aproximação foi longo até chegar à filmagem que, por sinal, foi bastante
complicada, em decorrência do bebê que ela havia acabado de adotar. Tiveram
momentos difíceis, principalmente pelo calor do verão. Mas o importante é que,
artisticamente, a gente se deu maravilhosamente bem. Acho que é, talvez, a
parceira mais incrível que eu já tive.
O filme retrata essa cultura
escravista herdada do período colonial. Foram realizadas pesquisas sobre isso?
Fizemos uma pesquisa para
encontrar a personagem principal, que é inspirada na Edna. Ela foi babá do meu
filho por aproximadamente dois anos e acabou se tornando minha amiga. Quando
era criança, foi deixada na Bahia pela mãe e buscada apenas 10 anos depois.
Sobre essa arquitetura colonial e os espaços de poder dentro da casa, não foi
preciso praticamente nenhuma pesquisa, já que esses valores estão presentes em
qualquer casa da classe alta brasileira.
Além do seu filme, vários outros
abordaram essa mesma temática nos últimos anos. "Domésticas”, do Gabriel
Mascaro, talvez seja o mais evidente. Mas também podemos citar "O som ao
redor”, do Kleber Mendonça Filho, e "Casa grande”, do Fellipe Barbosa.
Algum deles te influenciou?
Eu tive uma influência muito
grande do filme "O som ao redor”. Eu me conecto a ele porque eu realmente
amei, saí do cinema tremendo. Apesar de completamente diferentes, ambos estão
tirando diversas pessoas da invisibilidade. Já o documentário
"Domésticas”, que foi exibido para a nossa equipe durante a preparação,
serviu de inspiração para o figurino da Val. O "Casa grande”, entretanto,
foi diferente. No início da sua exibição, no Festival de Cinema de Paulínia,
achei que alguém tivesse feito o mesmo filme que eu. Mas, passados os primeiros
30 minutos, o filme abandona o caráter crítico e assume o papel do herói
adolescente, que termina trepando com a empregada, o que eu considero
retrógrado e machista. Na Europa, os espectadores perguntam se isto realmente
existe ou se é pura ficção. Em suma, todo mundo está abordando um tema que urge
porque o Brasil ainda está no século XIX. Essa é uma cultura gerada nos
primórdios da colonização, quando os portugueses vieram para o Brasil explorar
o ouro e comer as mulheres. A lógica era o ócio ao invés do negócio. Isso não
dá mais, é 7 a 1 em todo o canto. É urgente profissionalizar, legislar e
respeitar essas mulheres. No Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher,
branco em preto e rico em pobre. Os cineastas estão no cinema para isso e é
ótimo que estes filmes estão dando certo, porque faz o mundo pensar e repensar
estas atitudes.
Uma jovem, que também se chama
Jéssica, publicou um artigo no blog "Nós da Periferia” relatando as
semelhanças da sua história com a Jéssica do filme. Como está sendo a recepção
do público?
Está incrível. Estou recebendo
uma mensagem a cada cinco minutos. Ontem, um menino me escreveu relatando um
episódio que ocorreu após a publicação de uma crítica muito bonita que fez
sobre o filme. A patroa da sua mãe, que é empregada, achou seu texto em um
blog, se reconheceu lá, e afirmou que mudaria completamente a sua postura.
Isso, pra mim, já é um Oscar. Além disso, um pessoal da periferia me convidou
para participar de um debate e, no fim da mensagem, afirmou que ‘somos todas
Val’. Enviei como resposta que também ‘somos todas Jéssica’. No geral, a
periferia também quer ver o filme, mas ele ainda não chegou lá. No início, eu
tinha a intenção de oferecer desconto para domésticas que apresentassem o
cartão de trabalho. Mas, na primeira reunião, meu distribuidor descartou a
ideia porque a patroa se sentiria mal em sentar ao lado da empregada. No
mercado capitalista, "Que horas ela volta?” é um filme de arte. Apesar
disso, estamos provando o contrário.
Você afirmou em algumas
entrevistas que o roteiro começou a ser elaborado logo após o nascimento do seu
segundo filho. Como foi esse processo?
O roteiro nasceu do amor pelo meu
filho. Eu já tinha feito "Castelo Rá-Tim-Bum” e vários outros trabalhos,
mas, quando eu tive o bebê, surgiu uma força que me fez decidir que não iria
mais trabalhar por um tempo. Eu fiquei dois anos sem trabalhar, mas,
felizmente, vieram os livros do "Castelo Rá-Tim-Bum”, que me renderam
quatro ou cinco vezes mais do que o salário na TV Cultura, e me possibilitaram
continuar trabalhando em casa. Eu senti que o processo da maternidade me faria
crescer e me entreguei completamente. Somente depois de muita insistência,
decidi contratar uma babá para me ajudar uma vez por semana. Logo no primeiro
dia, a menina veio toda de branco, pegou o bebê, entrou no quarto e fechou a
porta. Nessa hora, eu deitei na minha cama e comecei a passar mal. No dia
seguinte, eu abri o jogo e assumi que não daria para continuar. Eu não conseguia
dar o meu bebê na mão de um desconhecido. Pelo menos, nos dois primeiros anos,
é essencial o contato entre mãe e filho. Depois menos, porque é necessário
aprender a se separar, desprender-se do filho. Mas por que a maternidade não é
valorizada? Justamente porque a nossa sociedade exalta apenas o masculino.
Muita mulher, e acho que eu não tive isso porque havia acabado de fazer
sucesso, fica agoniada em casa enquanto o mundo lá fora está girando. Porque o
sinônimo do mundo é sucesso, poder e riqueza, enquanto o da maternidade é amor,
carinho e espiritualidade. Senti que isso é um tema muito forte porque o mundo
inteiro é regrado pelas leis masculinas, que são machistas. Na verdade, o filme
não é baseado em ninguém, mas em uma vontade de expor tudo isso. Foram 20 anos
de pesquisa, laboratório e contribuição de muitas pessoas.
Assim como o personagem Fabinho,
as memórias da primeira infância de muitas crianças brasileiras são das babás.
Existe uma solução para isso?
O Brasil é isso. A minha babá, a
Dagmar, veio para casa quando eu tinha sete anos. Mas, mesmo assim, eu consegui
criar um vínculo forte com a minha mãe porque ela não trabalhava. Já a minha
irmã menor, que tinha três anos, tem uma conexão muito mais forte com a Dagmar.
Meu pai, por exemplo, não me deixava assistir televisão e, por isso, até hoje,
eu não tenho esse hábito. Em compensação, a minha irmã senta com o marido e os
quatro filhos na frente do aparelho, em decorrência de uma herança que não veio
dos meus pais. Eu já vi vários filhos de amigas minhas descerem do quarto para
dormirem com a empregada. Esse é um debate que temos que abrir, mas não tem uma
saída pronta. Outro dia, uma jornalista inglesa me perguntou, no meio da
entrevista, o que eu achava que ela deveria fazer em relação à filha de sete
meses. Obviamente, eu falei que não tinha uma fórmula. Mas se os pais, os
homens, pegassem metade da responsabilidade não precisaria de nenhuma babá. O
pai dos meus filhos ajudou no máximo 2%. Eu aguentei a responsabilidade dos
outros 98%, além de continuar minha carreira no cinema. Nos países nórdicos,
por exemplo, os homens ganham seis meses de licença paternidade. Se um homem
limpa a bunda de uma criança, é claro que ele se transforma, amadurece e cria
uma relação de intimidade com o filho. Além disso, na Europa, existem mais
creches disponíveis. Aqui, no Brasil, ou a mulher deixa o filho na casa da mãe
ou doa para alguém. Essa é uma discussão muito importante porque a mulher nunca
mais vai parar de trabalhar, "somos todas Jéssica”.
Existe uma grande dificuldade de
se fazer cinema independente no Brasil e, consequentemente, de pautar questões
mais complexas. Nesse caso, apesar da crítica social, ele foi distribuído pela
Globo Filmes. Como se construiu essa relação?
Toda a cadeia do cinema entende
que ele é um filme de arte. Até a própria Regina Casé já deu entrevista
afirmando que não sabia se ele ia chegar ao grande público. O que caracteriza o
blockbuster brasileiro é ser televiso. Um filme de sucesso não pode ter apenas
a Regina, mas deve ser filmado com enquadramento, luz e superficialidade das
novelas. A indústria, por entender que as pessoas procuram produtos com uma
linguagem familiarizada, coloca dinheiro apenas nessas produções. O meu filme
não tem nada disso. Em relação à Globo Filmes, o filme chegou pronto por lá. O
chefe, Edson Pimentel, é apaixonado pelo filme e acreditou na sua potência. Não
houve um grande dinheiro investido em publicidade, não estamos em ônibus,
outdoor, etc. Estamos apenas no Facebook e no boca a boca. A Globo Filmes está
abrindo portas dentro da sua programação, mas, no fundo, este é um filme de
guerrilha. Apesar de ter sido tratado como um filme de arte, a bilheteria está
provando exatamente o contrário.
Fonte: Brasil de fato
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